Cancelamentos, reajustes e negativas na saúde suplementar exigem urgente atualização
11 de dezembro de 2024, 8h00
A altíssima judicialização na saúde suplementar tem sido apontada pelo Conselho Nacional de Justiça, alcançando 219.340 novos casos em 2023, ou seja, detectou-se um aumento de aproximadamente 33,5% em comparação com o ano anterior [1].
Diante do cenário estigmatizante, o CNJ editou a Resolução n.º 530/2023, que instituiu a Política Judiciária de Resolução Adequada das Demandas de Assistência à Saúde e estabeleceu diretrizes para o planejamento de ações. No 1º semestre de 2024, 34.947 reclamações foram apresentadas perante a ANS, considerando-se o 3º maior patamar da série histórica do setor [2].
Em 21/11/2024, durante o 3º Congresso do Fonajus, o CNJ e a autarquia reguladora firmaram acordo de cooperação técnica para reduzir a litigiosidade [3]. Sem embargo das diligências, acima mencionadas, questiona-se se, efetivamente, conseguirão reverter o contexto e qual seria o verdadeiro cerne da crescente e desenfreada conflituosidade neste campo.
A primeira premissa, a ser registrada, concerne à desproteção normativa para uma multiplicidade de usuários, ou seja, existem lacunas da Lei nº 9.656/98, que urgem colmatação. De acordo com dados estatísticos registrados pela ANS, o Brasil possui 51 milhões de beneficiários, porém, 23 milhões de consumidores ainda se encontram atrelados aos contratos firmados antes do início da vigência da LPS [4].
Ora, como é cediço, com o julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 1931 e em consonância com o Tema 123/STF, a aludida Lei não se aplica aos planos de saúde “antigos”, engendrando uma miríade de demandas judiciais. Importante salientar que a adaptação e/ou migração destas estruturas contratuais obsoletas não são incentivadas em decorrência da Resolução Normativa ANS nº 562/2022 admitir uma elevação de até 20,59%.
Ademais, vislumbram-se 8,8 milhões contratantes de planos individuais/familiares e 36,3 milhões com vínculos de natureza coletiva, empresarial ou por adesão. Quanto aos contratos coletivos, inexistem normas para se evitar as rescisões unilaterais e a fixação dos reajustes anuais com base nos custos operacionais, eis que, respectivamente, o artigo 13, parágrafo único, I a III, da LPS [5], somente aplica-se aos liames individuais/familiares e a autarquia reguladora não interfere nas majorações, ficando ao encargo das operadoras.
Ora, efetivando-se o somatório do quantitativo de beneficiários de planos “antigos” e coletivos, obtém-se o resultado de 42,2 milhões de usuários sem a devida proteção; o que significa a média de um total de 80% que não dispõe das salvaguardas imprescindíveis. A ausência de satisfatória normatização é um dos principais fatores para a excessiva litigiosidade.
Focos
A presente coluna circunscreve-se a abordar a carência normativa diante de quatro dos principais focos de conflitos judiciais, quais sejam: i) a manutenção de planos de saúde “antigos” à margem da Lei nº 9.656/98; ii) a desproteção quanto aos reajustes e cancelamentos dos contratos coletivos; iii) as negativas arbitrárias de coberturas; e iv) os injustos mecanismos de regulação. As propostas para a alteração da Lei n.º 9.656/98 encontram-se reunidas no Projeto de Lei n.º 7419/2006, que congrega 299 outros prospectos normativos [6], cujo parecer fora exarado em 12/09/2023.
Não contemplam a tutela dos beneficiários dos contratos anteriores à LPS, porém, avançam quanto à modalidade coletiva. Por serem vínculos que tangenciam o bem maior da vida, sem o qual o ser humano fenece [7], os prospectos legislativos deveriam propiciar a imprescindível regulamentação de todos os vínculos dessa seara.
Quanto à suspensão/rescisão unilateral dos contratos, o aludido PL propugna pela alteração do artigo 13, caput, e parágrafo único, II, da LPS, para a coibir não somente em relação aos planos individuais/familiares, mas também abarcando os coletivos. Restou previsto que em caso de ausência de pagamento, por período superior a sessenta dias consecutivos, a providência poderá ser adotada, desde que o consumidor seja comprovadamente avisado, por meio digital, a cada vinte dias de inadimplência.
Impõe-se também que seja notificado, presencialmente ou por comunicação escrita, com aviso de recebimento, até o quinquagésimo dia de inadimplência. Há progresso benéfico para os consumidores com base em três fatores: i) o débito deverá ser por um período contínuo e a norma atual admite que possa ser intermitente; ii) a estrutura legal vigente apenas impõe a notificação no quinquagésimo dia e tenciona-se instituir o alerta em prazo menor, possibilitando a quitação; e iii) ordena-se a notificação presencial ou, por via postal, desde que com AR. As Resoluções Normativas n.ºs 593/2023 e 613/2024 versam sobre o tema, mas não contemplam disposições tão protetivas [8].
