Opinião

Da responsabilidade penal e civil envolvendo disputa pela escolha de assento em avião e a divulgação de imagem não autorizada

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  • é advogado graduado na Universidade Federal de Santa Catarina e especializado em Direito Empresarial pela Fundação Boiteux e pela Fundação Getúlio Vargas.

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11 de dezembro de 2024, 16h10

Viralizou nas redes sociais nesta última semana o caso em que uma passageira – Jennifer Castro – é filmada em avião da Gol Linhas Aéreas após recusa de troca de assento em favor de uma criança acompanhada da mãe – Aline, o que gera reprimenda pública de sua conduta, com posterior postagem do vídeo em redes sociais – Tiktok.

O assunto leva à reflexão sob vários prismas. Primeiramente, em nossa Constituição Federal encontramos no artigo 5º, II previsão expressa no sentido de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Essa mesma Constituição dita uma hierarquia legal, e entre este arcabouço está a Lei nº 11.182/2006, que criou a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) como órgão responsável pela regulamentação do setor aéreo.

A Anac, exercendo seu múnus, editou a Resolução nº 400/2016, que em seu artigo 2º estipula que na oferta dos serviços de transporte aéreo, o transportador poderá determinar o preço a ser pago por seus serviços, bem como suas regras aplicáveis, nos termos da regulamentação expedida pela Anac. 

Dito isso, temos que a ocupação de assentos se dá ou a partir de escolha pelo passageiro, mediante pagamento de valor antecipado, ou, quando isso não for feito, pela empresa aérea que executa o trajeto.

Com essas observações chega-se à conclusão de que nenhum passageiro embarcado precisa ceder o assento já designado a outrem, tampouco à criança. A Anac inclusive editou recentemente uma Portaria nº 13.065/2023, dispondo em seu artigo 1º, que as empresas aéreas deverão assegurar, no momento da aquisição das passagens ou se houver necessidade de alteração, o direito de passageiros menores de 16 (dezesseis) anos a assento adjacente ao de seu responsável/familiar.

A portaria deixa claro, portanto, que as companhias aéreas têm um dever legal de garantir que as crianças viagem ao lado de seus pais, e o vídeo sugere que era esse o status durante o imbróglio. Não lhes dá, contudo, qualquer privilégio de sentar-se em janelas ocupadas por passageiros adultos, ou seja, a percepção dessa pretensão seria totalmente subjetiva por parte da genitora que a invocou.

Com tais colocações, chega-se à conclusão de que legalmente a passageira Jennifer Castro estava assistida. Ou seja, agiu no exercício regular de um direito.

Constrangimento ilegal

Dito isso, passemos a detalhar o que realmente ocorreu na aeronave, após a passageira recusar-se à troca de assento. Nesse interim, vemos que é de certa forma tolerável, num ambiente social, que se argumente em prol de um interesse, mas ao que tudo indica, no caso, houve excessos.

Consta a seguinte fala no vídeo que circula: “Estou gravando a sua cara porque você não tem empatia com as pessoas“. E completa: “Isso é repugnante, no século 21, não ter empatia com uma criança. Se fosse com um adulto, tudo bem, agora com criança é demais“.

Há uma divergência em relação à autoria da voz, pois ao que tudo indica não seria da mãe que iniciou o debate com Jennifer, mas de outra passageira, Eluciana Cardoso.

Spacca

O assunto deverá ser apurado, mas do ponto de vista penal a primeira reflexão em relação à questão envolve o artigo 146 do CP, que trata do constrangimento ilegal, pois se nota no vídeo certa disposição em compelir a passageira, perante as demais pessoas presentes, a uma mudança do assento, embora ela não tivesse esse dever legal. Mas a tipicidade no caso não se encontra, já que pressupõe o uso de violência, grave ameaça, ou ainda reduzir, por qualquer, meio a capacidade de resistência da vítima, o que não ocorreu.

Também não se observa com clareza o delito de ameaça (artigo 147 do CP), pois este exige promessa de mal grave, não vista na filmagem.

