Omissão nos crimes de abolição violenta do Estado democrático e de golpe
4 de dezembro de 2024, 11h23
No que diz respeito às “acusações” — até o momento houve apenas indiciamento — do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro pelos crimes de abolição do Estado democrático de Direito (artigo 359-L), golpe de Estado (artigo 359-M), ambos do Código Penal e organização criminosa (artigo 1º da Lei 12.850/2013), pelos fatos ocorridos ao final do seu mandato e que culminaram, no dia 8 de janeiro de 2023, com os ataques ao Palácio do Planalto, ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal na Praça dos Três Poderes, em Brasília, é necessário fazer algumas considerações de ordem dogmática-penal.
Com a descoberta por parte da Polícia Federal de um plano — operação punhal verde asmarelo — para matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes, a PF, no último dia 21 de novembro, concluiu inquérito indiciando 37 pessoas — pelos crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa — entre as quais, o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Embora conste do substancioso relatório da PF, de quase 900 páginas, que o plano de golpe de Estado foi tramado por vários ex-integrantes e homens de confiança de Bolsonaro — general da reserva do Exército Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa e candidato a vice-presidente na chapa que perdeu a eleição de 2022; general da reserva Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); policial federal Alexandre Ramagem, ex-diretor da Agencia Brasileira de Informações (Abin); tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente; Valdemar Costa Neto, presidente do Partido Liberal, entre outros —, a defesa do ex-presidenteo, bem como ele próprio e seus seguidores, alegam, entre outras coisas, que não houve uma participação direta do então chefe do Executivo nos crimes pelos quais foi o mesmo indiciado.
Apesar de todos, até o momento, indícios da participação de Bolsonaro nos crimes pelos quais foi ele indiciado, segundo o relatório da PF, na dependência, ainda, do oferecimento da denúncia por parte do procurador-geral da República (PGR) e de um futuro julgamento perante no STF, onde será — como deve ser — garantido aos acusados contraditório e ampla defesa, o ex-presidente vem alegando que não praticou conduta positiva (comissiva).
Não obstante, necessário destacar que, de acordo com o relatório da PF:
os elementos de provas obtidos ao longo da investigação demonstram de forma inequívoca que o então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados pela organização criminosa que objetivava a concretização de um Golpe de Estado e da Abolição do Estado Democrático de Direito.
Responsabilidade do ex-presidente
Sem esmiuçar o relatório da PF que detalha os atos perpetrados por Bolsonaro e, partindo da hipótese de que, conforme alega sua defesa, não houve participação do ex-presidente na “trama golpista”, faz-se necessário uma análise (jurídica-penal) de uma eventual responsabilidade, do então presidente da República, por omissão em relação aos crimes de abolição do Estado democrático de direito (artigo 359-L) e golpe de Estado (artigo 359-M).
Apesar dos excelentes artigos já escritos sobre os crimes em tela [1], salvo engano, ainda não foi abordado a responsabilidade penal no que se refere a omissão e cumplicidade de Jair Bolsonaro.
Embora seja extremamente complexo o tratamento dado pela doutrina em relação aos crimes omissivos (próprios e impróprios), procuraremos aqui neste espaço fazer algumas brevíssimas considerações [2], notadamente, em relação a participação do ex-presidente Bolsonaro.
Ao tratar da diferenciação entre os crimes omissivos próprio e os crimes omissivos impróprios, Juarez Tavares, em sua magnífica obra “Teoria dos crimes omissivos”, explica que:
Haverá crime omissivo próprio toda vez que, além da generalidade do sujeito, a não realização da ação possível implique por si mesma a violação de uma norma mandamental. Haverá, por outra parte, crime omissivo impróprio toda vez que a não realização da ação possível, por parte de um sujeito na posição de garantidor, implique o não impedimento do resultado, na medida de sua produção por ação. [3]
Assim, são exemplos de crimes omissivos próprios — que se consumam com a simples infração da ordem ou comando de agir — abandono de incapaz (artigo 133), omissão de socorro (artigo 135), abandono material (artigo 244), entre outros do Código Penal.
Crimes comissivos por omissão
Já os crimes omissivos impróprios, também chamados de crimes comissivos por omissão, decorrem de uma situação, posto que se caracteriza pela violação do dever jurídico de impedir o resultado. O exemplo clássico é o da mãe ou do pai que, podendo e devendo agir, deixa de alimentar o filho causando-lhe a morte por inanição. Neste caso, os pais responderão por homicídio, posto que os pais tinham o dever de agir para evitar o resultado.
De acordo com o Código Penal (artigo 13, parágrafo 2º):
A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
As situações previstas no parágrafo 2º do artigo 13 do Código Penal derivam, segundo a doutrina, da posição de garantidor do sujeito.
A posição de garantidor pode decorrer de uma norma extrapenal, como a Constituição, o Código Civil e as leis profissionais, ou mesmo de uma norma penal. [4]
Chama atenção aqui para as alíneas ‘b’ e, especialmente, ‘c’ do parágrafo 2º do artigo 13 do Código Penal. Trata-se a alínea ‘c’ da chamada ingerência.
