Estelionato por meio de fraude eletrônica: um não remédio para um atual fato antigo
4 de dezembro de 2024, 15h16
Lá se vão mais de 25 anos desde o célebre julgado do Supremo Tribunal Federal, em que, com a rotineira precisão, o então relator, ministro Sepúlveda Pertence, afirmou que “a invenção da pólvora não reclamou a redefinição do homicídio para tornar explícito que nela se compreendia a morte dada a outrem mediante arma de fogo” (HC 76.689).
Na ocasião, julgavam-se questões no entorno do delito previsto no artigo 241, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que, na redação da época, incriminava a conduta de “publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”. Os fatos haviam ocorrido na rede BBS/internet e, para a análise de tipicidade, fez-se pertinente lembrar que, uma vez que o meio técnico empregado para a prática do crime se compreenda na descrição típica, não interessa o momento do seu advento.
Assim, a célebre frase foi utilizada para ilustrar que seria desimportante questionar, no caso concreto, se a rede BBS/internet existiria, ou não, quando da criação do tipo penal pelo legislador, pois a tecnologia utilizada, no caso, se ostentava meio idôneo ao cometimento do delito, o que, portanto, bastaria ao juízo de tipicidade. Trata-se de respeitar o sentido literal possível enquanto limite da interpretação jurídica [1].
Foi bem o saudoso magistrado, ainda que, por razões intuitivas, convenha alertar que o julgado deve ser recebido com prudência. Afinal, em um mundo que ultrapassa a quarta revolução industrial, inovações disruptivas tornaram-se rotina. Desse modo, não se pode correr o risco de que o precedente, deturpado por casuísmo, sirva de referência para que se empreendam analogias ou promovam interpretações que superem os limites semânticos dos tipos penais, para colmatar eventuais lacunas.
Nesse mundo de novidades, são muitos os fenômenos, que, por interesse legislativo, reclamaram a criação de novos dispositivos, por não encontrarem subsunção nos tipos penais vigentes, como a invasão de dispositivo informático (artigo 154-A, do Código Penal), exemplo rotineiro de crime digital próprio.
Esse, contudo, não é o caso do estelionato mediante fraude eletrônica, tipificado no artigo 171, §2º-A, do Código Penal, por meio da Lei 14.155/2021, que institui hipótese qualificada de fraude, apenada com reclusão de quatro a oito anos, quando “é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo”.
O fato tratado já se encontrava contemplado no caput do referido artigo, que criminaliza a conduta de “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Destarte, a fraude a que faz menção o §2º-A não é nada mais, nada menos, do que o “erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento” descrito no caput do dispositivo. Portanto, a inovação não veio a suprir omissões. Ela é, somente, uma forma específica de realização do tradicional crime de estelionato.
Problemas do dispositivo
Se a leitura do dispositivo não bastar a evidenciar sua essência, a exposição dos motivos que originaram a atualização legislativa, externados no Parecer proferido no Plenário da Câmara dos Deputados [2], em abril de 2021, cumprirá esse papel. Não se trata de dar tratamento legal a um novo fenômeno, mas de “criar meios mais rigorosos para punir de maneira mais severa fraudes”, pois “o volume de fraudes já começa a afetar a economia do país, gerando perda do poder aquisitivo e também perdas emocionais por parte das vítimas”.
Não chama a atenção, portanto, que o novo dispositivo, produzido por interesses contingenciais, exiba inúmeros problemas — três dos quais enunciamos.
O primeiro problema é de legitimidade. Consiste a fraude em crime contra o patrimônio, sendo injustificada a diferenciação do reproche penal baseada no veículo utilizado para o engodo, especialmente quando este se apresenta ordinário (lembremos que, hoje, no Brasil, há mais de 02 dispositivos eletrônicos por pessoa, e que os contatos por meio digital se tornaram a regra).
O segundo problema é de proporcionalidade. A tipificação geral da fraude, prevista no caput do artigo 171, do Código Penal, é apenada com reclusão de um a cinco anos. Nesse contexto, enquanto, via de regra, tal delito admite suspensão condicional do processo (artigo 89, da Lei 9.099/95), na contramão, a fraude eletrônica não comporta, formalmente, nem sequer o acordo de não persecução penal (artigo 28-A, do Código de Processo Penal).
