Per relationem: a técnica ilegal e inconstitucional de fundamentação
9 de dezembro de 2024, 13h20
Assuntos recorrentes per relationem
Este artigo tratará mais uma vez do papel da doutrina. E dos diálogos que devem ser feitos pela doutrina com os tribunais. É o caso. Sempre invocando, com Blackburn e Davidson, o “princípio da caridade epistemológica”. Eu me esforço; e o meu interlocutor também. Para avançarmos. Em nome da ciência.
De quando em vez assuntos como esse do título retornam. Quando se acha que o tema poderia estar superado — afinal, com tantos livros escritos e cursos de pós-graduação discutindo se um juiz pode ou não simplesmente “per relacionar” (sic) — vem nova decisão do STJ e deixa a comunidade jurídica perplexa.
Ou não, porque a própria comunidade jurídica já nem se importa. Sua preocupação é saber o que os tribunais estão dizendo para “per relacionar” (fazer glosas, em outras palavras). Afinal, a tese de que “o direito é o que os tribunais dizem que é” já venceu. De há muito.
Aqui sigo na resistência. Como uma ovelha no meio de dez cães bravos. “Não tá morto quem peleia”, se diz aqui no Rio Grande do Sul.
Então.
O repórter Danilo Vital, aqui nesta ConJur (ver aqui) trouxe uma notícia “bombástica”: Juiz não precisa acrescentar motivação ao adotar fundamentação per relationem”. Lendo a reportagem, se pensa que a ConJur nunca tratou desse assunto. De pronto, coloco aqui dois artigos. Um, de minha lavra (“Fundamentação” per relationem — a “técnica” ilegal e inconstitucional), e outros dois: Você sabe o que é fundamentação ‘per relationem’? (Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa) e Há limites à fundamentação per relationem quando se analisa o artigo 316 do CPP? (Lucas Martins de Vieira). Mas, tudo bem. Em frente.
Os artigos citados dizem que as fundamentações per relationem são ilegais e inconstitucionais. Na verdade, a frase “fundamentação per relationem” é uma contradição performativa. Se é per relationem, não é fundamentação.
Na contramão, o STJ (e aqui entra a reportagem de Danilo) acaba de insistir na tese de que fundamentar per relationem não é bem ilegal e tampouco inconstitucional.
O caso recente é o seguinte: a defesa impetrou Habeas Corpus no STJ e conseguiu decisão monocrática da ministra Daniela Teixeira para anular as provas, por conta da fundamentação genérica da decisão que autorizou a diligência. Corretamente, para a ministra Daniela, per relationem não é fundamentação. E nulidade é nulidade.
A ministra considerou que, ao adotar a técnica da fundamentação per relationem, o magistrado deveria acrescentar motivação para justificar sua conclusão.
O Ministério Público de São Paulo, sempre atento contra o réu (está por se ver um recurso do MP a favor de direitos fundamentais do acusado) recorreu e conseguiu reverter a decisão na 5ª Turma. Venceu o voto divergente do ministro Joel Ilan Paciornik, acompanhado dos ministros Reynaldo Soares da Fonseca, Ribeiro Dantas e Messod Azulay Neto.
Para a corrente vencedora, a fundamentação per relationem basta para a decisão, desde que permita a compreensão dos motivos que levaram o julgador a tomar a decisão. Ou seja, relativizaram a proibição de decisão per relationem.
No caso esse, segundo a maioria da turma, o relatório policial que embasou o pedido tinha elementos fáticos que demonstravam a existência de fundadas suspeitas sobre a prática do crime de tráfico de drogas, incluindo diligências anteriores na investigação.
Assim, ficou justificada a concisão do juízo. Isso serviu para evitar exercício de tautologia (sic) na decisão — o uso de palavras diferentes para expressar a mesma ideia, apenas para justificar a fundamentação.
“Tendo sido a decisão de busca e apreensão baseada em elementos fáticos claros, consistentes e acessíveis, não há que se falar em nulidade por falta de fundamentação. A técnica adotada pelo juízo de primeiro grau foi legítima e compatível com os parâmetros jurisprudenciais estabelecidos por esta Corte”, disse Paciornik.
