Opinião

Backlash é inevitável, mas Supremo Tribunal Federal busca minimizá-lo

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  • é mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) professor de Direito Constitucional e coordenador do curso de direito das Faculdades Doctum de Caratinga e coordenador do Núcleo de Estudos Realistas do Direito e membro do Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ).

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11 de dezembro de 2024, 20h12

Atualmente, está no lugar comum afirmar que o Supremo Tribunal Federal se consolidou como um ator político central na estrutura democrática brasileira. Diversos fatores contribuem para esse status: o papel da corte como guardiã da Constituição em um modelo democrático sustentado por uma carta constitucional extensa, que combina os sistemas de controle concentrado e difuso; sua atuação como instância ordinária e recursal em casos envolvendo prerrogativas de função; a proximidade com o Tribunal Superior Eleitoral, cuja composição inclui parte de seus ministros; entre outros elementos igualmente significativos.

Como todo ator político, a Corte é constantemente alvo de críticas, e suas decisões frequentemente dominam a agenda midiática do país. Um breve retrospecto das últimas décadas revela algumas das principais pautas que não apenas marcaram a atuação da corte, mas também moldaram a percepção pública sobre seu papel na República.

O julgamento do mensalão, em 2012, marcou simbolicamente o protagonismo político do Supremo Tribunal Federal, projetando a corte ao centro das atenções nacionais e transformando ministros como Joaquim Barbosa em figuras populares, até caricaturadas como bonecos de Olinda. Antes disso, o STF já demonstrava sua força institucional em decisões importantes, como a demarcação das terras indígenas Raposa Serra do Sol (2009), a liberação do uso de células-tronco embrionárias (2008) e o reconhecimento da união estável homoafetiva (2011).

Em 2012, reafirmou a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, reforçando a moralidade eleitoral, e, a partir de 2014, consolidou-se como protagonista nos desdobramentos da operação “lava jato”. Nos últimos anos, acumulou decisões emblemáticas, como a equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo (2019), a revisão da prisão após condenação em segunda instância (2019), a garantia da autonomia de estados e municípios na pandemia de Covid-19 (2020), a prisão do deputado Daniel Silveira (2021) por ataques às instituições democráticas, a ordem de prisão preventiva do blogueiro Allan dos Santos (2021) por disseminação de desinformação, e o julgamento das responsabilidades pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, além da pressão em torno do marco temporal das terras indígenas, decidido em 2023. Essas decisões reafirmam o papel do STF nos debates mais sensíveis e polarizados da política brasileira.

Com tantas decisões de grande impacto, é inevitável que o Supremo Tribunal Federal desagrade pessoas, instituições e grupos políticos, gerando reações e rebotes. O fenômeno, conhecido como backlash, descreve reações negativas organizadas contra decisões ou políticas percebidas como rupturas significativas com valores, tradições ou interesses estabelecidos[1]. O backlash vai além da simples discordância, caracterizando movimentos de resistência que podem incluir protestos, campanhas midiáticas e até tentativas de reverter decisões ou enfraquecer a autoridade dos responsáveis.

No Brasil, o backlash contra o STF assume formas institucionais, como o “pacote anti-Supremo”[2], que inclui propostas como a PEC 50, que permite ao Congresso Nacional revisar decisões da corte, e a PEC do Marco Concepcionista, que busca restringir direitos reprodutivos. A reação também se manifesta fora do âmbito estatal, como nas críticas da CNBB e das Grandes Lojas Maçônicas do Brasil, que recentemente condenaram o início do julgamento da ADPF 442, ação que pode permitir a interrupção da gestação até a 12ª semana. São exemplos que ilustram como decisões da Corte podem mobilizar diferentes setores da sociedade em oposição.

Considerando que o STF se posiciona não apenas como um ator jurídico, mas também como um ator político, e que tais atores necessitam de legitimidade democrática para sustentar sua atuação, duas perguntas orientam a estruturação deste artigo: o STF deve se preocupar com sua legitimação social e, consequentemente, moderar suas decisões para evitar o backlash? Além disso, a corte já adota mecanismos de contenção que considerem as possíveis reações institucionais e sociais contrárias às suas decisões? Focado na segunda questão, abordarei dois pontos principais a seguir: primeiro, o explícito engavetamento da ADPF 442 e a manifestação do ministro Barroso a respeito do tema; segundo, a postura histórica e recente do tribunal em questões relacionadas à religião, que demonstram um cuidado diplomático em relação ao sentimento religioso no país.