Demais disso, em razão da desproporção entre as escalas penais, é provável que uma fraude transnacional, ainda que movimente vultosos valores, causando prejuízo gravíssimo à vítima, e afetando o bem jurídico de forma acentuada, seja punida com pena e regime mais brandos que um golpe empreendido por aplicativo de mensagens, mesmo que este ocasione prejuízo módico.
Esse problema fica evidenciado, inclusive, nas razões que fundamentaram a criação da figura da fraude eletrônica. No aludido parecer do relator, proferido em plenário ao Projeto de Lei nº 4.554/2020 [3], aduziram-se razões preponderantemente de ordem preventiva a favor da criação da figura. Até mesmo quando se falou sobre suposta brandura da repressão penal, foi em contexto de alegada necessidade de dissuasão de potenciais infratores [4].
Não se verificam, portanto, razões para se incrementar a pena somente do estelionato que envolva fraude eletrônica, em detrimento de outras modalidades de fraude, que não sejam fundadas em maior necessidade preventiva. Se se considerava a pena do estelionato branda demais – algo que não pretendemos debater aqui, mas concedemos momentaneamente, para fins de argumentação –, o adequado seria uma mudança da pena de qualquer tipo de estelionato, e não a criação de uma pena maior para uma forma de fraude, só por ela ser mais frequente e, portanto, gerar uma necessidade preventiva maior.
Em um direito penal da culpabilidade, formas idênticas de violação do mesmo bem jurídico deveriam possuir idêntica cominação de penas. Em suma: incrementaram-se determinadas formas de estelionato simplesmente por serem mais frequentes, não por serem mais graves.
Em julgado relativamente recente, o Supremo Tribunal Federal (RE 979.962) considerou haver “flagrante desproporcionalidade na aplicação do preceito secundário do art. 273 do Código Penal à hipótese prevista no seu § 1º-B, I, em relação a todas as condutas descritas no dispositivo legal”. Essa incriminação surgira com o advento da Lei 9.677/98, sendo objeto, à época, de incisiva crítica de setores da doutrina [5]. Considerou-se, inclusive, que a necessidade de dar uma satisfação à opinião pública no que tange ao tema da falsificação de medicamentos foi o motor principal da mudança legislativa [6]. Anos depois, a Suprema Corte considerou, ao menos parcialmente, essa mudança inconstitucional, por violar a proporcionalidade. Se será, ou não, o mesmo destino do estelionato mediante fraude eletrônica, é algo que o tempo responderá.
O terceiro problema é de redação/tipicidade. A amplitude do texto legal prejudica sua aplicação e deixa de lado diversos eventos, que, ao menos consoante o parecer proferido no Plenário da Câmara dos Deputados, pretenderia açambarcar (e.g. fraude na obtenção de auxílio emergencial, fraudes previdenciárias, solicitação de depósitos por meio de clonagem de aplicativos de conversa, dentre outros).
Enfim, não é de hoje que a fraude toma a atenção do legislador e o tempo dos juristas. Além de haver proscrições que remontam à legislação colonial, as diversas espécies de fraude ocupam extensos capítulos em manuais consagrados e, no cotidiano, preenchem inúmeras páginas dos jornais.
O tipo penal de fraude eletrônica, todavia, não chegou para tratar de fato novo, tampouco contribui, positivamente, para a regulação da matéria. Trata-se de um não remédio para um atual fato antigo. Incumbirá, aos tribunais, racionalizar a aplicação do dispositivo, verdadeiro desafio.
[1] Sobre isso, ver, por todos, ROXIN, Claus; GRECO, Luís. Direito penal: parte geral. Tomo I: fundamentos – a estrutura da teoria do crime. São Paulo: Marcial Pons, 2024, p. 310 e ss.
[2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1978437&filename=Tramitacao-PL%204554/2020 Acesso em 25 nov. 2024.
[3] Ver nota anterior.
[4] Cf. p. 5 do parecer.
[5] Por ex.: “é flagrante o desalinho do legislador no que tange aos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade”. FRANCO, Alberto Silva. Há produto novo na praça. Haha, São Paulo, n. 70, p. 5-6, 1998.
[6] Sobre isso, cf. DIAS, Cláudia Regina Cilento. Crime hediondo em saúde pública – discussão sobre as leis nos 9.677/98 e 9.695/98. Revista de Direito Sanitário, v. 2, n. 2, p. 9-30, 2001.
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