Constituição antimulher? A PEC 164/2012
4 de dezembro de 2024, 8h00
“Os direitos das mulheres são os primeiros a serem negociados, sempre.”
Fhoutine Marie
Na semana que passou, em meio a grandes debates econômicos sobre cortes de gastos públicos e avanços em inquéritos no âmbito do Supremo Tribunal Federal sobre a tentativa de golpe de Estado no Brasil entre 2022 e 2023, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou, por 35 votos favoráveis e 15 contrários, o encaminhamento da Proposta de Emenda à Constituição nº 164/2012 às fases seguintes do processo legislativo. A PEC em questão altera a redação do caput do artigo 5º da Constituição, incluindo o termo “desde a concepção” após a expressão “inviolabilidade do direito à vida”.
A aparente ampliação da proteção em relação ao direito à vida obnubila uma possibilidade de, por via transversa, fundamentar uma declaração de inconstitucionalidade da legislação penal que estabelece expressamente duas excludentes de punibilidade no artigo 128 do Código Penal (aborto terapêutico para salvar a vida da gestante e aborto humanitário em caso de gravidez decorrente de estupro), existindo também o caso de aborto em decorrência da constatação da anencefalia do feto, em virtude de decisão do STF [1]. Uma eventual aprovação da PEC 164/2012 abre de fato a possibilidade de que todas essas excludentes de punibilidade sejam consideradas inconstitucionais e haja a criminalização do aborto em todas as modalidades. Isso é bem plausível, pois a PEC não traz qualquer exceção ou ressalva, ou mesmo reserva legal simples ou qualificada, para que o Congresso Nacional possa legislar a respeito de hipóteses de excludentes de punibilidade em relação ao aborto nesses casos.
É bem sabido que o debate sobre aborto é recheados de polêmica por envolver questões sobre o momento de início da vida, o alcance do direito a esta, a potencialidade da vida quando da presença do embrião/feto no útero materno, a condição de gênero, a dignidade da mulher, os seus direitos reprodutivos e sexuais, as frequentes violências sexuais sofridas pelas mulheres, de modo que soluções jurídicas equânimes precisam considerar todos esses aspectos. É o que se pretende aqui neste breve ensaio.
Em primeiro lugar, quando nos deparamos com o momento de início da vida, não existe consenso, nem científico, nem mesmo religioso em relação a ele.
No campo científico, há gente respeitável, como o geneticista francês Jérôme Lejeune e a neurobiologista estadunidense Maureen Condic, que defendem a tese do início da vida com a concepção. Já cientistas igualmente respeitáveis, como o biólogo estadunidense Scott Gilbert e o neurocientista Michael Gazzaniga, também dos EUA, defendem, a partir de conceitos diferentes do que seja vida, que não se dá dessa forma, apesar da vida em potencial presente a partir daquele momento. E a controvérsia se estende com as nuances biológicas em teorias que ora consideram a nidação (fixação do embrião no útero) como esse início, ora o desenvolvimento (marcos biológicos progressivos), e ainda a chamada teoria neurológica, que vincula o início da proteção jurídica ao surgimento de atividade cerebral. Esta última tem sido aceita pelo STF nos precedentes sobre questões correlatas [2].
Também nas religiões, o assunto é visto de forma diversa se considerarmos a visão da maioria das igrejas cristãs que veem o início da vida no momento da concepção, algo compartilhado por boa parte do islamismo, mas não ocorrendo o mesmo com o judaísmo, por exemplo. Mesmo no cristianismo e no islã, tais posições estão longe de ser unânimes, o que traz reflexos importantes de como veem o aborto e em que situações o entendem permitido ou proibido.
Sendo jurista, não me apetece debater com profundidade aspectos científicos biomédicos acerca do tema, mas é preciso reconhecer a priori que: 1) há objetivamente uma controvérsia sobre o momento de início da vida e diferentes formas de conceituá-la para efeito de determinar quando ela se inicia; 2) não há, contudo, controvérsia sobre a existência de vida após o nascimento, portanto, é incontroverso que a gestante possui direito à vida em sua plenitude; 3) que questões delicadas e complexas como a da PEC para efeito de punição ou não da prática abortiva precisa ponderar todos esses bens jurídicos envolvidos para resolver os problemas daí decorrentes de aplicabilidade e eficácia dos direitos fundamentais envolvidos.
De um lado, a Constituição já protege a vida desde a concepção independentemente da PEC em comento. Tanto que embora não disponha diretamente sobre a questão, admite a expressão previsão da proteção jurídica do nascituro na legislação infraconstitucional. O artigo 2º do Código Civil considera a personalidade civil existente apenas a partir do nascimento com vida, mas põe a salvo os direitos do nascituro desde a concepção. E é justamente essa proteção, mesmo que não absoluta, a partir da concepção, que fundamenta a existência de lei penal punindo o aborto como crime e permitindo consequentemente que os artigos 124 a 128 do Código Penal, que são de 1940, sejam considerados recepcionados pela Lei Maior.
De outra monta, a mesma Constituição reconhece que, em linhas gerais, não há direito absoluto nem mesmo à vida constituída de pessoa nascida, considerando que admite a pena de morte em casos de guerra declarada (artigo 5º, XLVII, a, c/ artigo 84, XIX), bem como a proteção à vida da mulher é tão ou mais importante que a do embrião/feto, bem como a dignidade humana daquela, que já é incontroversamente destinatária desses direitos.
