Opinião

O abandono planejado das pessoas com deficiência

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3 de dezembro de 2024, 19h38

Apresentação da idiossincrasia criminosa

Fazendo uma avaliação de alguns processos seletivos de vestibulares para instituições públicas (universidades, ensino técnico, etc.) é possível encontrar sistemas de ação afirmativa bem interessantes. Ao mesmo tempo que se ocupam da valorização de alunos e alunas com origem em escolas públicas, acabam violando o direito constitucional de uma categoria que se encontra praticamente abandonada: alunas e alunos que sejam pessoas com deficiência (doravante PcD).

No sítio eletrônico responsável pelo vestibular da USP (Universidade de São Paulo), é possível ver que naquele ambiente universitário os PcD não têm o menor tipo de ação afirmativa para ingresso. No sistema de acesso à educação superior da USP/Fuvest é possível encontrar a  “reserva 50% das vagas para estudantes de escolas públicas no Brasil” sendo que, “37% são reservadas para pessoas negras, de cor preta ou parda e indígenas (PPIs), que equivale ao percentual da população de pessoas negras, de cor preta ou parda e indígenas no estado de São Paulo” [1]. Logo, não existe a mínima reserva de ação afirmativa para pessoas com deficiência (PcD). Nem mesmo dentro do espectro de 50% reservado para as “cotas”.

No caso da União a coisa é “menos pior”, mas ainda assim é terrível. As vagas de PcD existem, mas, estão restritas a estudantes oriundos de escolas públicas. Essa é a interpretação que tem sido dada à Lei 14723/2023. Na referida lei está previsto que no “caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos” para PcD de escolas públicas, as vagas “remanescentes deverão ser destinadas, primeiramente, a autodeclarados pretos, pardos, indígenas e quilombolas ou a pessoas com deficiência e, posteriormente, completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escola pública”.

Em bom português, o legislador federal ao confeccionar a Lei 14.723/2023 deve ter acreditado que “um cego deixará de ser cego, ou um cadeirante deixará de ser cadeirante, ou um autista deixará de ser autista”, se não for oriundo de escola pública. Quando se desce à linguagem direta (ainda que rude) é que se vê a barbárie do critério.

Por onde se olhar, seja a omissão absoluta da legislação de alguns estado (como é o estado de São Paulo), seja pela idiossincrasia da legislação federal, o que se terá, ao final e ao cabo, a violação constitucional. A questão das legislações estaduais é, logicamente, mais problemática.

Na forma reconhecida pelo próprio estado de São Paulo o censo demográfico de 2010 traz os seguintes dados: “Os resultados do Censo Demográfico 2010, para o Estado de São Paulo, apontaram 9.344.109 pessoas que declararam ter pelo menos uma das deficiências investigadas, correspondendo a 22,6% da população paulista” [2].

Esta omissão é inconstitucional pois viola diretamente a Constituição, bem como, viola Tratados Internacionais de Direitos Humanos referendados pelo Brasil e introduzidos em nosso sistema jurídico que, como sabido, têm força de emenda constitucional [3]. Não se sai menos inconstitucional a legislação federal pois as vagas de PcD não poderiam ter outra destinação antes de destinadas aos PcD, ainda que oriundos de escolas particulares.

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close nas mãos de pessoa com deficiência, que segura a cadeira de rodas

Em suma: a categoria PcD deveria ser uma categoria específica de ação afirmativa.

Há um ditado popular que nos adverte: “O diabo é perigoso porque é velho”. Assim como é velha a tradição brasileira de “esconder” suas pessoas com deficiência. Ainda que a Constituição de 1988, em sua redação original já tivesse previsão de ação afirmativa e de respeito às PcD, sempre foi comum nos concursos públicos (uma violação patrocinada pelos governos, portanto!) indicar um número ínfimo de vagas para não haver reserva de vagas para PcD. O que só mudou efetivamente quando o STF, mais de uma década e meia depois, decidiu que deve haver o respeito quando evidente a manobra anti-PcD.

Talvez, com 35 anos de atraso, seja necessária a intervenção judicial, ou a via legislativa, para a salvaguarda dos direitos de PcDs também nas seleções de instituições de ensino. Para que as manobras patrocinadas por legislação parem de violar direitos constitucionais das pessoas com deficiência que não podem ser invisibilizadas nos ambientes de educação superior e técnica. Caso contrário serão relegadas a empregos que não exijam tais formações. Uma eugenia acadêmica patrocinada pelo poder público.

Violações constitucionais evidentes

A Carta Magna trata da proteção à pessoa com deficiência em quase duas dezenas de dispositivos. Tomamos por empréstimo o artigo 7º, XXXI que prescreve a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência. Não se trata de equiparar o acesso à universidade com um acesso ao trabalho, mas apenas que há proibição de tratamento discriminatório contra a população PcD.

