De cada 40 ações penais em tramitação no país, uma tem como alvo uma empresa
4 de dezembro de 2024, 8h25
*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Direito Empresarial 2024, lançado na última semana, na Fiesp. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui). Acesse a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br).
O caso Americanas é o exemplo mais acabado de como uma empresa, sem sair da página dos negócios, pode virar manchete na página policial. Isto aconteceu quando veio a público que a empresa, um gigante do comércio varejista online, construiu seu enorme sucesso de forma fraudulenta. Polícia Federal e Ministério Público investigam a participação da antiga diretoria da empresa na fraude contábil de R$ 20 bilhões que a levou a pedir recuperação judicial em janeiro de 2023.
Segundo a PF, a direção da empresa, que compreendia um grupo de 20 pessoas, maquiou a contabilidade de forma a ostentar ao mercado uma situação melhor do que a real. Conseguiram enganar tanto o mercado quanto as empresas de auditoria contratadas para analisar e aprovar suas contas.
As investigações apontaram ainda que os antigos executivos valendo-se da informação privilegiada sobre a situação calamitosa da empresa e das mudanças gerenciais que estavam por vir, venderam ações da empresa na alta, antes que a divulgação do escândalo pulverizassem sua cotação. Foram R$ 258 milhões vendidos em ações na Bolsa entre 2022 e 2023. Antes do escândalo as ações da Americanas eram negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo a R$ 12. Depois caíram para R$ 0,87.
O MPF afirma que os ex-funcionários da Americanas “constituíram uma verdadeira associação paralela, cujas funções não correspondiam exatamente às suas atribuições na empresa, para o fim de cometer crimes ao longo do tempo”. A PF pediu o bloqueio de bens de todos os ex-diretores no valor de R$ 500 milhões.
Os investigados deverão responder pelos crimes de manipulação de mercado (art. 27, inciso C, da Lei 6.385/1976), uso de informação privilegiada (art. 27, inciso D, da mesma lei), falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal), associação criminosa (art. 288 do CP) e lavagem de dinheiro (previsto na Lei 9.613 de 1998). Também devem enfrentar ações por reparação de danos de investidores lesados na esfera cível. Além disso, a Comissão de Valores Mobiliários pode aplicar sanções administrativas aos envolvidos nessas práticas ilegais, como multas, inabilitação para atuar no mercado de valores mobiliários e suspensão de registro como administrador ou acionista controlador.
Levantamento do Anuário contou um total de 14 grupos de crimes que podem ser considerados empresariais (veja na tabela). Os mais comuns são os delitos tributários, crimes ambientais, crimes contra o sistema financeiro nacional, crimes de corrupção e lavagem de capitais. Nos delitos empresariais existe o agravante de que a sua divulgação atrai a atenção e a cobrança da mídia, o que tem direcionado os holofotes da população e das autoridades.
Casos como o da Americanas acontecem mas não são a regra. Dos mais de 4,4 milhões de processos penais em tramitação no sistema de Justiça brasileiro, cerca de 112 mil são tipicamente crimes empresariais. Representam pouco mais de 2,5% das ações penais em curso. Os mais recorrentes são os crimes tributários, seguidos pelos crimes de lavagem de dinheiro, contra a lei de licitações e de corrupção ativa. Há também crimes contra o meio ambiente.
Advogados da área ouvidos pelo Anuário da Justiça, no entanto, afirmam que a atividade empresarial tem sofrido um processo exagerado de criminalização, com o crescente direcionamento do foco investigatório para as empresas e para os seus respectivos núcleos diretivos. A reclamação evoca, de imediato, a mais famosa das operações da Polícia Federal, a operação “lava jato”, que investigou um suposto esquema de corrupção instalado na Petrobras e envolvendo algumas das maiores empresas privadas do país. Ainda que tenha apurado crimes reais, a “lava jato” cometeu uma tal ordem de excessos que comprometeu boa parte de suas denúncias.
Uma outra operação, menos famosa mas não menos desastrada, exemplifica o que os advogados chamam de excessos do aparelho estatal de repressão. Trata-se da operação alquimia, aberta pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal em 2011, na sequência de investigações instauradas em 2002. O alvo era uma suposta sonegação de R$ 1 bi de impostos envolvendo mais de 300 empresas químicas em 20 estados do país. No centro das investigações estava Paulo Cavalcanti, dono da distribuidora baiana de produtos químicos, Sasil, que foi apresentado como cabeça do suposto esquema e chegou a ser preso na operação.
