(Im)possibilidade de julgamento monocrático do mérito dos embargos de divergência
4 de dezembro de 2024, 9h24
O princípio da colegialidade determina que os recursos sejam, em regra, decididos por órgãos colegiados. Desde o CPC/73, a doutrina discute as hipóteses em que seria conveniente excepcionar esse princípio, autorizando-se o julgamento monocrático pelo relator, com o objetivo de racionalizar a prestação jurisdicional nos tribunais e reduzir o acervo de processos pendentes de julgamento.
Sob égide do CPC/73, na linha de outras reformas que já caminhavam nesse sentido [1], foi editada a Súmula 568/STJ, consolidando a orientação de que “O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema”.
Com o CPC/2015, os poderes do relator foram ampliados, e as hipóteses de decisões unipessoais sistematizadas. O artigo 932, incisos IV e V, condiciona tais decisões à existência de súmulas dos tribunais superiores ou precedentes vinculantes sobre a questão debatida. Assim, o relator pode, por decisão monocrática, negar provimento ao recurso, se este for contrário a súmula do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, a acórdão firmado pelo STF e STJ no julgamento de recursos repetitivos e a entendimento firmado pelos tribunais em IRDR e IAC; ou dar provimento ao recurso, se o acórdão impugnado for contrário aos entendimentos firmados nessas mesmas hipóteses.
Decisão monocrática em embargos divergência
Embora a legislação atual não empregue mais a expressão “entendimento dominante”, a Súmula 568 ainda serve de fundamento para decisões monocráticas no STJ, especialmente em casos com entendimento pacificado nas Turmas ou Seções. Os recursos que discutem questões ainda não examinadas pela Turma ou Seção costumam – e devem – ser pautados para julgamento no respectivo órgão colegiado.
Têm nos chamado atenção, todavia, decisões monocráticas do STJ, com base na Súmula 568/STJ, dando ou negando provimento a embargos de divergência. A prática, a nosso ver, é ilegal, e merece observações, a fim de que não se estabeleça.
Tome-se, a título de exemplo, o EREsp 1.879.645/SP. Tratava-se de embargos de divergência interpostos contra acórdão da 4ª Turma que deu provimento a recurso especial para reconhecer a validade da recusa do plano de saúde em realizar a cobertura de procedimento de caráter experimental que não constava do rol da ANS. A parte embargante alegou que o acórdão divergia de julgados da 3ª Turma, estes orientados no sentido de se determinar a cobertura do procedimento, e requereu o provimento do recurso pela 2ª Seção, a fim de dirimir a divergência.
Os embargos foram distribuídos a membro integrante da 3ª Turma. Este, por sua vez, divergiu do entendimento firmado no acórdão impugnado e deu provimento monocrático ao recurso, determinando a cobertura do procedimento.
O seguinte motivo serviu de justificativa para se decidir por decisão monocrática: “Com fundamento na orientação contida na Súmula 568/STJ, estou em proceder ao julgamento monocrático dos embargos de divergência, tendo em vista a existência de precedentes acerca da questão ora discutida e a necessidade de desabastarem as pautas já bastante numerosas da Colenda 2ª Seção”. A questão, no entanto, era controversa, do contrário sequer teriam sido admitidos os embargos de divergência.
Contra essa decisão a parte embargada opôs agravo interno, o qual foi incluído em pauta virtual da 2ª Seção, que dele não conheceu, por ausência de impugnação específica dos fundamentos da decisão agravada, com aplicação da Súmula 182/STJ.
Essa dinâmica é, inclusive, um dos pontos sensíveis da questão. Uma vez julgado o mérito dos embargos de divergência por decisão monocrática, eventual agravo interno dessa decisão será pautado para julgamento na pauta virtual da Seção, podendo acabar desprovido por razões outras que não digam respeito à discussão de mérito do recurso, como ocorreu nesse caso. Assim, a decisão singular meritória tornar-se-á soberana e a Seção terá deixado de dirimir relevante divergência, chancelando, porém, sem maiores discussões, decisão unipessoal que atenta contra a finalidade do recurso.
Também é ilustrativa dessa realidade a tramitação do EREsp 1.424.404/SP, no qual a Corte Especial do STJ discutiu a possibilidade de aplicação, por analogia, da Súmula 182/STJ, ao agravo interno contra decisão que julga recurso especial.
Nesse caso, foi relator o ministro Luis Felipe Salomão. Interpostos embargos de divergência contra acórdão da 1ª Turma, a Presidência do STJ deles não conheceu, aplicando a Súmula 315/STJ. O embargante, por sua vez, interpôs agravo interno, o qual foi provido pela Corte Especial, para determinar o processamento dos embargos de divergência e a intimação do embargado para apresentar sua impugnação.
