Direitos Fundamentais

O início do julgamento da ADI 5.728/DF e a (in)constitucionalidade da EC 96/2017 (Vaquejada)

Autores

8 de dezembro de 2024, 8h00

No dia 6 de dezembro de 2024, teve início o julgamento virtual, pelo Supremo Tribunal Federal, das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 5.728/DF e 5.772/DF, ajuizadas, respectivamente, pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal e pela Procuradoria-Geral da República. Ambas as ações têm por objeto a declaração da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017, a qual ficou conhecida como a PEC da Vaquejada durante a sua tramitação no Congresso Nacional.

A denominação foi assim atribuída em razão de a EC 96/2017 representar uma suposta retaliação do Congresso Nacional à decisão proferida pelo STF na ADI 4.983/CE, na qual a corte, um ano antes, havia declarado inconstitucional a legislação do Estado de Ceará (Lei Estadual 15.299/2013) que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural. A corte entendeu, na ocasião, que a legislação impugnada ensejava violação à norma constitucional que veda maus tratados aos animais (artigo 225, § 1º, VII) [1].

Por meio da EC 96/2017, o legislador constituinte reformador alterou o artigo 225 da CF/1988, nele inserindo um novo parágrafo (§ 7º) com o seguinte teor:

“Para fins do disposto na parte final do inciso VII do parágrafo 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o parágrafo 1º do artigo 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos”.

No plano constitucional, a discussão está centrada na violação de cláusula pétrea e na verificação da compatibilidade ou não do referido § 7º com a norma inscrita pelo constituinte originário no inciso VII do parágrafo 1º do mesmo artigo 225, ao prever que incumbe ao poder público, como forma de assegurar efetividade ao direito fundamental ao meio ambiente, o dever de: “VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

O dispositivo citado estabelece o núcleo do regime constitucional de proteção aos animais, amparando toda a jurisprudência do STF na matéria, a contar da primeira vez em que a Corte enfrentou a temática (ainda na década de 1990), no emblemático Caso da Farra do Boi (RE 153.531/SC), seguido da vedação de rinhas de galo (ADI 1.856/RJ) [2].

O julgamento teve início com a divulgação do voto-relator do ministro Dias Toffoli, o qual conheceu dos pedidos e julgou improcedentes as ações, declarando, assim, a constitucionalidade da EC 96/2017, bem como da definição legal da vaquejada como patrimônio cultural imaterial brasileiro (artigos 1º, 2º e 3º da Lei 13.364/2016) e da equiparação do peão praticante de vaquejada a atleta profissional (artigo 1º, parágrafo único, da Lei 10.220/2001). Na sequência, o ministro Flávio Dino pediu de vista dos processos, interrompendo o julgamento.

O ministro Toffoli reconheceu, em sede de preliminar, a legitimidade do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade. O entendimento suscitado, por si só, representa um grande avanço na interpretação do artigo 103, IX, da CF/1988 [3], seguindo, aliás, a tendência já identificada em outros julgados da corte [4], como no caso da ADPF 709/DF, em que igual legitimidade foi atribuída à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

É a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, tal como preconizado por Peter Häberle, tomando forma na jurisdição constitucional brasileira. Aliás, igual legitimidade deve ser atribuída às entidades ambientalistas de âmbito nacional, como expressão dos direitos ambientais (e climáticos) de participação, entre os quais desponta o acesso à justiça.

Spacca

No mérito, o ministro Toffoli reconheceu o status de cláusula pétrea inerente ao direito fundamental ao meio ambiente, ao assinalar que “a despeito de não se subsumir à categoria dos direitos e garantias individuais, dada sua natureza transindividual, o direito fundamental ao meio ambiente encontra-se inserido no âmbito de proteção do artigo 60, § 4º, inciso IV, da CF/88”. De modo complementar, contemplando a vedação de maus tratos aos animais igualmente como cláusula pétrea, assinalou o ministro que “a vedação a práticas cruéis contra os animais (art. 225, § 1º, inciso VII, da CF/88), enquanto condição de efetividade daquele direito fundamental, pode ser compreendida como inserida no âmbito de proteção da cláusula pétrea do inciso IV do § 4º do artigo 60. Ademais, a vedação da crueldade animal detém caráter autônomo, devendo ser respeitada independentemente da sua relação com o equilíbrio ambiental (…)”.

No entanto, o ministro entendeu que a EC 96/2017 não desguarneceu de proteção constitucional as cláusulas pétreas consubstanciadas no direito fundamental ao meio ambiente e na vedação de práticas cruéis ao animais, na medida em que “definiu como não cruéis determinadas práticas desportivas que utilizam animais, desde que atendam, cumulativamente, às seguintes condicionantes: (1) sejam manifestações culturais registradas como bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro; e (2) seja garantido o bem-estar dos animais envolvidos por meio de regulamentação por lei específica”. Ainda segundo o ministro, a EC 96/2017 “buscou atribuir estatura constitucional à proteção das práticas culturais esportivas envolvendo animais, dando, assim, efetividade ao direito fundamental ao pleno exercício dos direitos culturais (artigo 215, caput e § 1º, da Constituição de 1988)”.

