STF e Senacon impõem restrições ao mercado de apostas online
4 de dezembro de 2024, 8h00
O Supremo Tribunal Federal, em 15/11/2024, julgou a medida cautelar postulada nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 7.721, proposta pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), e 7.723, proposta pelo Partido Solidariedade. Ambas atacam dispositivos da Lei nº 14.790/2023, que altera a Lei nº 13.756/18, e que trata das apostas esportivas de quota fixa, as denominadas bets. De origem inglesa, o termo bet significa apostar e é usado, ao menos no Brasil, para identificar casas de apostas online, de cota fixa esportiva, e que funcionam por meio de site ou de aplicativos.
Em decisão monocrática, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, determinara a suspensão, em todo o território nacional, de qualquer publicidade de jogos de apostas online de cota fixa (bets) direcionada a crianças e adolescentes, intimando o governo federal a cumprir imediatamente medidas de fiscalização e controle previstas na Portaria nº 1.231/2024 do Ministério da Fazenda, que regulamenta a Lei das Bets. Além disso, foi proferida ordem para que fossem adotadas medidas restritivas ao uso de valores provenientes de programas assistenciais, impedindo o respectivo acesso para apostas online. No julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, restou confirmada a decisão do ministro Luiz Fux.
Estudo do Banco Central do Brasil, apresentado em setembro de 2024, indicara que as bets receberam R$ 3 bilhões de beneficiários do programa Bolsa Família em agosto de 2024. Tal situação provocou uma consternação coletiva muito grande, pois indicaria que a finalidade do programa não estava sendo observada, o que pode colocar em cheque sua própria existência.
No caso da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), a preocupação, referente à liberação dos jogos de apostas online, ocorrida em parte com a Lei nº 13.756/18, no que tange às apostas esportivas de cota fixa, é que o comércio, de uma forma geral, continue sendo afetado pelas bets. No caso, os consumidores, ao invés de adquirirem no varejo, por exemplo, estariam despendendo valores com apostas, superendividando-se nesse setor. Outros setores também demonstram preocupação, inclusive o religioso, na medida que esse cenário atinge diretamente verbas destinadas a doações e dízimos.
Despacho da Senacon
Seguindo a mesma linha do STF, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), por meio do Departamento de Proteção e de Defesa do Consumidor, lançou o Despacho nº2.344/2024, em 19.11.24, visando questões atinentes ao mercado de serviço de apostas de quota fixa.
Assim, restou ordenado aos fornecedores do sistema que suspendessem, em todo o território nacional, qualquer publicidade de recompensa relacionada a adiantamento, antecipação, bonificação ou vantagem prévia, ainda que a mero título de promoção, de divulgação ou de propaganda, para a realização de aposta, qualquer publicidade de jogos de apostas online de quota fixa (bets) para crianças e adolescentes e que fosse apresentado, no prazo de dez dias contados da ciência, dessa decisão cautelar, relatório de transparência sobre as medidas adotadas para cumprimento das respectivas suspensões.
O referido despacho foi exarado com base na Nota Técnica nº 6/2024. O descumprimento de quaisquer das medidas elencadas sujeita as interessadas à imposição de multa diária no montante de R$ 50 mil pelo descumprimento, que incidirá até o cumprimento integral da medida.
Fraqueza do consumidor
Nas duas medidas, do STF e da Senacon, observam-se preocupações acerca de ao menos dois grupos de hipervulneráveis, consumidores que, além da vulnerabilidade padrão que lhes é natural pela condição de parte mais fraca na relação de consumo, possuem caraterísticas que promovem um agravamento da vulnerabilidade [1].
O artigo 39 do CDC, Lei nº 8.078/90, dispõe, em seu inciso IV, que é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas, “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”. Ou seja, nesse contexto surgem crianças, adolescentes, idosos, pessoas doentes, com deficiências, que por essas condições, etárias, de saúde, etc. mostram-se mais suscetíveis a abusos variados do mercado, sendo mais facilmente enganáveis, etc. Portanto, exige-se um cuidado maior em relação a estes mais fragilizados por parte dos fornecedores.