A inexistência de regras para os aumentos dos planos coletivos, com base na variação de custos operacionais, é outro fator que acarreta o proeminente panorama de litigiosidade. De acordo com o artiog 37 da RN nº 565/2022, as operadoras deverão formar um agrupamento com todos aqueles que possuam menos de trinta beneficiários para o cálculo do percentual único de reajuste. O PL, em análise, sugere a inserção do artigo 15-B na LPS, com o fito de esta mesma regra seja aplicável para os contratos coletivos com menos de cem usuários.
Na hipótese de o índice configurar-se superior ao último percentual máximo de reajuste autorizado pela ANS para os vínculos individuais, deverá haver a sua anuência prévia. Em se tratando de cem ou mais pessoas, caso a majoração seja “consideravelmente superior ao último percentual máximo de reajuste autorizado para planos individuais”, deverá ser objeto de aval da autarquia. O ideal seria que tal normativa fosse aplicada a todos os liames, visto que as elevações arbitrárias continuarão sendo implementadas [9] e as lides permanecerão constantes.
No decorrer da relação contratual entre usuários e operadoras, as constantes negativas infundadas de coberturas conduziram o legislador a editar a Lei n.º 14.454/2022, que inseriu o artigo 10, § 13, na LPS. Os tratamentos ou procedimentos prescritos pelo médico ou pelo odontólogo assistente, conquanto não estejam previstos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, poderão ter a sua cobertura autorizada, desde que sejam cumpridos requisitos.
Exige-se a comprovação da eficácia, baseada em evidências científicas e plano terapêutico, e se existirem, recomendações expedidas pela Conitec. Será viável também a apresentação de diretriz de, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologias em saúde, que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.
Contudo, segundo recente pesquisa realizada pelo Instituto brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e o Núcleo de Direito, Tecnologia e Jurimetria da PUC-SP, o mencionado conjunto normativo não amenizou as arbitrariedades quanto ao não custeio de despesas necessárias [10]. Não se pode olvidar que, no Supremo Tribunal Federal, tramitou a ADI 7.265, questionando-se a constitucionalidade da intitulada “Lei do Rol” [11], sendo julgada improcedente.
Com o fito de mitigar o cenário das negativas de coberturas, o PL nº 7419/06 preconiza a inserção do § 14, incisos I e II, no artigo 10 da LPS, prevendo que a ANS, por meio de regulamento, defina o conceito de evidência científica, bem como que fiscalize o cumprimento da legislação, cominando as penalidades devidas.
Outro avanço diz respeito à alteração proposta para o artigo 12, I, alíneas “a” e “e”, garantindo-se a cobertura de exames laboratoriais solicitados não somente pelos médicos, como a atual legislação estabelece, mas também por nutricionistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais. O custeio de sessões e consultas com psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, e outros profissionais de saúde não médicos restará assegurado.
Aperfeiçoa-se adrede o inciso II, alínea “f” da LPS, albergando-se o custeio de despesas para acompanhantes, não se restringindo aos menores de idade, mas também de pessoas idosas, com deficiência e mulheres no período do pré-natal, do trabalho de parto e do pós-parto imediato.
O microssistema consumerista assenta-se nos pilares da informação e transparência [12] e o PL n.º 7419/06 propugna pela inserção do artigo 16-D da LPS, disciplinando a autorização de procedimentos ou serviços solicitados por profissional devidamente habilitado. Em caso de negativa de custeio, a operadora deverá informar o motivo do seu posicionamento, indicando a cláusula contratual ou o dispositivo legal que a justifique.
A comunicação com o beneficiário deverá ser por intermédio de documento escrito, utilizando-se de linguagem clara e adequada. De acordo com o parágrafo 3º, a ser acoplado naquele mesmo dispositivo, a tramitação do requerimento terá que prezar pela transparência, possibilitando que o usuário possa acompanhá-la, inclusive, por meio digital, ficando ciente das razões de eventuais atrasos ou discordância de assunção das despesas necessárias.
Quando se tratar de pessoa idosa, o parágrafo 4º estatui que o prazo, para a análise, deverá ser reduzido pela metade, mas, seria mais justo que também englobasse todos os casos de urgência e emergência.
Questões envolvendo reembolso de despesas, franquia e coparticipação têm sido objeto de judicialização dada a atual estrutura normativa vigente, razão pela qual o PL nº 7.419/06 contempla alterações. O artigo 12, inciso VI, da LPS, possibilita o reembolso em casos de urgência e emergência, nos limites das obrigações contratuais, quando não seja possível a utilização dos serviços próprios, contratados, credenciados ou referenciados, pelas operadoras.
O legislador visa inserir mais duas situações admissíveis envolvendo prestadores substituídos, podendo o beneficiário optar por sua manutenção, quais sejam: i) tratamento médico indispensável à sobrevivência ou incolumidade; e ii) terapias multidisciplinares para usuários com impedimentos de longo prazo.