A operação foi considerada a maior feita pela PF até aquela época. Em 2017, o Superior Tribunal de Justiça mandou a 2ª Vara Federal da Bahia trancar o inquérito (aberto em 2002) devido ao longo tempo sem conclusão. O tribunal acatou a argumentação da defesa do empresário, apresentada em sua primeira manifestação nos autos: embora a investigação tratasse de sonegação fiscal, não fora lançada qualquer dívida tributária contra a empresa.
Quando a operação foi deflagrada os empreendimentos do empresário cresciam cerca de 20% a 30% ao ano e pagaram R$ 100 milhões de impostos em um período de cinco anos. Os prejuízos, disse o empreendedor à imprensa, tiveram um valor inestimável, já que, além do afastamento das instituições financeiras que custeavam os negócios, envolvem a questão de imagem e da moral. “A empresa hoje é 40% do que era”, lamentou o empresário.
“Durante algum tempo, o Direito Penal econômico foi considerado como meramente simbólico, falava-se na existência de cifras douradas da criminalidade, como sinônimo de impunidade. Há alguns anos, porém, a situação se inverteu. Busca-se em muitos casos a tutela penal custe o que custar, em eficientismo exacerbado e solapando a dogmática”, afirma Gamil Föppel, o advogado que impetrou no STJ o pedido de Habeas Corpus que trancou o inquérito.
“O período pós 1988 e pós primeira onda de globalização fez surgir muitos crimes novos, muitas leis novas. Num período inferior a 15 anos surgiram crimes contra o sistema financeiro, tributários, previdenciários, contra as relações de consumo, contra o meio ambiente e lavagem de dinheiro. Em muitos casos, verdadeiramente o empresário é demonizado e perseguido, como manifestação do Direito Penal do inimigo e Direito Penal de exceção. Antes, falava-se que o empresário tinha um tratamento judicial mais brando quando comparado aos traficantes. Hoje, há mais precedentes flexíveis para o tráfico que para o Direito Penal econômico”, comenta o advogado.
Na percepção dos advogados, houve uma transformação muito sensível da postura institucional do Ministério Público, a partir da operação “lava jato”, que teve início em 2014, com um refinamento do olhar para questões que estão muito mais afetas à vida empresarial – de olho no fluxo financeiro e lavagem de ativos, os dois fantasmas atuais.
“Desde 2014, a gente percebe muito na prática esse reforço de uma postura persecutória do Ministério Público, da Polícia Federal, dos Gaecos, dos consórcios investigativos, voltando muito os olhos para questões financeiras, societárias, empresariais, de ordem econômica”, afirma o criminalista André Leonardo Prado Coura, sócio do Coura e Silvério Neto Advogados.
Mas, segundo ele, em outra ponta, o empresariado e a advocacia também têm despertado para a necessidade de um atuar preventivo. “Temos conseguido organizar melhor o cliente para que, nas suas operações, ele minimize o risco de incorrer em práticas que, a posteriori, possam dar margem para imputar em qualquer tipo de prática criminosa”, comenta.
A maior crítica que Coura faz é também o fato de ter se tornado muito corriqueiro que, no exercício da perseguição penal a questão patrimonial tenha se tornado muito forte. “Não só a ameaça para o corpo diretivo, pessoa física, no que concerne a prisões de natureza cautelar, temporária, preventiva, enfim, a própria condenação criminal, mas os mecanismos cautelares de asseguração patrimonial. Em investigações sobre lavagem de dinheiro, organização criminosa, evasão de divisas, crimes tributários, têm sido muito comum medidas cautelares de indisponibilização holística de bens. CPF e CNPJ, da noite para o dia, em uma decisão cautelar, estão todos congelados, indisponibilizados, arrestos, sequestros sobre bens imóveis. Então, na vida da pessoa física causa um impacto grande, mas, às vezes, na vida da empresa, isso significa a morte dela”, diz Coura.