Por sua vez, o artigo 37 do CDC, Lei nº8078/90, em seu §2º, dispõe que é proibida toda publicidade enganosa ou abusiva, descrevendo que é abusiva, dentre outras “a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança”. Portanto, nesse aspecto, tem-se a perspectiva de que a mensagem publicitária que se aproveita da criança, abusando da sua inexperiência de vida, é abusiva.
Em 13 de março de 2014, foi aprovada a Resolução nº 163, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão criado para garantir a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90. Referida resolução considera abusiva a publicidade e comunicação mercadológica dirigidas à criança (pessoa de até 12 anos de idade), indicando especificamente as características dessa prática, como o uso de linguagem infantil, de pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil, de personagens ou apresentadores infantis, etc. [2] Ou seja, existem situações, ainda que genéricas, a indicar um cuidado maior com o público consumidor infanto-juvenil.
O artigo 227 da Constituição de 1988 impõe como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Por evidente que, sendo constatado que o jogo de apostas é um cenário que causa dependência a certos sujeitos, gerando a patologia designada como ludopatia, tal prática não deve ser colocada à disposição do público infanto-juvenil, tal como ocorre com cigarro, e bebidas alcóolicas.
Cabe registrar que, consoante artigo 220, §4º da CF/88, a publicidade comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. Ou seja, serviços e produtos que têm potencial de danos variados à vida humana, sofrem intensa restrição publicitária.
No entanto, quando se fala de bets e demais formas de apostas em dinheiro, estas, como a grande maioria dos produtos e serviços do século 21 pós Covid-19 encontraram a internet e as redes sociais, sendo impulsionadas por algoritmos, e outros fatores que são um verdadeiro bombardeios diários de convites ao consumo.
Fora isso, destaca-que que, mesmo com restrições ao registro de bets em território nacional, há centenas que operam de forma ilegal, e assim o fazem em face de ausência de fiscalização. Some-se a isso a situação dos influencers, indivíduos que, apostando em um carisma diferenciado, desenvolvem apresentações no YouTube, Instagram, e outros, agindo, como diz o nome, como influenciadores, inspirando confiança naquilo que propagam, e assim arrastando multidões ao consumo. Há casos, inclusive, de influenciadores operando com rifas para sorteio de veículos e outros, gerando um cenário que adentra na ilegalidade.
Há portanto uma série de espaços que o Estado-fiscalizador e sancionador deve ocupar de forma a separar o joio do trigo, dando margem ao funcionamento somente a plataformas de apostas que seguem as regras para o jogo legal.
Busca de dopamina
E, além do caso das crianças e adolescentes, surgiu a preocupação com os gastos em bets e outras apostas, de pessoas que recebem benefícios de assistência social. São indivíduos que por doença ou idade, encontram-se em estado econômico muito precário, acessando valores de Bolsa Família, ou BCP Loas, recebendo, muitas vezes, menos de um salário mínimo, verba com a qual vão tentar manter a respectiva subsistência. O dispêndio equivocado desse valor remete o sujeito a um estado de miséria total. E, nesse sentido, tocou o alarme da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), ao ponto de esta pedir ao governo federal a proibição de pagamentos de apostas online via Pix ou cartões de crédito, visto que isto estava afetando o consumo das famílias, que restava prejudicado com a perda de valores significativos em jogos, gerando um cenário de inadimplência gerenalizada.
Ou seja, as apostas online passaram a ser um novo mercado emergente e bastante lucrativo para quem o forneça. Por outro lado, não se pode dizer que o brasileiro não seja acostumado a jogos de apostas, visto que o “jogo do bicho” existe entre nós há várias décadas, funcionando normalmente, em que pese a sua ilegalidade. Cumpre registrar também que o Estado brasileiro sempre operou como uma grande banca de jogos, se considerar as modalidades oferecidas com as loterias da Caixa Econômica federal com destaque à Mega-Sena. Hoje, a modalidade de loteria estatal pode inclusive funcionar no âmbito estadual e municipal.
Ao olhar-se para a Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023, sobre bets de cota fixa, o seu artigo 16 remete a um necessidade de regulamentação de ações de marketing no sentido de expor-se os avisos de desestímulo ao jogo e de advertência sobre seus malefícios, de prevenção do transtorno do jogo patológico, bem como da proibição de participação de menores de 18 anos. Da mesma forma, fica proibida publicidade que promova o marketing em escolas e universidades ou promovam apostas esportivas dirigidas a menores de idade.