Objetiva o PL que o valor máximo dos mecanismos financeiros de regulação não supere a contraprestação pecuniária mensal, e anualmente, ao correspondente a 12 (doze) contribuições. Por fim, o § 1º limita a coparticipação ao percentual máximo 30%.
A Lei nº 9.656/98 pressupõe imprescindível e impostergável modernização em virtude das práticas leoninas que se repetem na saúde suplementar, intensificando os prejuízos. O influxos dos agentes econômicos nas malhas legislativas têm atravancado a aprovação dos projetos de lei sobre a temática e o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor deve estar atento e, de modo coeso, integrado e altivo, atuar para que milhares de usuários não continuem sendo lesados [13].
Além da normatização das questões polêmicas, delineadas alhures, desvela-se crucial que a Agência Nacional de Saúde Suplementar seja demandada para rever a Resolução Normativa que disciplina a adaptação/migração dos planos “antigos”. Incabível atrelar a atualização destes contratos mediante arbitrárias elevações pecuniárias acatadas pela autarquia reguladora.
Não é admissível que 23 milhões de usuários permaneçam sem a incidência da LPS e tendo que recorrer ao aparato jurisdicional para a tutela dos seus direitos. Conclui-se que acordos técnicos não conseguirão mitigar o lastimável panorama atual que requer normatização e postura diligente da ANS quanto às punições necessárias.
__________________________________
[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/saude-suplementar-pontua-impacto-de-processos-judiciais-para-equilibrio-do-setor/.Acesso em: 20 set. 2024.
[2] ANS: Reclamações contra planos de saúde atingem número mais alto do ano em julho. Disponível em: https://istoedinheiro.com.br/ans-reclamacoes-contra-planos-de-saude-atingem-numero-mais-alto-do-ano-em-julho/ Acesso em: 20 set. 2024.
[3] MIGALHAS. CNJ e ANS firmam acordo para reduzir judicialização da saúde suplementar. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/420299/cnj-e-ans-firmam-acordo-para-reduzir-judicializacao-da-saude. Acesso em: 24 nov. 2024.
[4] Disponível em: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/numeros-do-setor/ans-divulga-dados-de-beneficiarios-referentes-a-agosto-de-2024. Acesso em: 18 set. 2024.
[5] Cf.: BOTTESINI, Maury Ângelo.; MACHADO, Mauro Conti. Lei dos Planos e Seguros de Saúde. 3. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2017, p. 132-138.
[6]Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/56a-legislatura/comissao-especial-pl-7419-06-planos-de-saude-1. Acesso em: 18 set. 2024.
[7] Cf.: GHERSI, Carlos Alberto; WEINGARTEN, Celia; IPPOLITO, Silvia C. Contrato de medicina prepaga. 2. ed. atual. e ampl. Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 55.
[8] Cf.: SILVA, Joseane Suzart Lopes da Silva. Planos de saúde não podem ser cancelados por inadimplência sem notificação prévia. Conjur, Garantias do Consumo, 2 de outubro de 2024, 8h00. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-02/planos-de-saude-nao-podem-ser-cancelados-sem-notificacao-previa-diante-de-inadimplencia/. Acesso: 20 nov. 2024.
[9] Sobre as práticas abusivas no setor mercadológico, consultar: RAYMOND, G. Droit de la consommation. 5. ed. Paris: Lexis Nexis S.A., 2019, p. 37-55. KLOEPFER, Michel. Handbuch der Verfassungsorgane im Grundgesetz. Berlin: Duncker & Humblot, 2022, p. 100-120.
[10] IDEC. Pesquisa Idec/PUC-SP mostra que nova Lei do Rol não impactou judicialização contra planos de saúde. Disponível em: https://idec.org.br/release/pesquisa-idecpuc-sp-mostra-que-nova-lei-do-rol-nao-impactou-judicializacao-contra-planos-de. Acesso em: 20 ago. 2024.
[11] Conferir: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6358147.
[12] Cf.: MARQUES, Cláudia Lima. Prefácio da obra Plano de Saúde e Direito do Consumidor, de Antônio Joaquim Fernandes Neto, Minas Gerais: Del Rey, 2002. p. XI. MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 283-318.
[13] Cf.: GREGORI, Maria Stella. Insatisfação geral: planos de saúde na berlinda. Revista Consultor Jurídico, Garantias de Consumo, 26 de junho de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-26/os-planos-de-saude-na-berlinda/. Acesso em 27 ago. 2024. TRETTEL, Daniela Batalha; KOZAN, Juliana Ferreira; SCHEFFER, Mario César. Judicialização em planos de saúde coletivos: os efeitos da opção regulatória da Agência Nacional de Saúde Suplementar nos conflitos entre consumidores e operadoras. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 166-187, 2018.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!