Comissão a corretores no setor imobiliário e no Carf
4 de dezembro de 2024, 8h00
O mercado imobiliário possui muitas particularidades: o ciclo de produção longo; as várias espécies de atividades (incorporação imobiliária, loteamento, construção civil para terceiros, compra e venda de imóveis e administração de imóveis) e espécies de contratos (empreitada, subempreitada e construção por administração). Tais particularidades, com razão, arrastam consigo a necessidade de regras tributária específicas, como o tratamento de contratos a longo prazo pelo Regulamento do Imposto de Renda (artigo 478 e seguintes do RIR/2018); além de culminar num contencioso também específico sobre os seus conceitos, como a abrangência do termo “obras de construção civil” para fins de sistemática cumulativa da Contribuição ao PIS e da Cofins (cf. Solução de Consulta nº 43/2020).
Não à toa, a construção civil é um dos setores que foi agraciado com um regime específico na reforma tributária.
Pois bem. Dentre tantos traços distintivos do setor, no contexto das atividades praticadas no mercado imobiliário vê-se o questionamento pela Receita Federal do Brasil (RFB) a respeito da tributação das receitas envolvendo vendas intermediadas por corretores, cujo pagamento se dá mediante comissão. Na coluna de hoje buscar-se-á compreender a estrutura negocial aí envolvida, para possibilitar uma mais acurada análise da natureza jurídica dos valores provenientes desses contratos, seus consequentes impactos tributários e, como sempre, a jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) sobre o tema.
A estrutura do negócio: vendas de imóveis mediante intermediação e corretagem
Para fins de maximização de resultados, as atividades de intermediação na venda de unidades imobiliárias construídas pelas incorporadoras/empreendedoras são realizadas por meio de contratos de intermediação. Em cada transação realizada, a taxa de intermediação sobre o preço total do imóvel, correspondente a um percentual variável, será paga pelo comprador no momento da assinatura do contrato de aquisição do imóvel.
Para a consecução de tal objetivo, a intermediadora faz parcerias com corretores, para efetivação das vendas.
Nesse formato, a venda de um imóvel envolve a participação de quatro figuras, quais sejam: 1) a empreendedora, que é a empresa incorporadora proprietária do imóvel a ser comercializado e que assume o ônus de pagar integralmente a intermediadora, pela intermediação nas vendas de uma determinada carteira de unidades imobiliárias, percentual este a ser aplicado sobre o preço de cada unidade; 2) a empresa responsável pela intermediação da venda, que assume a responsabilidade de disponibilizar nos “stands de venda” todos os recursos profissionais necessários a prestação do serviço de corretagem e é autorizada pela incorporadora a concluir os negócios desde que todas os requisitos contratuais sejam satisfeitos; 3) a empresa corretora de imóveis e/ou corretores autônomos (pessoas físicas) e; 4) o comprador da unidade imobiliária.
Em tal modelo de negócios adotado no mercado imobiliário, normalmente, após a concretização da venda, é celebrado um contrato de intermediação [1] (de corretagem) que contém um anexo denominado “Carta Proposta”, em que estão relacionados os valores de comissão devidos pelo adquirente do imóvel a cada um dos corretores envolvidos na venda, assim como o valor que cabe à pessoa jurídica (intermediadora).
Receita de quem?
Apresentadas essas considerações iniciais, já é intuitivo perceber onde se encontra o questionamento das autoridades fiscais, gerando o contencioso administrativo que se buscará analisar na coluna de hoje: há receita própria (da empresa intermediadora) ou receita de terceiros (dos corretores) quando da venda de unidades imobiliárias por meio de intermediários e corretores, para fins de incidência do IRPJ, CSLL, PIS e Cofins?
Segundo a mais abalizada doutrina jurídica, entende-se por “receita” os ingressos financeiros ocorridos de forma individual que integram de forma definitiva o patrimônio da pessoa jurídica [2].
Dessa forma, não é suficiente o simples reconhecimento de entrada em dinheiro na pessoa jurídica para que esteja caracterizada uma receita tributável, pois receita não é a mesma coisa que ingresso financeiro.
Para que um ingresso financeiro caracterize uma receita da pessoa jurídica, devem estar presentes quatro requisitos: 1) sua definitividade no patrimônio da pessoa jurídica; 2) a titularidade desses valores pela pessoa jurídica; 3) a disponibilidade desses valores pela pessoa jurídica; 4) ser uma contraprestação de negócio jurídico inerente ao exercício das atividades empresariais, mesmo que tais atividades não constem do objeto social da empresa ou de suas atividades típicas.
Tudo deixa evidente que só pode ser considerada receita aquela destinada a remunerar algum tipo de atividade exercida pela própria empresa, e não eventuais ingressos que circulam pela sua contabilidade para serem transferidos a terceiros, sendo, portanto, receitas destes e não do contribuinte que os recebem.