Além disso, de acordo com o eminente relator da ADI, a EC 96/2017 “não se considera legítima qualquer manifestação cultural com animais registrada como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, e sim e tão somente, aquelas práticas reguladas por lei específica que garanta o bem-estar dos animais envolvidos. Portanto, a norma exige que a prática seja realizada dentro de parâmetros e regras aceitáveis para o atual momento cultural, fixados em legislação específica. Nesse quadro, e considerando a cautela exigida na análise da constitucionalidade de emendas à Constituição de 1988, entendo que a Emenda Constitucional nº 96/17 não representa violação da cláusula pétrea relativa aos direitos e às garantias fundamentais da Constituição, especificamente o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, CF/88), nem da vedação a práticas cruéis contra os animais (art. 225, § 1º, inciso VII, da CF/88)”.

Lançado um panorama geral sobre o muito bem lançado voto-relator do ministro Toffoli, que, como já adiantado, estabeleceu algumas premissas relevantes no que diz respeito à condição de “cláusula pétrea” da proteção ambiental em geral e dos animais em particular, não poderíamos, contudo, deixar de tecer, com o devido respeito, algumas considerações críticas, na linha inclusive do que temos defendido em outros trabalhos. De início, entendemos que a EC 96/2017 estabelece um enfrentamento entre o constituinte originário e o constituinte reformador no tratamento dispensado à proteção aos animais.

Há uma disputa de narrativas constitucionais entre um viés mais protetivo e rígido (inciso VII do § 1º do artigo 225) e outro menos protetivo ou flexibilizado (§ 7º do artigo 225). E isso ocorre no lugar mais “sagrado” do regime constitucional ecológico da CF/1988 (a “Constituição Verde”, como referida pelo ministro Fux no julgamento da ADI 4.903/DF), ou seja, no artigo 225 (Capítulo do Meio Ambiente), por meio da inserção de um novo parágrafo (§ 7º) incorporado pela EC 96/2017. Há uma identidade ecológica na CF/1988 concebida primorosamente pelo constituinte originário, a qual abarca a proteção aos animais no seu núcleo mais sensível.

Contrariamente ao espírito protetivo que caracteriza o conjunto de normas (princípios e regras) que conformam o núcleo essencial do artigo 225, a EC 96/2017 busca fragilizar o regime jurídico-constitucional ecológico, notadamente no campo da proteção dos animais. A EC 96/2017 é um “corpo estranho” no artigo 225, estabelecendo uma “fratura” no programa normativo de proteção ecológica traçado pela nossa Constituição. Para utilizar uma expressão popularizada na prática legislativa brasileira, o § 7º poderia ser compreendido como uma espécie de “emenda jabuti”, por estar “fora do lugar” e dada a sua total dissonância com o conteúdo protetivo inerente ao regime constitucional ecológico traçado no artigo 225, notadamente em relação à proteção aos animais, isso sem falar no fato de se tratar de uma clara tentativa de frustrar a decisão do STF sobre a matéria.

A proteção aos animais está no núcleo irredutível dessa proteção normativa edificada em 1988, o que encontra perfeita sintonia com a jurisprudência do STF na matéria, conforme referida anteriormente, inclusive no sentido de se atribuir valor intrínseco e dignidade aos animais não humanos, isso sem falar na discussão em torno do reconhecimento de direitos autônomos titularizados pelos animais não humanos e pela Natureza em si, que também avança nos nossos tribunais. A título de exemplo, veja-se a fundamentação dos votos dos ministros Rosa Weber e Ricardo Lewandowski no julgamento da ADI 4.983/CE sobre a prática da “vaquejada”.

Para a ministra Rosa Weber, “o atual estágio evolutivo da humanidade impõe o reconhecimento de que há dignidade para além da pessoa humana, de modo que se faz presente a tarefa de acolhimento e introjeção da dimensão ecológica ao Estado de Direito”. Na mesma linha, o ministro Luís Roberto Barroso, no âmbito da ADPF 708/DF (Caso Fundo Clima), ao convocar audiência pública, reportando-se à Corte Interamericana de Direitos Humanos, inseriu na sua fundamentação tema até então inédito na jurisprudência constitucional brasileira, designadamente, o caso dos direitos da Natureza.

Conceito normativo de crueldade

A EC 96/2017, por sua vez, encontra-se em total dessintonia com tal marco jurídico, abrindo um flanco de vulnerabilidade normativa no tocante à proteção dos animais e vedação de práticas de maus tratos, inclusive para além da prática da “vaquejada”. Não há dúvidas em relação ao fato de que inúmeras outras matérias irão tentar “pegar carona” por essa brecha normativa aberta pelo poder de reforma constitucional, como, por exemplo, atesta o Projeto de Lei nº 6.268/2016, em trâmite no Congresso Nacional, que pretende regulamentar a caça “desportiva” de animais silvestres, entre outros.