Meu contraponto: o dever de fundamentação não comporta exceção ou “de como per relationem é indevida por uma questão de princípio” — tudo porque fundamentação é um direito fundamental
No livro Comentário a Constituição do Brasil (escrito com Gilmar Mendes, JJ Gomes Canotilho, Ingo Sarlet e Leo Leoncy — ed. Saraiva, 2013, com novas edições — Prêmio Jabuti em 2014), escrevi que:
“a fundamentação das decisões — o que, repita-se, inclui a motivação — mais do que uma exigência própria do Estado Democrático de Direito, é um direito fundamental do cidadão.”
Em sentido semelhante, só que na esfera da teoria política, Rainer Forst desenvolve a ideia do direito à justificação (das Recht auf Rechtfertigung). Em outras palavras, apenas a partir da justificação normativa do exercício do poder estatal e, portanto, do poder judiciário, podemos conceber um modelo político e jurídico que inverta o pressuposto hobbesiano (e positivista) de que é a autoridade e não a verdade que impõe o Direito (auctoritas non veritas facit legem).
O ponto que desenvolvo hoje diz respeito à ideia de que magistrados podem se apropriar da fundamentação de decisões prévias e transpô-las ao caso que têm diante de si para julgamento. Em outros termos, trata-se de um “Ctrl+c Ctrl+v” jurídico. Só que com um nome grandiloquente: fundamentação ou sentença per relationem.
Conceito de fundamentação per relationem
Levada à literalidade, per relationem é “decisão referencial”. Taruffo diz que a técnica da motivação per relationem consiste na técnica decisória empregada quando “o juiz não elabora em um ponto decisório uma justificação autônoma ad hoc, mas se aproveita da justificação contida em outra sentença“. E isso que ele está falando de matéria cível e não penal (liberdades).
Há outros conceitos no Brasil, todos “darwinianamente” adaptados para justificar “fundamentações” replicadas.
Posição do STJ
Como nosso “sistema” (que não é sistema) de precedentes é frágil, há posições das mais variadas. O Superior Tribunal de Justiça tem admitido a sua utilização, afirmando que, para que não haja ilegalidade, o órgão judicial, ao se valer de trechos de decisão anterior ou de parecer ministerial como razão de decidir, deve adicionar motivação que justifique a sua conclusão, com menção a argumentos próprios (por todos, AgRg no HC 613.826/SC, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª T., DJe 2/12/2020).
Em matéria penal, o STJ fixou a tese nº 18: “A utilização da técnica de motivação per relationem não enseja a nulidade do ato decisório, desde que o julgador se reporte a outra decisão ou manifestação dos autos e as adote como razão de decidir“.
Já mais adiante falarei do “desde que”. A Tese nº 18 afronta a CF e o CPC. E mais ainda, o CPP, quando se tratar de direito penal.
Posição do STF
Para o Supremo Tribunal Federal, é válida a motivação per relationem nas decisões judiciais, inclusive quando se tratar de remissão a parecer ministerial constante dos autos (cf. HC 150.872-AgR, por todos).
Sem julgar em Repercussão Geral específica, o Supremo Tribunal Federal reafirmou o entendimento ao afetar e julgar a RG na Questão de Ordem no Agravo de Instrumento nº 791292/PE no sentido que:
“o art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas.“
Veja-se o problema da decisão do STF. A CF exige fundamentação, mas não diz como. Seria isso tão simples assim? Há vasta literatura doutrinária sobre isso.
De como a questão complexa e o que ainda não foi dito
Tanto a posição do STJ quanto a do STF não deixam clara a questão. Com todo cuidado, tentarei analisar a temática.
Com efeito, dizer que se admite fundamentação (ou motivação) per relationem “desde que” o julgador se reporte a outra decisão ou manifestação dos autos e as adote como razão de decidir (ou algo semelhante) é relativizar o artigo 93, IX, da CF. Basta ver a ambiguidade e vagueza do enunciado. Nele cabem coisas demais.
O que é “reportar” a outra decisão? Qual “manifestação dos autos”? O que é isto — “adotar como razões de decidir”? O espaço de discricionariedade, aqui, transforma o julgador em legislador intersticial com poderes de redefinir a própria Constituição.
