CNJ não tem poder de alterar o CPC e nem de criar regras de processo
12 de dezembro de 2024, 8h00
Já em 2006, alertamos para o empoderamento do CNJ
Em 2006, Ingo Sarlet, Clèmerson Clève e eu escrevemos artigo dizendo que CNJ (Conselho Nacional de Justiça) não podia legislar. Alertamos. Era o início. Mas parece que a comunidade jurídica se acostumou com o poder do CNJ de expedir regulamentos que chegam até mesmo a alterar o CPC. E o CPP (ler aqui). É disso que tratarei.
Qual é o valor da lei? Quais são os limites do CNJ? O poder judiciário pode fazer leis?
Fomos profetas. O STF, na ocasião, sacramentou o poder legiferante do CNJ. Bom, o resto todos sabem.
Quer dizer, não sabem tudo. A cada dia os advogados sentem na pele. Por exemplo, o CNJ, via regimento interno, extinguiu o direito de a parte manejar embargos de declaração. Contra legem.
Pois agora saiu Resolução nº 591/24, que entrará em vigor em fevereiro de 2025, pela qual estabelece em seus artigos 2º e 9º, respectivamente:
Todos os processos jurisdicionais e administrativos em trâmite em órgãos colegiados poderão, a critério do relator, ser submetidos a julgamento eletrônico;
[…]
Nas hipóteses de cabimento de sustentação oral, fica facultado aos advogados e demais habilitados nos autos encaminhar as respectivas sustentações por meio eletrônico após a publicação da pauta e até 48 (quarenta e oito) horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual ou prazo inferior que venha a ser definido em ato da presidência do Tribunal.
Voltemos no tempo. O que diz a Constituição sobre o poder do CNJ e CNMP?
Art. 103-B, da CF: […]
-
4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:
I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; (Nota: CNMP, idem)
Em 2006, dissemos que as resoluções que podem ser expedidas pelos aludidos Conselhos não podem criar direitos e obrigações e tampouco imiscuir-se (especialmente no que tange a restrições) na esfera dos direitos e garantias individuais ou coletivas.
Outra coisa prosaica: CNJ foi criado para tratar de e com juízes. Não pode legislar sobre os direitos dos demais cidadãos. Mormente não pode retirar direitos dos cidadãos e dos seus causídicos. Não lhes parece elementar?
Mais. Há quase 20 anos alertamos que o poder “regulamentador” dos Conselhos esbarra na impossibilidade de inovar. As garantias, os deveres e as vedações dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público estão devidamente explicitados no texto constitucional e nas respectivas leis orgânicas.
Qualquer resolução que signifique inovação será, pois, inconstitucional. E não se diga que o poder regulamentar (transformado em “poder de legislar”) advém da própria EC 45. Ou de lei posterior.
Fosse correto este argumento, bastaria elaborar uma emenda constitucional para “delegar” a qualquer órgão (e não somente ao CNJ e CNMP) o poder de “legislar” por regulamentos. E com isto restariam fragilizados inúmeros princípios que conformam o Estado Democrático de Direito.
Pergunto-me onde foi parar a doutrina do decreto autônomo, tão defendida e reafirmada pelo próprio Poder Judiciário? Não pode nos passar despercebido o quanto o judiciário defende a autonomia do parlamento e restringe (corretamente) o poder regulamentar do executivo — mas não deixa de ser irônico que, para o órgão administrativo do próprio poder judiciário, essa regra — constitucional, diga-se — não seja observada, ou seja minimizada/mitigada (eufemismo retórico do judiciário) em favor de um poder que pode tudo.
Por derradeiro: regulamentar é diferente de restringir. Ou de inovar.
Resolução 591/24 do CNJ e a restrição flagrante de direitos fundamentais
No caso, a Resolução interfere nos direitos das partes de acesso pleno à justiça e nas prerrogativas dos advogados. Um julgamento colegiado presencial é um direito indiscutível e fundamental. Ou alguém duvida disso?
Há uma doutrina já considerada clássica e muito qualificada sobre como o devido processo administrativo é tão importante quanto o devido processo. [1] Em um contexto em que Tribunais de Contas e órgãos administrativos, como é o caso de ambos CNJ e CNMP, têm relevância muito maior, isso não poderia deixar de ser mais verdade. O processo é compartimentalizado. Tem ritos: o civil, o penal, o trabalhista, o administrativo, o eleitoral, mas todos continuam sendo processo, em que o jurisdicionado deve(ria) ter direitos fundamentais comuns — entre ele o de devido processo — basilar.
Por isso, de há muito me causa perplexidade que o Supremo tenha sumulado entendimento que não há necessidade da presença de advogado em procedimento administrativo. Por vezes, um cidadão nunca será processado criminalmente na vida, mas um procedimento administrativo, seja disciplinar ou oriundo de um ato de improbidade, ou até mesmo que cause sua inelegibilidade. Tais casos mudam, e até podem destruir, vidas! Como pensar o processo diferente para casos apenas por que o processo é administrativo?
O princípio do devido processo, para a melhor doutrina constitucional e processual, é uma questão basilar — a integridade do direito. O devido processo é parte do próprio direito como conhecemos. Sem ele não há democracia e não há ordem constitucional adequada. Não pode, portanto (e obviamente), ser nem restringido por lei. Fosse por lei, seria inconstitucional. Aliás, nenhuma lei (e muito menos uma resolução) pode proporcionar retrocessos em termos de direitos fundamentais.