No caso do setor imobiliário, a RFB tem lavrado autos de infração pautados no entendimento de que as empresas intermediadoras de vendas têm omitido receitas advindas do exercício de sua atividade de intermediação imobiliária, reconhecendo apenas uma parte de sua receita, ao deixar de fora valores que são destinados aos corretores que, no seu entender, seriam de sua responsabilidade, conforme os contratos celebrados com as empreendedoras.
Embora as vendas mediante o referido formato seja prática frequente no mercado imobiliário em todo o Brasil, existem inclusive lançamentos tributários lavrados com alegação de existência de planejamento tributário abusivo pela prática, que visaria dolosamente a redução da base de cálculo dos tributos administrados pela Receita Federal. Argumentam as autoridades fiscais que a parte destinada ao corretor é incluída no preço do imóvel e paga pelo comprador. Nessa perspectiva, haveria sonegação fiscal dos valores recebidos pelos corretores autônomos, que seriam receitas próprias das empresas intermediadoras, responsáveis pelo pagamento a esses corretores, razão pela qual esses lançamentos vêm acompanhados de multa qualificada.
Contrato de corretagem na lei civil
Para uma análise mais detalhada da questão, faz-se oportuno ressaltar que o contrato de corretagem está expressamente regulamentado pelo Código Civil e, por isso, pode ser considerado como um contrato típico dentro do ordenamento jurídico pátrio.
O artigo 722 do Código traz a definição desta modalidade contratual e os artigos seguintes definem as regras que devem ser seguidas no pagamento da comissão eventualmente devida ao corretor.
O Código Civil encontra-se atento para a possibilidade de a remuneração do corretor não estar fixada em lei, nem ajustada previamente entre as partes, o que atrairá a prevalência da natureza do negócio e os usos locais (cf. artigo 724). Ainda, há previsão da possibilidade de a intermediação ser concluída por mais de um corretor, o que levará à divisão da comissão entre eles (cf. artigo 724).
Além disso, deve ser salientado que a legislação específica que regulamenta as atividades de corretagem equipara as pessoas físicas às jurídicas, conforme disposto no artigo 6º da Lei nº 6.530/78) [3].
O que parece que não tem sido levado em consideração pelas autoridades fiscais é que tanto o pagamento da parte da comissão para a intermediadora, quanto o pagamento da parte da comissão para os corretores autônomos, decorrem de uma obrigação contratual assumida pelos adquirentes dos imóveis, devidamente amparada pela lei civil, acima mencionada.
A jurisprudência do Carf sobre o tema
No âmbito do Carf a questão já foi analisada em algumas oportunidades, tendo prevalecido o entendimento de que inexiste omissão de receitas pelo intermediador de vendas a ensejar a respectiva tributação.
Como se verifica no julgamento do Acórdão nº 1201-002.487, julgado em 19 de setembro de 2018, entendeu-se que as comissões recebidas pelos corretores autônomos, que mantêm contrato de parceria de trabalho com a imobiliária pessoa jurídica contratada por construtora/incorporadora, nas operações de vendas de unidades imobiliárias, não se caracterizam como receita da pessoa jurídica, tendo sido afastado o lançamento de IRPJ e seus reflexos.
O tema também foi tradado no Acórdão nº 1401-002.191, de 20 de fevereiro de 2018, oportunidade em que se deu razão às alegações da empresa imobiliária/intermediadora, sustentando que “devem ser preservados os efeitos da relação existente entre corretores, imobiliárias e construtoras e não tendo sido verificado o pagamento direto ou indireto pela imobiliária, a autuação fiscal deve ser considerada improcedente”.
No Acórdão nº 1302-005.824, julgado em 19 de outubro de 2021, a 3ª Turma também entendeu que as comissões recebidas por corretores autônomos, que mantêm contrato de parceria de trabalho com a imobiliária pessoa jurídica contratada por construtora/incorporadora, nas operações de vendas de unidades imobiliárias, não se caracterizam como receita da pessoa jurídica intermediária. Esse entendimento também prevaleceu no julgamento do Acórdão n. 1201-005.890, datado de 20 de junho de 2023.
Assim, segundo o Carf, não haveria motivo para se alegar omissão de receitas por parte da pessoa jurídica intermediária, já que ela nem mesmo deveria reconhecer esses valores, destinados aos corretores autônomos, como sua própria receita própria. Afinal, não suas (intermediadora), mas sim de terceiros (corretores pessoas físicas). Isso sempre dentro do mesmo dado de realidade: a formalização de negócios jurídicos de venda de unidades imobiliárias em que a corretagem por profissional autônomo é paga pelo comprador da unidade, em benefício deste mesmo corretor.