Ocorre que mais adiante o artigo 23 da Constituição prescreve competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios para “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência” (inciso II). E o artigo 24, XIV prescreve a proteção e a integração social das pessoas portadoras de deficiência. O acesso à educação — não há quem duvide — é condição sine qua non para a integração social de qualquer pessoa. Tanto que o artigo 208, III da Magna Charta determina como “dever do Estado com educação” (portanto, oponível ao Estado ainda pela via judicial) a garantia de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino.

Salvo melhor juízo, parece que o rol das previsões constitucionais para pessoas com deficiência não autoriza discriminação à população PcD de forma a negar integral ou parcialmente vagas em concursos vestibulares.

Agravando a situação, na forma o Decreto Legislativo 186/2008 e do Decreto Presidencial 6.949/2008 o Brasil aderiu à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Lá encontram-se valores que vedam a discriminação de quaisquer pessoas com deficiência [4]. Nas regras específicas temos o próprio conceito de “Discriminação por motivo de deficiência”. Discriminação será qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro.

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Dentre os princípios da convenção está a não-discriminação, sendo dever do Estado signatário levar em conta, “em todos os programas e políticas, a proteção e a promoção dos direitos humanos das pessoas com deficiência”, além de abster-se de “participar em qualquer ato ou prática incompatível com a […] Convenção e assegurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com a […] Convenção”. Por fim, há um artigo específico sobre educação (artigo 24), que citamos integralmente em nota de fim de texto [5]. Tudo com status de emenda constitucional (artigo 5º, § 3º CF).

Conclusão

As razões acima parecem demonstrar duas ocorrências distintas que, ao final e ao cabo, acabam se igualando na violação de direitos constitucionalmente previstos das pessoas com deficiência.

Na legislação federal temos a criação de um “gueto” para os PcD, quando as vagas são negadas às pessoas com deficiência não oriundas de escolas públicas. Novamente, usando um linguajar popularesco, mesmo que isso tangencie a rudeza: é como se “um cego deixasse de ser cego, ou um cadeirante deixasse de ser cadeirante, ou um autista deixasse de ser autista”, para o critério da Lei 14.723/2023 caso não seja oriundo de escola pública.

Já na legislação estadual – tome-se o exemplo do estado de São Paulo – há vestibulares que sonegam integralmente ações afirmativas para PcD. Uma inconstitucionalidade ainda maior.

Chegada a hora de ser estabelecida a categoria PcD como categoria específica para uma proporção das vagas de ação afirmativa no acesso aos ensinos superior e técnico no Brasil. Uma valorização tardia, mas necessária, assim como foi ocorrido nas vagas de concursos públicos.

 


[1] https://www.fuvest.br/wp-content/uploads/fuvest2025_guia-inclusao.pdf

[2] https://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/Content/uploads/20131213114958_2013analise_censo_EstSP.pdf

[3] Vide Art. 5º CF/88:

§2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

§3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

[4]Reafirmando a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como a necessidade de garantir que todas as pessoas com deficiência os exerçam plenamente, sem discriminação [..].”

[5] Artigo 24

Educação

1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação. Para efetivar esse direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, com os seguintes objetivos:

a) O pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e autoestima, além do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela diversidade humana;

b) O máximo desenvolvimento possível da personalidade e dos talentos e da criatividade das pessoas com deficiência, assim como de suas habilidades físicas e intelectuais;

c) A participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre.

2.Para a realização desse direito, os Estados Partes assegurarão que:

a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência;

b) As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem;

c) Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas;

d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação;

e) Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena.

3.Os Estados Partes assegurarão às pessoas com deficiência a possibilidade de adquirir as competências práticas e sociais necessárias de modo a facilitar às pessoas com deficiência sua plena e igual participação no sistema de ensino e na vida em comunidade. Para tanto, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas, incluindo:

a) Facilitação do aprendizado do braille, escrita alternativa, modos, meios e formatos de comunicação aumentativa e alternativa, e habilidades de orientação e mobilidade, além de facilitação do apoio e aconselhamento de pares;

b) Facilitação do aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade linguística da comunidade surda;

c) Garantia de que a educação de pessoas, em particular crianças cegas, surdocegas e surdas, seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados ao indivíduo e em ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social.

4.A fim de contribuir para o exercício desse direito, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para empregar professores, inclusive professores com deficiência, habilitados para o ensino da língua de sinais e/ou do braille, e para capacitar profissionais e equipes atuantes em todos os níveis de ensino. Essa capacitação incorporará a conscientização da deficiência e a utilização de modos, meios e formatos apropriados de comunicação aumentativa e alternativa, e técnicas e materiais pedagógicos, como apoios para pessoas com deficiência.

5.Os Estados Partes assegurarão que as pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino superior em geral, treinamento profissional de acordo com sua vocação, educação para adultos e formação continuada, sem discriminação e em igualdade de condições. Para tanto, os Estados Partes assegurarão a provisão de adaptações razoáveis para pessoas com deficiência.

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