Da mesma forma, o desenvolvimento de décadas de jurisprudência constitucional pelo STF em torno do princípio da proporcionalidade, especialmente se a consideramos em uma perspectiva dworkiniana de conceber o Direito como coerência e integridade [3], exige de todos os que lidam com a aplicabilidade de normas constitucionais e infraconstitucionais o respeito a esse princípio e a obrigatória aplicação do teste de seus subprincípios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito a casos como o do presente debate sobre a proteção da vida desde a concepção e o potencial fundamento que isso possa gerar para a proibição de excludentes de punibilidade em relação ao aborto, tal como ocorre na legislação penal em vigor.
Em linhas gerais, concebe-se o subprincípio da adequação como aquele que, em seu horizonte teleológico, ao ter em vista à finalidade da norma, analisa se o meio empregado para alcançá-la de fato a fomenta, a promove. O subprincípio da necessidade impõe que o poder público adote sempre, dentre os meios existentes para esse fomento, que se utilize daquele menos gravoso para os direitos fundamentais das pessoas envolvidas. Por fim, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, que só é considerado após a averiguação de que o meio/ato é adequado e necessário, e que consiste, como destaca Virgílio Afonso da Silva, “em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva” [4].
Em meu entendimento, a PEC 164/2012 não passaria pelo teste dos subprincípios da proporcionalidade já a partir da necessidade. Explico: embora aprioristicamente não haja problema de adequação no que diz respeito a fomentar a proteção da vida desde a concepção, evidentemente a inclusão do termo “desde a concepção” é desnecessária para essa proteção e, ao mesmo tempo, perigosa por permitir a interpretação de que a legislação infraconstitucional que permite o aborto em certos casos de proteção da vida e da dignidade da mulher através das excludentes de punibilidade do artigo 128 do CP possa ser inconstitucional e consequentemente invalidada, sendo, portanto, um meio mais gravoso e claramente atentatório aos direitos fundamentais da mulher em tais situações. Ademais, o próprio legislador, no ano de 1940, em pleno regime autoritário do Estado Novo e há 84 anos, fez na ocasião essa ponderação de bens jurídicos, entendendo à época, em uma sociedade bem menos evoluída que a atual em vários sentidos, que esses casos (estupro e risco de vida para a gestante) não deveriam ser punidos, sendo acrescidos do caso do feto anencéfalo, como lembrei acima, em razão da decisão do STF de 2013. Por essas últimas razões, também não atenderia a PEC 164/2012 ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito.
Entendimento diverso acarreta aceitar que mulheres e meninas (algumas com 12, 11 ou até 10 anos), sob pena de serem consideradas criminosas (bem como os envolvidos no aborto, como médicos e enfermeiros), sejam obrigadas a levar até o final a gestação ocorrida a partir de um ato de extrema violência que sofreram e dá ao criminoso estuprador um poder desproporcional sobre a vida de sua vítima, praticamente tendo uma espécie de “direito” a escolher qualquer mulher para ser mãe de sua prole e violentá-la para esse fim. Acarreta aceitar que a vida de um embrião/feto tenha mais valor – ou pelo menos o mesmo – que a da mulher gestante, a ponto de submetê-la ao risco de morrer para levar a gestação até o fim, quando ela pode inclusive ter outros filhos, pais, cônjuge e outras pessoas que dela dependam. Ou ainda que uma mulher, constatada a anencefalia do feto, seja obrigada a passar meses em um luto gestacional para fazer um parto de um ser humano que não terá qualquer viabilidade vital posterior ao parto, levando seu bebê da maternidade diretamente ao cemitério. É disso que se trata no caso em tela e não consigo conceber como proporcional ou razoável que assim o seja, ante tudo o que aqui expus.
Mesmo se eventualmente fosse aprovada pelo Congresso Nacional, penso que, a se considerarem seus precedentes de décadas, o STF declararia sua inconstitucionalidade por ser tendente à abolição de direitos individuais da mulher, como a sua vida e a dignidade humana, algo expressamente vedado pela cláusula pétrea do artigo 60, § 4º, IV, bem como flagrante violação do princípio da proporcionalidade, pacificamente reconhecido pela jurisprudência da Suprema Corte brasileira como princípio constitucional.
Todavia, espera-se que o Parlamento rejeite essa PEC flagrantemente inconstitucional e evite mais uma crise institucional entre os Poderes. Do contrário, forçaria o Supremo a mais uma vez invalidar norma aprovada pelo Legislativo nacional, tensionando ainda mais as relações entre os Poderes Legislativo e Judiciário. Ou, na hipótese mais grave, a aceitar a inconstitucionalidade e permitir um retrocesso de quase cem anos, transformando a Lei Maior brasileira em uma autêntica “Constituição antimulher”, algo que evidentemente jamais foi objetivo do poder constituinte originário, exercido durante a Assembleia Constituinte de 1987-1988, e que resultou em nossa atual Carta Magna.
[1] STF. ADPF 54, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 30/04/2013. Cf. tb. GALINDO, Antonella. O Estado laico segundo o Supremo Tribunal Federal: Aspectos da legalidade oblíqua e contramajoritária no Brasil. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, Edição Comemorativa dos 130 anos da Revista Acadêmica. Recife: UFPE, p. 66-69, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/ACADEMICA/article/view252585.
[2] SILVA, Patrick Luiz Martins Freitas. O marco concepcionista e a resistência simbólica ao STF. CONJUR, 2024. Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-nov-22/o-marco-concepcionista-e-a-resistencia-simbolica-ao-stf/, acesso: 01/12/2024.
[3] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, p. 274, 1999.
[4] SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: Revista dos Tribunais, nº 798. São Paulo: RT, p. 40, 2022. ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 111-112, 160ss.
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