Na sequência, o relator dos embargos de divergência, em vez de proceder à intimação do embargado e, posteriormente, pautar o feito para julgamento de mérito na Corte Especial, deu provimento imediato ao recurso, por decisão singular.
O Ministério Público do Estado de São Paulo, no entanto, que figurava no processo como embargado, agravou da decisão, sustentando justamente a impossibilidade de provimento monocrático dos embargos de divergência [2].
O relator reconheceu o equívoco, reconsiderou a decisão agravada e pautou o feito na Corte Especial, do que resultou o entendimento atualmente em vigor de que a “ausência de impugnação, no agravo interno, de capítulo autônomo e/ou independente da decisão monocrática do relator – proferida ao apreciar recurso especial ou agravo em recurso especial – apenas acarreta a preclusão da matéria não impugnada, não atraindo a incidência da Súmula 182 do STJ” (EREsp n. 1.424.404/SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 20/10/2021, DJe de 17/11/2021.)
Ilegalidade
As decisões citadas, a nosso ver, atentam contra a finalidade do recurso, e centenas de outras no mesmo sentido podem ser localizadas no acervo do STJ.
Apesar da justificativa que algumas delas invocam para avançar sobre o mérito dos embargos de divergência de forma monocrática, não se pode deixar de assinalar que essa prática é ilegal. Uma coisa é decidir monocraticamente os embargos de divergência tendo por objeto a análise de seus requisitos de admissibilidade, o que é admitido pelo artigo 932, III, do CPC [3]; outra coisa, porém, é o julgamento de mérito desse recurso por decisão singular, encampando-se uma das posições manifestadas pelas turmas, o que carece de previsão legal, além de atentar contra a própria lógica do recurso [4].
Os embargos de divergência são o recurso cabível no ornamento jurídico brasileiro para eliminar a dissidência interna no âmbito dos Tribunais Superiores e promover, assim, a uniformização da jurisprudência. Nessa espécie recursal, o interesse da parte de ver acolhido seu recurso se converte em veículo do Estado para a tutela do direito objetivo, com a definição de uma posição paradigmática, que servirá para orientar o direito nacional, em que pese o julgamento não constitua precedente vinculante [5].
Como seria possível, pois, dar ou negar provimento aos embargos de divergência, por decisão singular, se a finalidade desse curso é precisamente a de levar a definição do direito para o órgão de maior composição, a que se vinculam os órgãos fracionários conflitantes, a fim de deliberar qual das posições deverá prevalecer no Tribunal?
O provimento ou desprovimento dos embargos de divergência por decisão singular usurpa a competência da Seção ou da Corte Especial e, na prática, pode equivaler a uma espécie de “redistribuição indireta”, se assim podemos chamar, do recurso especial que havia sido analisado pelo acórdão da turma contra o qual foram interpostos os embargos.
Ora, se o recurso especial, por exemplo, foi julgado pela 4ª Turma em um determinado sentido e, após a interposição dos embargos de divergência, estes forem distribuídos a ministro integrante de outra turma, que resolve dar-lhes provimento para encampar a posição da Terceira Turma, o resultado do recurso especial terá se invertido – e no bojo de um recurso que deveria servir para erradicar essa divergência!
Foi o que aconteceu no EREsp 1.879.645/SP, acima citado. A operadora do plano de saúde havia tido êxito no recurso especial pela 4ª Turma para reconhecer a validade da recusa à cobertura do procedimento. Após a interposição dos embargos de divergência, estes foram distribuídos ao ministro Paulo de Tarso Sanseverino, da 3ª Turma, que, entendendo ilegal a recusa da operadora em cobrir o procedimento, deu provimento ao recurso para determinar o custeio do procedimento. Tivesse o feito sido levado ao órgão colegiado, como deveria ter sido, o resultado poderia ter sido outro.
Nota-se, portanto, que ao pretender desembaraçar a pauta da Seção ou da Corte Especial, a prática, não inserida entre as hipóteses de julgamento monocrático previstas no artigo 932 do CPC, usurpa a competência desses órgãos julgadores e viola o princípio da colegialidade, além de comprometer a própria lógica e finalidade do recurso, que objetiva promover segurança jurídica por meio da uniformização da jurisprudência.
Em alguns casos, como se viu, chega-se a adotar a Súmula 568/STJ como fundamento para decidir dessa maneira. No caso dos embargos de divergência, contudo, a incidência desse enunciado mostra-se contraditório, pois a própria admissibilidade dos embargos pressupõe a existência de divergência jurisprudencial. Ou seja, ou os embargos de divergência são admissíveis, porque há divergência entre as turmas — o que afasta o pressuposto de entendimento dominante que autorizaria a utilização da súmula —, ou os embargos são inadmissíveis, porque não existe divergência entre as turmas, e, nesse caso, não há espaço para enfrentar o mérito do recurso, nem mesmo por julgamento colegiado.