Nesse movimento, algumas teorias foram importadas ao processo penal brasileiro e são usadas de modo equivocado para se condenar. Uma que ficou famosa foi a “teoria do domínio do fato”, usada no processo do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal. Essa tese diz que é impossível que pessoa que ocupa cargo de mando não tenha conhecimento da prática delitiva. Ocorre que não basta ser ocupante do cargo, tem que ter algumas circunstâncias que demonstrem, efetivamente, que se sabia da prática daquele ilícito.
Na avaliação da advogada criminalista Pamela Villar, as autoridades penais passaram a formular acusações criminais gravíssimas aos empresários baseadas tão somente em uma responsabilidade genérica atribuída pela posição que ocupam, ainda que não tenham qualquer controle sobre a atividade supostamente ilícita sob apuração. “O fenômeno não é recente, mas, certamente, intensificou-se após a divulgação de casos como o ‘mensalão’, ‘lava jato’, zelotes, entre outros, nos quais evidenciou-se a ineficácia por parte do Estado em investigar essa criminalidade econômica”, diz ela.
Os criminalistas afirmam que uma das práticas mais problemáticas da área, no momento, é o compartilhamento de evidências entre a Receita Federal e o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) com as autoridades penais. Em 2021, o STF entendeu, de forma vinculante, que é constitucional o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira (RIFs) e de procedimento fiscalizatório da Receita com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, desde que haja procedimentos formalmente abertos e sujeitos a posterior controle jurisdicional. Mas a insegurança jurídica ainda é grande: a 1ª e 2ª Turmas divergem sobre a necessidade de controle prévio do Judiciário (leia mais no quadro de decisões).
Reportagem do site Consultor Jurídico informou que, em dez anos, o Coaf aumentou em 1.339% o número de RIFs produzidos pelas Polícias Civil e Federal e do Ministério Público. Dados do Coaf mostram que, em 2014, foram produzidos 1.035 RIFs a partir de comunicações feitas por essas instituições. Em 2023, a produção chegou a 13.863, um recorde. Isso significa que, em 2023, o Coaf produziu e entregou aos órgãos de persecução penal 38 relatórios por dia. E sem a necessidade de qualquer controle judicial prévio.
Medidas cautelares patrimoniais – tais como bloqueios de ativos financeiros, de cotas da sociedade, sequestro de bens móveis e imóveis – têm sido comumente utilizadas em face de empresas e de seus sócios durante investigações pela prática de crimes econômicos como forma de garantir a devolução dos valores supostamente subtraídos dos cofres públicos.
“Os bens e valores ficam nessa situação, algumas das vezes, por anos, comprometendo a sobrevivência e a defesa técnica das pessoas físicas, bem como as atividades desempenhadas pela empresa, já que ela fica impossibilitada de arcar com seus compromissos financeiros com clientes, fornecedores, funcionários e advogados. Elas se tornam, assim, verdadeiros instrumentos de punição antecipada dos investigados”, resume a advogada Pamela Villar, sócia do Salomi Advogados.
Para ela, a evidência mais atual da criminalização da atividade empresarial é a associação dos crimes de lavagem de dinheiro e organização criminosa a qualquer conduta de sonegação fiscal para iniciar de forma prematura investigações que somente poderiam ser inauguradas quando o crédito tributário fosse definitivamente constituído na esfera administrativa. “A única maneira de evitar que esse subterfúgio seja utilizado pelas autoridades é a atuação firme por parte dos juízes criminais, desembargadores e ministros no sentido de não mais permiti-los”, diz Villar.
Para o criminalista José Luis de Oliveira Lima ainda há poucos estudos sobre os efeitos da “lava jato”, embora se possa afirmar que ela foi nefasta, assim como a cobertura da grande imprensa. “Quantas e quantas vezes os advogados falavam: ‘isso aqui está ilegal, o juiz não é competente’. E o Supremo só foi acordar muito tempo depois, quando as empresas estavam destruídas, quando milhões de empregos tinham sido cancelados, as grandes empresas de infraestrutura do país foram por água abaixo”, diz. “Algumas autoridades se acharam num patamar acima do bem e do mal. Infelizmente, alguns delegados da Polícia Federal têm esse comportamento também”, constata.