No entanto, o artigo 139 do Código Penal fala da difamação, existente quando se atribui um fato ofensivo à reputação de pessoa perante terceiros. Guilherme de Souza Nucci (In Direito Penal – Partes Geral e Especial – Esquemas & Sistemas. Rio de Janeiro: Forense: MÉTODO. 2021, p. 307 -ebook), a propósito, esclarece que difamar já significa imputar algo desairoso a outrem, embora a descrição abstrata feita pelo legislador tenha deixado claro que, no contexto do crime do art. 139 do CP, não se trata de qualquer fato inconveniente ou negativo, mas, sim, de fato ofensivo à sua reputação. Com isso, excluiu os fatos definidos como crime – que ficaram para o tipo penal da calúnia – bem como afastou qualquer vinculação à falsidade ou veracidade deles. Assim, difamar uma pessoa implica divulgar fatos infamantes à sua honra objetiva, sejam eles verdadeiros ou falsos.

No caso em tela o ânimo da agente consistiu em recriminar a atitude da passageira em relação a crianças, dizendo que não possui empatia por menores, em tom público. A empatia, conforme o Dicionário Online de Português (https://www.dicio.com.br/empatia/) é o ato de se colocar no lugar de outra pessoa, buscando agir ou pensar da forma como ela pensaria ou agiria; compreensão: demonstrou empatia ao ouvir os problemas de sua mãe.

Logo, nota-se que a conduta acima, que intentou impor a pecha de frieza e falta de amor ao próximo à passageira, para reivindicar sem respaldo legal o assento, sugere a abertura de apuração do tipo penal. Vale destacar, porém, que tal delito é processado mediante ação penal privada, ou seja, depende de queixa-crime apresentada pela vítima.

Um ponto subsequente é bastante relevante, e serve de reflexão nos dias atuais, em que o uso das redes sociais se dá em larga escala pelas pessoas. É que, se reconhecido o crime em juízo, pode-se aplicar a causa de aumento de pena prevista no artigo 141, §2º, do Código Penal, que triplica a sanção quando o crime é cometido por meio capaz de propagar a disseminação, como a internet.

Quando chegamos neste aspecto, no entanto, o que se vê é que a propagação teria ocorrido por meio da ferramenta Tiktok, em página da filha de Eluciana Cardoso. Neste caso seria ela, que é maior de idade, a responsável pelo delito com a causa agravante. A filha alegou em rede nacional que pretendia publicar a imagem com emoji (representação gráfica) nos rostos dos envolvidos, mas isso não ocorreu, ou seja, o elemento no máximo influirá na avaliação do dolo ou culpa, já que o eventual erro, se de fato existiu, aponta no mínimo para negligência.

Proteção à honra e divulgação não autorizada de imagens

No âmbito cível, por outro lado, dois aspectos merecem enfoque.

Primeiro é que a própria situação dentro da aeronave, ainda que tivesse se passado alheia à rede social, aponta para provável violação do artigo 5º, inciso X, da Constituição, que assegura a proteção à honra, imagem, intimidade e vida privada, garantindo indenização em caso de violação.

Isso se dá, pois, além da invocação do assento para a criança não constituir obrigação a cargo de Jennifer Castro, quem a fez em tom alto, com visível intenção de chamar a atenção dos passageiros pelo ocorrido, obteve a intervenção de terceiras pessoas – como homem não identificado no vídeo – a fim de respaldá-la. Havia intenção de buscar apoio social para forçar a obtenção do assento – cuja entrega não cabia à passageira – e a própria expressão desta última indica o constrangimento diante dos fatos.

O artigo 186, do Código Civil prevê que o causador de dano, ainda que moral, comete ato ilícito, e de acordo com o artigo 927 deve repará-lo, ou seja, sugere-se caber à vítima pleitear indenização por danos morais.

Antes de encerrar, é imperioso frisar que o artigo 20 do Código Civil também proíbe a divulgação não autorizada de imagens, ou seja, em momento algum seria possível propagar a imagem da passageira em redes sociais. Ao cidadão comum se exige o cuidado de não expor terceiras pessoas, e retirá-las do anonimato sem o devido assentimento, e a violação de tal dever reforça sobremaneira um pleito de dano moral em juízo. Irrelevante que o agente propagador tivesse intenção de usar originariamente emojis para cobrir a face, simplesmente pois não o fez, e isso aponta no mínimo para o elemento culposo.

Com isso encerramos este artigo, esperando que contribua para que o conceito de turbulência nos voos continue associado apenas às questões climáticas, e não a entreveros dentro das aeronaves, capazes de parar nas redes sociais, e dali nos tribunais.

Autores

  • é advogado graduado na Universidade Federal de Santa Catarina e especializado em Direito Empresarial pela Fundação Boiteux e pela Fundação Getúlio Vargas.

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