É mais fácil definir o sentido de injusta agressão do que preencher a abertura semântica dos enunciados do STJ e do STF.
O que se pode entender por “ainda que sucintamente”? Quantas linhas? Qual é o limite? Existiria um “sucintômetro” para definir o sentido e o alcance?
Violação das leis processuais
Mais do que isto, parece que parte da doutrina e da jurisprudência não está levando em conta que o CPC (artigo 489) e o artigo 315 (CPP) estabelecem os requisitos de uma “decisão fundamentada”.
Um registro: a decisão do STF tida como paradigma é de 2010; o CPC é de 2015; e o CPP foi alterado na sequência. Logo, o STF tem de reanalisar a matéria. Não vou reproduzir os dispositivos (489 e 315) aqui, por desnecessário.
Parece evidente que as decisões do STJ e STF que convalidam fundamentação per relationem desbordam frontalmente do CPC e do CPP. Não leva(ra)m em conta os códigos processuais. Eis o mistério do direito brasileiro. Os tribunais sabem mais do que o legislador, mesmo quando este seja claro. Veja-se o caso dos embargos de declaração no caso de inadmissão de REsp e RE nos tribunais de origem. O STF e o STJ redesenharam o artigo 1022 do CPC.
Também parece evidente que as exigências do artigo 93, IX, da Constituição do Brasil, estão postas nos dispositivos 489 do CPC e 315 do CPP.
Não há esse espaço discricionário para que os tribunais redefinam a Constituição e tampouco desdigam o que dizem os códigos. Há um estatuto epistemológico mínimo (como diria Otavio Luiz Rodrigues Jr) da legislação processual.
Carece de melhor fundamentação a posição das Cortes superiores nesse caso. Basta que se faça uma análise cuidadosa, isolada ou conjuntamente dos seis incisos em questão — análise essa aqui desnecessária, face a sua quase-auto evidência.
Uma adequada hermenêutica do artigo 93, IX, em combinação com os requisitos dos artigos do CPC e CPP, aponta para direção contrária à tese da admissão per relationen.
Ou seja, o equívoco pode estar em se pensar que per relationem poderia ser uma espécie de decisão heterodoxa. Ocorre que, combinando os dispositivos legais-constitucionais acima referidos, já hoje não se pode falar em fundamentação per relationem. Ela, em si mesma, é “o problema” e não apenas “um problema”.
Explicarei melhor esse ponto. Qualquer decisão bem fundamentada por certo referirá outras decisões para reforço ou cotejo, doutrina e jurisprudência. Veja-se que os artigos 489 e 315 sequer permitem a simples citação de uma ementa sem contextualização. Aí é que reside o ponto fulcral. A citação de outras decisões não transforma a decisão em per relationem.
Numa palavra: diante do espelhamento que os artigos 489 e 315 fizeram do artigo 93, X, da CF, restará ainda algo da fundamentação per relationem?
Penso que não.
A propósito: há casos na cotidianidade do direito em que a denúncia do MP faz recorta e cola do auto de infração do agente fiscal. Isso nem chega a ser per relationem. É menos.
Post scriptum: Vejam o alcance e os efeitos colaterais de uma tese inconstitucional
Minha preocupação, aqui, foi mais no campo das liberdades. Mas, o que dizer quando se trata de direitos de sobrevivência — justiça do trabalho? Vejam a posição do TST:
A confirmação integral da decisão recorrida por seus próprios fundamentos não implica vício de fundamentação, nem desrespeito às cláusulas do devido processo legal, do contraditório ou da ampla defesa.
O ponto é: de que adianta conquistarmos direitos fundamentais na CF e nas leis se o judiciário se substitui ao legislador? O que explica essa posição do TST?
Com a palavra, a doutrina. Que deve(ria) doutrinar…! Mas que parece cansada. Talvez a doutrina, em sua maior parte, agora ainda mais prejudicada pela pós-modernidade e pelos algoritmos, tenha levado demais a sério a célebre passagem do min. Humberto Gomes de Barros: “Não me importa o que pensam os doutrinadores”. “Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. Decido, porém, conforme minha consciência”. Isso pegou.
A coisa está difícil. E vai piorar. Estão nos retirando até o direito de nossos recursos serem apreciados em seção presencial.
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