O ponto de vista do STJ
Tal assunto também foi tratado pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.599.511/SP (Tema 938) [4], onde se concluiu que no “contrato tradicional de corretagem disciplinado pelo Código Civil, a obrigação de pagar a comissão ao corretor é, em regra, do incumbente (ou comitente), o qual, usualmente, no mercado imobiliário, é o vendedor, podendo, entretanto, ser transferida a outra parte interessada no negócio mediante cláusula contratual expressa no contrato principal”.
No citado julgamento, o STJ consignou que a forma de atuação dos corretores imobiliários tem sofrido modificações nos casos de venda de imóveis na planta, não ficando ele mais sediado em uma empresa de corretagem, mas sendo, isso sim, contratado pela incorporadora para estar em “stands de vendas” situados no próprio local da construção do edifício de apartamentos.
Assim, após o sucesso na negociação, a incorporadora, ao firmar o contrato de promessa de compra e venda, passa para o comprador a responsabilidade de pagar a comissão de corretagem diretamente ao corretor. Isso pode ser feito por meio de uma cláusula expressa no contrato, acordo verbal ou pela celebração de um contrato separado entre o consumidor e o corretor.
O aludido cenário, de acordo com o exposto pelo STJ, é corroborado pelas inspeções conduzidas pela Receita Federal do Brasil, que frequentemente se deparam com o fato de que apenas após a conclusão da venda é que o contrato de intermediação (corretagem) é formalizado. Este contrato geralmente inclui um anexo chamado “Carta Proposta” – já mencionado acima –, em que são especificados os valores de comissão a serem pagos pelo comprador aos corretores envolvidos na transação ou à imobiliária.
Isso sugere que esse contrato de intermediação funciona essencialmente como um instrumento de transferência de responsabilidade pelo pagamento dos serviços, os quais foram inicialmente contratados pela construtora e, em grande parte, já foram concluídos (incluindo captação, orientação e persuasão do cliente).
Nesse andar, o precedente do STJ é bastante importante para a solidificação do entendimento de que a parte da comissão paga pelos adquirentes dos imóveis aos corretores autônomos constitui receita exclusiva dos próprios corretores autônomos, cabendo tão-somente a esses a obrigação de proceder ao recolhimento dos tributos devidos à União sobre tais receitas.
Uma conclusão tranquilizadora, ao menos nesse caso
Portanto, diferente de outros casos mais controversos a respeito da caracterização de omissão de receitas no contexto de intermediação de negócios, como ocorre com agências de publicidade e propaganda ou com agências de turismo, vemos na jurisprudência do Carf um cenário bastante firme no sentido de segregar as receitas dos corretores imobiliários daquelas da empresa intermediadora, para fins de apuração dos tributos devidos à Receita Federal. Infere-se que, em grande medida, essa maré de tranquilidade deve-se ao julgamento proferido pelo STJ em 2016, no REsp 1.599.511/SP, que embora não trate de matéria tributária, mostra a importância do órgão enquanto vértice interpretativo da legislação federal, possibilitando a segurança jurídica a respeito da validade de estruturas contratuais, como a analisada no presente texto.
[1] Sobre a intermediação no contexto da tributação pela Contribuição ao PIS e pela COFINS das receitas das agência de turismo, já foi publicado texto elucidativo nessa coluna, de autoria de Carlos Augusto Daniel Neto: https://www.conjur.com.br/2022-nov-23/direito-carf-receita-tributavel-operacoes-intermediacao-agencias-turismo/
[2] MINATEL, José Antonio. O conceito de receita, para feitos de incidência do PIS e da COFINS in COÊLHO, Sacha Calmon Navarro (org.). Contribuições para a Seguridade Social. São Paulo: Ed. Quartier Latin. 2007. p. 531
[3] Art 6º. As pessoas jurídicas inscritas no Conselho Regional de Corretores de Imóveis sujeitam-se aos mesmos deveres e têm os mesmos direitos das pessoas físicas nele inscritas.
[4] Tese firmada:
(i) Incidência da prescrição trienal sobre a pretensão de restituição dos valores pagos a título de comissão de corretagem ou de serviço de assistência técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere (artigo 206, § 3º, IV, CC). (vide REsp n. 1.551.956/SP)
(ii) Validade da cláusula contratual que transfere ao promitente-comprador a obrigação de pagar a comissão de corretagem nos contratos de promessa de compra e venda de unidade autônoma em regime de incorporação imobiliária, desde que previamente informado o preço total da aquisição da unidade autônoma, com o destaque do valor da comissão de corretagem; (vide REsp n. 1.599.511/SP)
(ii, parte final) Abusividade da cobrança pelo promitente-vendedor do serviço de assessoria técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere, vinculado à celebração de promessa de compra e venda de imóvel. (vide REsp n. 1.599.511/SP)
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!