Evitaremos falar de aborto, por enquanto — assim disse Barroso

Os temas que dialogam com a religiosidade talvez sejam dos mais propensos a desencadear o backlash, devido à profunda mobilização emocional e cultural que ele provoca. É nesse contexto que se insere a discussão sobre o aborto, uma das questões mais polarizadoras no Brasil, envolvendo diretamente valores religiosos, sociais e individuais. Em resposta à pergunta sobre se o STF já adota mecanismos de autocontenção frente às reações institucionais e sociais, a conduta recente do ministro Luís Roberto Barroso oferece uma resposta clara. Ele foi explícito em praticar autocontenção por cálculo político.

Spacca

Em novembro de 2023, Barroso, que já havia se manifestado publicamente a favor do direito das mulheres à interrupção voluntária da gravidez, declarou que, embora considerasse o aborto até a 12ª semana um direito fundamental ligado à liberdade sexual e reprodutiva, não levaria o tema ao plenário enquanto presidente do STF. Segundo o ministro, a decisão de não pautar a ADPF 442 se baseava na avaliação de que o assunto ainda não estava suficientemente “maduro” na sociedade brasileira para ser debatido em um ambiente de polarização extrema. Essa postura revelou uma estratégia: engavetar temporariamente a ação para evitar um confronto direto com os setores mais resistentes à mudança (grupos conservadores).

Duas reflexões emergem desse episódio. Primeiro, tudo indica que, em um futuro mais favorável, o STF reconhecerá a legalidade do aborto até a 12ª semana de gestação. As decisões e teorias já mobilizadas pela corte, como a adoção do marco neurológico no julgamento sobre anencefalia, apontam para essa direção. O tribunal tem demonstrado, em seus precedentes, um compromisso com a proteção de direitos fundamentais e a liberdade individual, o que reforça a perspectiva de que, mais cedo ou mais tarde, a descriminalização do aborto será uma realidade jurídica no Brasil.

Segundo, é evidente que o adiamento do julgamento da ADPF 442 não decorre de uma indefinição jurídica, mas de um cálculo político. A decisão de Barroso de postergar o tema revela a sensibilidade do STF às reações sociais e institucionais que podem ameaçar sua legitimidade. Esse atraso estratégico reflete a consciência da corte sobre o impacto de suas decisões em um cenário político instável e profundamente influenciado por valores religiosos, em um contexto de intensa polarização.

Autocontenção e diplomacia em assuntos religiosos

Na mesma linha da decisão de autocontenção quanto à autorização do aborto, outros temas sensíveis foram tratados pelo Supremo Tribunal Federal, com cautela semelhante quando a pauta da religiosidade entrou em cena. A corte, consciente do potencial de mobilização social e do backlash que questões religiosas podem gerar, adotou uma abordagem que equilibra o respeito aos direitos fundamentais com a consideração pelos valores culturais e emocionais amplamente arraigados na sociedade brasileira, mas bastante explícita na tarefa de evitar confrontos e backlash.

Precedentes como a garantia da objeção de consciência por motivos religiosos, a autorização de assistência religiosa em estabelecimentos públicos, o reconhecimento do ensino religioso confessional em escolas públicas e o uso de símbolos religiosos em espaços estatais ilustram essa diplomacia.

Entre esses, o julgamento sobre o uso de símbolos religiosos em prédios públicos merece destaque, pois contraria uma expectativa de maior afirmação do Estado laico no Brasil [3].

A decisão, tomada este ano, permitiu que símbolos religiosos — predominantemente cristãos — continuassem adornando fóruns, prefeituras, presídios e escolas, sem que isso fosse considerado uma afronta à laicidade do Estado. O STF optou por não confrontar diretamente o sentimento religioso da população, reconhecendo que tais símbolos, embora oficialmente ligados a uma tradição religiosa específica, adquiriram ao longo do tempo uma dimensão cultural e identitária para grande parte da sociedade.