Rodrigo De Grandis é hoje sócio da área no Tozzini Freire, mas atuou por muito tempo com denúncias e investigações pelo Ministério Público Federal. Em simpósio de Processo Penal promovido pelo Instituto dos Advogados de São Paulo, disse que uma das características dos crimes praticados em ambientes corporativos é a opacidade, ou seja, é praticado de forma oculta ou pouco provada. “É muito comum oferecer ação penal sem que se arrolem testemunhas. Outro aspecto que é obstáculo para a investigação criminal é a falta de estrutura das agências reguladoras que auxiliam na investigação criminal. De 80% a 90% das investigações surgem das agências reguladoras da área, ou seja, de comunicados da CVM, Banco Central, Cade, Susep. Elas estão na linha de frente do fato administrativo que precisa ser investigado também no âmbito criminal. Daí a importância desses órgãos estarem efetivamente aparelhados”, comenta.
“A investigação criminal deve se estabelecer de acordo com os pilares de nossa Constituição, ou seja, não se afasta o garantismo. Um dos pontos de fricção é o contraditório diferido. As medidas cautelares são de medida sigilosa. Nesse tipo de delito acaba sendo regra medidas sigilosas, para se conseguir provas”, pondera De Grandis. O problema é que essas provas, depois, muitas vezes não são submetidas ao contraditório, havendo dificuldade de acesso ao material investigatório por completo pela defesa.
Para o delegado da Polícia Federal Edson Garutti, muitas vezes a advocacia criminal busca nulidades processuais para não enfrentar o mérito das acusações. “Até que ponto vale buscar brechas na lei para se cavar uma nulidade no processo que vai gerar impunidade? Ou decisões em que o Supremo Tribunal Federal acaba também sinalizando nulidade? São nulidades bastante questionáveis”, provocou, no mesmo evento. Garutti afirmou que a polícia investigava em matéria de crime econômico, até agora, o alto empresariado, políticos ou intermediadores de negócio (doleiros), pessoas com nível cultural e social superior. Mas esse perfil está mudando. “As facções criminosas estão migrando sua atividade criminal para crimes econômicos. Tanto pelo lucro quanto pela impunidade que se tem no país. É possível que o advogado tenha imaginado que teria um tipo de cliente e agora está tendo que lidar com outro tipo de cliente”, comentou.
O procurador regional da República Vladimir Aras diz que investigações que não resultam na produção de elementos suficientes para um processo penal são rotina em qualquer sistema do mundo. “Nem todo inquérito policial ou PIC deve necessariamente desaguar numa denúncia, pois o MP não tem a obrigação de acusar sempre. É uma concepção oposta àquela que se deve exigir do MP: que seja um órgão de proteção de direitos individuais e difusos, assegurados na Constituição, nos tratados e nas leis. A investigação criminal em mãos do MP é um filtro do sistema punitivo e um elemento-chave do sistema acusatório, para que apenas acusações viáveis cheguem a juízo, numa perspectiva de proteção vitimária e de interesse público. Se, ao cabo de uma investigação, não houver justa causa para denunciar alguém, seu destino deve ser o arquivamento – e isso é também uma forma de proteger direitos fundamentais. A investigação terá cumprido seu papel”, defende Aras.
A advocacia, no entanto, rebate, dizendo que há punição ainda que sem condenação. “Sobretudo pela forma açodada como grande parte das investigações se iniciam e se desenvolvem no Brasil, estas que, muitas vezes, vêm associadas a cautelares patrimoniais e uma inadequada e sensacionalista publicização nos diversos veículos de comunicação. E as consequências, ainda que posteriormente os envolvidos sejam inocentados e/ou as apurações arquivadas, são graves e, muitas vezes, irreversíveis. Comprometimento de reputação pessoal e da companhia, afugentamento de clientes, parceiros e funcionários e problemas no relacionamento com instituições financeiras são aquelas mais comumente observadas”, diz Pamela Villar.
“O cliente sai esfacelado, desrespeitado, revoltado. O pior é que, quem promoveu o carnaval e destruiu famílias, vidas, histórias, empresas, depois não tem a menor hombridade de dar o mesmo destaque à assunção do erro. E o Judiciário, no particular, tem uma tibieza ímpar em reparar esses danos, causados pelo próprio Estado-juiz. A volúpia e a ferocidade da investigação cedem espaço para uma atuação por demais comedida na hora de reparar os seus próprios erros”, arremata Gammil Föppel.
Anuário da Justiça Direito Empresarial 2024
2ª edição
188 páginas
Editora Consultor Jurídico
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