Superpoder do relator
Lendo a resolução, percebe-se que o relator terá o superpoder de levar ou não ao plenário presencial o processo (recurso). E, então, haverá possibilidade de sustentação oral. Mas, como controlar o poder do relator? Haverá recurso da decisão denegatória do relator? Qual recurso cabível? Aliás, aqui fica mais clara ainda a inconstitucionalidade da resolução. Afinal, mesmo que admita recurso, essa admissão é a prova de que o CNJ legisla sobre processo. E o relator, por puro ato discricionário, tem a palavra final e pode “escolher” qual processo vale uma sustentação e qual não vale.
E não se diga que é matéria de regimento interno ou algo assim e que regimento do STF vale como lei processual. O CNJ não tem esse poder. Não é tribunal. Já é duvidoso que o STF possa, via regimento, extrapolar atos internos próprios de tribunal. Essa é uma discussão ainda aberta.
Portanto, urge que, antes de entrar em vigor, a Resolução seja sindicada quanto a sua constitucionalidade. É um bom teste para as instituições. Até onde vai o poder dos tribunais e seus órgãos?
Aplaudo, portanto, a proposição do Conselho Federal da OAB de sustar os efeitos da resolução. Afinal, quem define o ato jurisdicional deve ser o advogado ou o jurisdicionado. A jurisdição — inclusive a administrativa — é um serviço público, indiferente de qualquer outro: segurança, saúde etc. Como bem afirmou o vice-presidente Rafael Assis Horn, a prerrogativa de se opor ao julgamento pelo plenário virtual deve ser mantida. O plenário virtual deve(ria) aproximar e não afastar o jurisdicionado da jurisdição. Estamos falando, repito, de um serviço público. Até onde vai esse poder?
Essa é a pergunta a ser respondida. Quem se importa com o direito dos cidadãos?
Concentração de poder indevida nas mãos do Judiciário sobre processo
Em um último tópico é necessário apontar a concentração indevida de poderes nas mãos do Judiciário sobre as normativas de processo eletrônico, que foi autorizada pela Lei n. 11.419/2006.
Sobre o tema aqui tratado, indico o artigo do advogado Alexandre Atheniense, publicado aqui mesmo nesta ConJur, “Sustentação oral assíncrona: ameaça ao exercício da advocacia e ao devido processo legal” (ler aqui), em que o autor trás apontamentos certeiros sobre o tema.
Todavia, não posso deixar de tecer algumas considerações sobre a previsão constante no art. 18 da referida lei que estabelece que “os órgãos do Poder Judiciário regulamentarão esta Lei, no que couber, no âmbito de suas respectivas competências”. Tal dispositivo foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade por parte do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 3.880/DF), a qual foi julgada improcedente pelo Supremo no ano de 2020.
No referido julgamento, o Supremo seguiu o voto do relator, ministro Fachin, afirmando que não havia usurpação de competência na referida lei; que se encontrava em consonância com os princípios da “duração razoável do processo” e da “celeridade”, dando efetividade ao direito fundamental previsto no art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal; e que as normas ali previstas não representam exercício do poder disciplinar sobre a advocacia, e sim, a simples sistematização do processo judicial eletrônico.
Invocando o “princípio da caridade” (Blackburn e Davidson), permito-me invocar o Fator Julia Roberts (para saber mais sobre o termo ver aqui) e digo: a decisão do Supremo está equivocada.
Se o poder normativo do Judiciário redunda na possibilidade de alteração da ordem dos processos nos tribunais — expressamente prevista no Código de Processo Civil — e restringe indevidamente a possibilidade de realização de verdadeira sustentação oral dos argumentos expostos no recurso, há evidente submissão do advogado ao Judiciário e violação do artigo 133 da Constituição.
Qualquer proposição legislativa nesse sentido seria flagrantemente inconstitucional, mas uma simples do Resolução do CNJ é capaz de fulminar o direito do advogado de sustentar oralmente? Há algo de muito errado.
Por derradeiro, do referido artigo supramencionado, destaco o seguinte trecho em que são apontadas as principais violações incorridas pela referida Resolução no CNJ:
Violação ao contraditório e ampla defesa (Art. 5º, LV da CF/88)
– A sustentação oral presencial permite interação direta com os julgadores
– O formato assíncrono elimina a possibilidade de perceber reações e adaptar argumentos:
– Perde-se a capacidade de responder questionamentos em tempo real
Violação ao CPC/2015
– Art. 937 estabelece expressamente o direito à sustentação oral presencial
– Art. 7º garante paridade de tratamento entre as partes
– Art. 9º assegura o contraditório participativo
– Art. 10 veda decisões surpresa sem prévia oportunidade de manifestação
Prejuízos às prerrogativas da Advocacia (Lei 8.906/94):
– Art. 7º, IX – direito de sustentação oral presencial
– Art. 7º, X – direito de usar a palavra pela ordem
– Compromete a essência da advocacia como função essencial à justiça
– A Lei nº 8.625, Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, preceitua no artigo 41, inciso III, que é prerrogativa dos membros do Ministério Público, no exercício de suas funções, “ter vista dos autos após distribuição às Turmas ou Câmaras e intervir nas sessões de julgamento, para sustentação oral ou esclarecimento de matéria de fato”.
Perfeito. Urge, pois, que a comunidade jurídica resista. Somos muitos. Não vamos nos entregar assim. Afinal, esse não é o único problema da advocacia. É a ponta do iceberg nestes tempos de opção pelas efetividades quantitativas em claro detrimento às efetividades qualitativas.
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[1] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Estado de Direito e devido processo legal. Revista diálogo jurídico, Salvador, n. 11, jan., 2002. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br/pdf_11/DIALOGO-JURIDICO-11-FEVEREIRO-2002-LUCIA-VALLE-FIGUEIREDO.pdf. Acesso em: 10 dez. 2024.
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