Será que mesmo acostumados a décadas de jogos ilegais e legais, nós brasileiros, não conseguimos transitar por esse caminho quando ele se torna digital? Vícios em celulares são uma epidemia mundial. As pessoas, em especial, após o Covid-19, passaram a exercitar uma vida digital, e é justamente ali que surgem as bets online. Acessar o celular, com suas redes sociais, analisando conversas em WhatsApp, curtições de perfis e postagens em Instagram, X, Facebook etc., é uma busca contínua de dopamina.
Não pesam dúvidas de que as redes sociais são grandes produtoras de dopamina, um neurotransmissor associado à sensação de prazer. Assim como comida, bebida, exercício atividade sexual, drogas etc., a internet e suas redes sociais geram mecanismos de compensação ao cérebro humano, formando um sujeito dependente. Já existe um mundo comprometido nesses espaços, que cada vez mais tem sido objeto de trabalho da psiquiatria, psicologia e neurologia. E justamente nesse espaço o sujeito encontra o convite da bet, aposta rápida, muitas com resultados imediatos. Na medida em que ganha, o sujeito vê-se compelido a buscar mais ganhos, mais compensações, e assim segue gastando seus recursos econômicos.
Cabe registrar que apostas online são um local de lazer. O único player com capacidade de enriquecer com a bet é o fornecedor do serviço, que explora o jogo de azar. Na verdade, é um azar ganhar, porque o normal é perder. Não fosse assim, a banca estaria quebrada. Isso é natural do jogo, sem necessidade alguma de sua manipulação. Mas será que o brasileiro é tão imaturo ainda para entender isso, e continuar exercitando crenças num mundo mágico de enriquecimento sem trabalho?
Será que podemos indicar em que o beneficiário de assistência pode gastar o recurso recebido? Ele poderia apostar na Mega-Sena? E se ele gastar em supérfluos, ou até mesmo em bebida alcoólica, em drogas para satisfazer outro tipo de vício? Há algum controle sobre isto? Ou, simplificando, se o sujeito passa por um cenário de superendividamento por excesso de mútuos bancários, isso não seria o caso de impedir o acesso a esse tipo de serviço?
Podemos questionar se jogos estatais como Mega-Sena também não teriam o efeito de viciar o sujeito, considerando-se que podem ocorrer pela internet também. Não deveriam também ser objeto de restrição idêntica? Existem jogos de apostas que tendem a viciar, ao contrário de outros não tão agressivos, por assim dizer? Será que o problema das bets reside na plataforma digital? Será que estas somente poderão operar em espaços físicos, o que acaba desestimulando o acesso até o estabelecimento? Será que o futuro melhor dependeria de restrições mais incisivas tal como ocorre com a publicidade do tabaco?
Não há dúvidas que falta uma educação econômica aos brasileiros, inclusive sobre o uso de bets. Questionável, é observar se é possível proibir o uso de benefício assistencial a um determinado serviço, uma vez que, sendo recebido, torna-se patrimônio do seu titular. As medidas indicadas, no que concerne a benefícios assistenciais geram uma espécie de interdição civil a pessoas não incapazes do ponto de vista mental, indicando algo que não podem fazer com dinheiro que lhes pertence. Pode até ser muito danoso que tais pessoas percam recursos com apostas, mas no emaranhado de orientações morais do uso do dinheiro, loterias, etc., poderia se questionar se outros produtos e serviços para onde vão esses recursos não deveriam apresentar a mesma preocupação e restrições.
Quanto ao público infanto-juvenil, amplamente acertado, em consonância com a CF/88e a legislação das bets, a restrição publicitária do serviço. No entanto, quanto a beneficiários de programas assistenciais, talvez seja impraticável a restrição, no máximo, criar alguns empecilhos momentâneos. Bets, um mercado ainda novo, com muitas dúvidas. Seguimos apostando no melhor futuro para todos.
[1] Sobre hipervulnerabilidade, sugerimos o nosso “Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo”, Editora Atlas, São Paulo, 2014.
[2] Vide https://criancaeconsumo.org.br/noticias/entenda-a-resolucao-que-define-a-abusividade-da-publicidade-infantil/
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