O poder de reforma constitucional acabou por criar um conceito eminentemente normativo de crueldade, dizendo, ainda que com outras palavras, que uma prática que implica crueldade de fato (pela sua natureza e consequências em termos de sofrimento infligido aos animais) o deixa de ser por decreto normativo. Isso é inconcebível. Se determinada prática, por sua natureza e incidência no “mundo dos fatos”, implica sofrimento animal, por mais empenhado que o legislador esteja em afirmar o contrário por meio da legislação (constitucional ou infraconstitucional), ela é cruel e, portanto, vedada pela norma constitucional originária.

Qualquer prática que submeta animais à crueldade é incompatível com a norma constitucional posta no inciso VII do parágrafo 1º do artigo 225, independentemente da sua natureza “cultural”, abalando toda o regime constitucional de proteção ecológica posta na CF/1988 e afetando o núcleo essencial do próprio direito-dever fundamental ao meio ambiente e da proteção jurídica autônoma dispensada aos animais não humanos (como reconhecido pelo próprio ministro Toffoli no seu voto). Além disso, ao remeter à regulamentação legal, o § 7º defere ao legislador infraconstitucional relativamente ampla liberdade de conformação para ampliar tal espectro, ainda que a legislação deva, nos termos do novo dispositivo constitucional, assegurar o bem-estar dos animais.

Tal ressalva – de que a legislação deve assegurar o bem-estar dos animais – não afasta a manifesta inconstitucionalidade do dispositivo impugnado pela ADI 5.278/DF, porquanto busca claramente ofuscar a “mens legis” subjacente à EC 96/2017, que é a de contornar a decisão do STF relativamente à ilegitimidade constitucional da prática da “vaquejada”, ademais de abrir as portas de modo escancarado para outras atividades do gênero.

De outra parte, o argumento de que o legislador irá, caso a caso, considerar o bem-estar dos animais e que, se não o fizer, sempre será viável impugnar tal opção legislativa perante o Poder Judiciário, não soa razoável, visto que para tanto não se faz necessário o malfadado § 7º, ademais de mediante a sua inserção no artigo 225, se buscar dificultar sobremaneira a proteção atribuída pela própria CF/1988 (no mesmo artigo 225) aos animais não humanos.

A natureza de “regra” (“vedadas práticas que submetam animais à crueldade”) inerente a tal norma constitucional imperativa (artigo 225, parágrafo 1º, VII), não dá margem para qualquer ponderação, afastando, por si só, o conteúdo do novo parágrafo 7º introduzido no artigo 225 pela EC 96/2017. Qualquer manifestação cultural somente será legítima em termos constitucionais na medida em que não implique submissão dos animais a práticas cruéis.

Ademais, como bem ressaltado pela entidade autora da ação na fundamentação da inicial e endossado no parecer da Procuradoria Geral da República lançado nos autos, a EC 96/2017 também enseja violação à limitação material decorrente das cláusulas pétreas do nosso sistema constitucional, blindando, assim, a atuação do poder constituinte reformador. Inicialmente, cabe destacar que não há qualquer distinção quanto ao regime jurídico ou força jurídica a ser aplicada aos direitos fundamentais presentes no catálogo e àqueles incluídos no rol com base no artigo 5º, parágrafo2º, da CF/1988 [5].

Assim, à vista do sumariamente exposto, o que se espera é que, na sequência de mais um emblemático julgamento sobre a proteção dos animais na arquitetura jurídico-constitucional brasileira, o STF, ainda que por maioria e com o devido respeito às opiniões divergentes, reafirme o seu entendimento anterior sobre a matéria, fortalecendo a posição preferencial da proteção ambiental no Brasil.

 


[1] STF, ADI 4.983/CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurelio, j. 06.10.2016.

[2] O STF consolidou importante jurisprudência sobre a proteção aos animais ao longo das últimas décadas, a contar da “constitucionalização” da temática levada a efeito pela CF/1988 (artigo 225), destacando-se, entre outros julgados: RE 153.531/SC (farra do boi), ADI 1856/RJ e ADI 3776/RN (rinha de galo), ADI 4.983/CE (vaquejada), ADI 350/SP (proibição da caça), MC na ADPF 640/DF (abate de animais apreendidos) e ADI 5996/AM (vedação de uso de animais em testes de cosméticos).

[3] “Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (…) IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.”

[4] No sentido de superação da interpretação restritiva da expressão “entidades de classe” do art. 103, IX, pelo STF, ver: ADI n. 5.291, ADI n. 5.422 e ADPF n. 527.

[5] SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 154.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!