Essa escolha reflete um entendimento pragmático e estratégico: preservar a estabilidade institucional e evitar rupturas sociais que poderiam ser causadas por uma decisão mais assertiva em favor do Estado laico. A postura do tribunal demonstra uma clara intenção de conciliar o avanço de direitos fundamentais com a manutenção do diálogo com as crenças majoritárias. Tal diplomacia, embora criticada por setores que esperam uma defesa mais rígida da laicidade, revela um STF que, como ator político, busca navegar cuidadosamente em um terreno onde a religião e a política se entrelaçam profundamente, evitando exacerbar tensões em um país marcado pela diversidade religiosa e pelas intensas disputas culturais.

Que lições tirar? É preciso refletir sobre os rumos da ADC 93

Podemos concluir que o Supremo Tribunal Federal tem adotado uma postura diplomática em questões religiosas, buscando evitar o backlash e preservar a estabilidade social. No entanto, essa abordagem levanta uma questão relevante: até que ponto a diplomacia pode influenciar decisões que deveriam se basear exclusivamente em critérios técnicos? Essa preocupação se torna ainda mais pertinente diante de casos como a ampliação das imunidades tributárias para templos religiosos, um tema que não apenas envolve princípios constitucionais, mas também interesses econômicos e sociais significativos.

A ADC 93, recentemente proposta pelos partidos Podemos e Solidariedade, é um exemplo claro dessa tensão. A ação busca a validação de trechos de leis que garantem imunidade tributária a entidades religiosas [4]. Entre os pontos levantados, estão a impossibilidade de igrejas figurarem como contribuintes da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e a não incidência da Contribuição Previdenciária Patronal sobre valores pagos a religiosos, seja como remuneração ou para formação religiosa. Os partidos argumentam que a falta de um entendimento pacificado sobre essas normas tem gerado autuações e execuções indevidas contra templos de diversas denominações, o que motivou a busca de uma decisão definitiva do STF.

A relevância dessa questão foi reconhecida pelo relator, ministro Dias Toffoli, que decidiu submeter o caso diretamente ao plenário, sem análise prévia de liminar.

No entanto, a discussão sobre imunidade tributária para entidades religiosas vai além do âmbito jurídico. Ela envolve o equilíbrio entre a garantia da liberdade religiosa, prevista na Constituição, e a necessidade de evitar privilégios que possam ser percebidos como injustos ou excessivos em um Estado laico. Diante disso, surge a dúvida: a decisão na ADC 93 será tomada com base em critérios técnicos ou será influenciada pela diplomacia religiosa, marcada pela cautela em não desagradar setores amplamente representados na sociedade? Essa questão permanece em aberto e nos convida a refletir sobre os limites da diplomacia institucional do STF em temas religiosos. Serão cenas dos próximos capítulos, com implicações significativas para a relação entre Estado, religião e sociedade no Brasil.

 


[1] CONJUR. Renata Souza: O efeito backlash na jurisdição constitucional. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-28/renata-souza-efeito-backlash-jurisdicao-constitucional/. Acesso em: 5 dez. 2024.

[2] JOTA. Entre a defesa e o ataque: o pacote anti-STF e a interpretação constitucional. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/entre-a-defesa-e-o-ataque-o-pacote-anti-stf-e-a-interpretacao-constitucional. Acesso em: 5 dez. 2024.

[3] CONJUR. STF forma maioria contra retirada de crucifixos de prédios públicos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-nov-25/stf-forma-maioria-contra-retirada-de-crucifixos-de-predios-publicos/. Acesso em: 5 dez. 2024.

[4] CONJUR. Partidos pedem ao STF que valide imunidade tributária de entidades religiosas. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-03/partidos-pedem-ao-stf-que-valide-imunidade-tributaria-de-entidades-religiosas/#:~:text=Os%20partidos%20Podemos%20e%20Solidariedade,imunidade%20tribut%C3%A1ria%20a%20entidades%20religiosas. Acesso em: 5 dez. 2024.

Autores

  • é mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor de Direito Constitucional, coordenador Geral de Ensino nos Cursos de Direito da Rede de Ensino Doctum-MG e do Núcleo de Estudos Realistas do Direito (Nerd) e membro do Observatório da Justiça Brasileira (OJB-UFRJ).

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