A ingerência, dogmaticamente, de acordo com Juarez Tavares, situa-se no “âmbito das fontes produtoras de perigo”. [5]
Portanto, aquele que com seu agir anterior, segundo Régis Prado, “dá lugar (= cria/causa/provoca) a um perigo de lesão a certo bem jurídico, responde pelo eventual resultado típico, como se o tivesse causado por ação. Há assim uma sucessão de duas condutas, sendo a primeira desencadeadora de um curso de risco ou perigoso e a segunda consistente no não impedimento do resultado que aquele devia conduzir”. [6]
Em relação ao problema da cumplicidade por omissão, em sua clássica obra “Concurso de Agentes”, Nilo Batista assevera que “o garantidor que omite a ação impeditiva do resultado é autor, e sua autoria se fundamenta na violação do dever especial ao qual estava adstrito”. [7]
Contrariando à posição doutrinária brasileira predominante, Nilo Batista é categórico em afirmar que “onde existia o dever jurídico de impedir o resultado não haverá cumplicidade por omissão, mas poderá haver autoria pelo crime omissivo (autoria esta colateral à autoria daquele que por ação produz o resultado)”. [8]
Atuação de Bolsonaro
Passemos, então a verificação da responsabilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro — por omissão — nos crimes de abolição do Estado democrático de Direito e golpe de Estado.
Ao tomar posse no dia 1º de janeiro de 2019, em cerimônia realizada no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro prestou compromisso nos termos do que determina a Constituição:
O Presidente e o Vice-Presidente da República tomarão posse em sessão do Congresso Nacional, prestando o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil. (Art. 78)
Ao prestar o compromisso constitucional, Jair Messias Bolsonaro — o 38º presidente do Brasil desde a proclamação da República (1889) — se comprometeu a “manter, defender e cumprir a Constituição…”.
Assim sendo, não resta dúvidas de que na qualidade de autoridade suprema das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica), o presidente da República tem o dever de responsabilidade de impedir quaisquer condutas com a pretensão de abolir o Estado democrático de direito ou de tentativa de golpe de depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.
No substancioso relatório da PF está demonstrado que o ex-presidente tinha — no mínimo — pleno conhecimento e consciência de que estava em curso uma tentativa de abolição do Estado democrático de Direito e de tentativa de golpe de Estado com a deposição do presidente, eleito democraticamente, Luiz Inácio Lula da Silva.
Consta do relatório que Bolsonaro sabia de uma carta com teor golpista assinada por oficiais do Exército. Destaca-se, também, que foi apreendido, na sede do PL (partido de Bolsonaro), o documento “operação 142” que detalhava como seria o golpe. Um dos tópicos do referido documento dizia: “Lula não sobe a rampa”.
De acordo, ainda, com a PF o documento para impedir a posse do governo eleito e restringir o exercício do Poder Judiciário foi apresentado ao general da reserva do Exército Braga Netto em sua casa em novembro de 2022.
Necessário rememorar que, em discurso no dia 7 de setembro (dia da independência) de 2002, o então presidente Bolsonaro atacou veementemente o STF, especialmente, o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes. Anteriormente, em maio de 2020, Bolsonaro já havia participado de manifestações golpistas na Praça dos Três Poderes em que placas diziam: “Supremo é o povo” e “Abaixo a ditadura do STF”, além de algumas faixas que pediam a intervenção militar e chamavam os congressistas de corruptos. Os ataques por parte de Bolsonaro a justiça eleitoral foi constante, inclusive diante de vários embaixadores e diplomatas de outros países.
Risco de ocorrência do resultado
É incontestável que, com suas inúmeras atitudes e com seu comportamento anterior, o ex-presidente Jair Bolsonaro, criou o risco da ocorrência do resultado (artigo 13, parágrafo 2º, “c” do CP). Tinha, portanto, ingerência sobre os crimes perpetrados.
Por tudo, ainda que o ex-presidente Bolsonaro, hipoteticamente e supostamente, não tenha praticado uma conduta comissiva, deverá ser processado e julgado por, no mínimo, não ter agido para impedir a consumação dos crimes — que como já foi dito alhures, são crimes de perigo concreto que se consumam independente da ocorrência de um resultado naturalístico e que se consumam no momento em que o bem jurídico é colocado em situação ou condição objetiva de provável lesão — em razão de seu dever. Sendo por óbvio, como já foi dito, garantido a ele e aos demais, por ora, indiciados, a ampla defesa, o contraditório e, até que seja definitivamente julgado, a presunção de inocência.
[1] “Direito de contragolpe: o que são condutas atentatórias à democracia” (partes I e II) de Emerson Ramos, Lenio Streck e Marcelo Cattoni; “Golpe de 2022: elementos para a concretização do crime pela tentativa” de Fernando Fernandes e Guilherme Marchioni; “A consumação de um crime de tentativa: os limites entre atos preparatórios e executórios nos crimes contra as instituições democráticas” de Bruno Salles Riberio, “Insurgentes cometeram crime de abolição do Estado? ”de Pierpaolo Cruz Bottini, entre outros.
[2] Evidente que em razão da própria limitação do espaço e da natureza do presente artigo deixamos de analisar vários e importantes aspectos doutrinários, como, por ex., os que se referem a teoria da imputação objetiva, o que poderá ser abordado em outra ocasião.
[3] TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. Marcial Pons, 2012, p. 309.
[4] TAVARES, op. cit. p. 319.
[5] TAVARES, op. cit. p. 332.
[6] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral. 12 ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 364.
[7] BATISTA, Nilo. Concurso de agentes: uma investigação sobre os problemas da autoria e da participação no direito penal brasileiro.3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 173.
[8] Idem, ibidem.
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