Seja como for, em se tratando embargos de divergência, é apenas admissível a decisão monocrática que analisa os pressupostos de cabimento desse recurso. Qualquer decisão singular que, nessa espécie recursal, enfrente o mérito da controvérsia usurpa competência da Corte Especial ou Seção, previstas no artigo 11, XIII e 12, parágrafo único, I, do Regimento Interno do STJ, podendo (ou devendo) ser desafiada por recurso.
A “monocratização” dos julgamentos do STJ tem sido um dos grandes desafios da corte. Não se ignora que a medida, embora sabidamente indesejável, tem se estabelecido como um imperativo de sobrevivência, haja vista a quantidade de processos recebidos anualmente pelo Tribunal e ausência de um filtro que o possibilite filtrar a análise dos recursos que discutem questões relevantes para o direito nacional.
Deve-se ressaltar, todavia, que, diferentemente do agravo em recurso especial e do recurso especial, que podem ser providos ou desprovidos por decisão singular, desde que observada a previsão do artigo 932, IV e V, do CPC e os pressupostos da Súmula 568/STJ, o mérito dos embargos de divergência é incompatível com o julgamento monocrático. É imperativo, portanto, que o STJ preserve a natureza colegiada dos julgamentos de mérito dos embargos de divergência, a fim de que esse recurso, fundamental à unidade da jurisprudência nacional, possa cumprir o papel para o qual foi projetado pelo legislador.
[1] Algumas iniciativas legislativas, ainda sob a égide do código passado, caminharam no sentido de disciplinar essas hipóteses, a exemplo da Lei n. 8.038/1990, que atribuiu uma série de competências aos relatores do STJ e STF, e a Lei 9.756/1998, que inseriu o art. 557 no CPC/73, permitindo ao relator negar provimento a recurso contrário a súmula ou jurisprudência dominante dos Tribunais Superiores.
[2] Extraímos a seguinte passagem da fundamentação do recurso: “A decisão, contudo, jamais poderia ter sido proferida de modo monocrático. O art. 932, V, do Código de Processo Civil. O art. 932, V, do Código de Processo Civil, apenas autoriza o relator a dar provimento a recurso, em hipóteses bem restritas de pacificação jurisprudencial do tema. Não é o que se verifica no caso em tela.
O próprio ministro relator não apontou fundamentos para a prolação de decisão monocrática. Demais disso, o voto condutor proferido pelo ministro Herman Benjamin, no agravo interno interposto contra a decisão que inadmitira os embargos de divergência, deixou claro que a divergência entres as turmas de diferentes seções do Superior Tribunal de Justiça estava evidente e necessitava de enfrentamento pela Corte Especial, isto é, o órgão colegiado, o que justificava a admissão do recurso para seu posterior exame de mérito pelo conjunto de ministros. (…)
Sendo assim, é essencial sejam os embargos de divergência apreciados pelo órgão colegiado, para que este, com a autorização que lhe é conferida pelo art. 1.043, do Código de Processo Civil, debata e decida sobre a tese jurídica a ser fixada, diante das decisões conflitantes de diversas Turmas, assim como para que o recurso alcance a sua finalidade de uniformização interna da Corte Superior adequadamente”
[3] Nesse sentido, Sandro Marcelo Kozikoski: “a atuação monocrática do relator, baseada no art. 932 do CPC, dar-se-á para os casos de indeferimento liminar dos embargos de divergência, não sendo razoável cogitar da incidência dos incisos IV e V daquele dispositivo legal, haja vista não lhe competir negar provimento ao recurso ou dar-lhe provimento, sob pena de subversão do seu objetivo final, qual seja, uniformizar a divergência jurisprudencial interna da Corte (KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. Sistema recursal CPC/2015: em conformidade com a Lei 13.256. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 277).
[4] Também nesse sentido, a posição de Luiza Silva Rodrigues: “É difícil concordar com a ‘possibilidade de relator modificar, isoladamente, uma decisão colegiada’. Mias do que isso, entende-se que foge à própria lógica dos embargos de divergência – recurso voltado à definição da interpretação acerca de determinada questão de direito – admitir que seu julgamento se dê de forma monocrática. Se o recurso enseja o cumprimento da função precípua aos tribunais superiores e se tem origem exatamente no fracionamento destes tribunais (em órgãos fracionários, que nem sempre refletem a orientação da corte acerca da questão de direito), não se pode concordar com a ideia de que seja julgado por um único ministro” (RODRIGUES, Luiza Silva. Embargos de divergência no CPC 2015. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 314).
[5] Apesar de sua função paradigmática, os embargos de divergência não foram listados pelo legislador do CPC/2015 entre as hipóteses de precedentes obrigatórios, que consta no art. 927.
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