Marco Legal dos Seguros entra em choque com jurisprudência do STJ, dizem especialistas
3 de dezembro de 2024, 20h58
Aprovado pela Câmara dos Deputados no mês de novembro, o Marco Legal dos Seguros (Projeto de Lei 2.597/24) estabelece uma legislação específica para o mercado brasileiro de seguros privados, que atualmente é regido pelo Código Civil. Entre as inovações do projeto, está a alteração do prazo de prescrição para que o segurado acione a companhia na Justiça — esse prazo tinha início na data do sinistro e, com a nova norma, começará na data da negativa dada pela seguradora.
O texto do projeto, porém, é visto com preocupação por especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, que afirmam que o Marco Legal entra em choque com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que uma empresa não é obrigada a fornecer documentos considerados confidenciais em juízo. Além disso, os estudiosos do tema preveem que as seguradoras terão dificuldades para se adaptar à novidade.
De acordo com Marcelo Mansur, sócio da área de seguros do escritório Mattos Filho, o efeito inicial da lei será o aumento dos preços dos seguros. “É um novo arcabouço legal, uma jurisprudência que ainda tem de se formar. Isso toca em vários aspectos. Vai desde a subscrição do risco à regulação, passando pela prescrição. E tudo aquilo que gera insegurança gera uma precificação, que acaba indo para o segurado.”
Quanto à prescrição, ele explica que a lei abre um caminho diferente, que gera dúvidas sobre o prazo e sobre o foro competente para discutir o tema, especialmente quando se fala em relações de resseguro.
O dispositivo do Marco Legal que, no entendimento do especialista, fere a jurisprudência do STJ diz que a seguradora será obrigada a revelar documentos obtidos e produzidos durante a regulação do sinistro.
“Uma vez regulado o sinistro, e com a negativa da seguradora, ela passa a estar obrigada a fornecer todos os documentos que ela produziu durante a regulação. Temos um entendimento do STJ que diz que a empresa não é obrigada a fornecer esses documentos, principalmente, por dois motivos: questões concorrenciais e de custos”, destaca Thaís Arza, advogada especializada em seguros e também sócia do Mattos Filho. Tanto ela quanto Mansur defendem que essa obrigação é inconstitucional.
Quanto aos custos, ela diz que a seguradora contrata um regulador que produz materiais para consumo da própria empresa, para a tomada de decisão. Com a obrigação de tornar esses documentos públicos, eleva-se o gasto com o processo. “A seguradora terá de contratar, talvez, advogados que não contratava nessa fase. Vai ter de trabalhar muito mais perto do regulador, já que o relatório deverá ter informações que serão repassadas ao segurado. Ela terá de garantir que esses dados estejam completos e transparentes, de uma forma que o segurado saiba os fundamentos usados na negativa”, explica Thaís.
Segundo Stefano Ribeiro Ferri, especialista em Direito do Consumidor e assessor da 6ª Turma do Tribunal de Ética da OAB-SP, é aí que a lei pode influenciar nos preços. “Por mais que à primeira vista pareça uma medida favorável ao consumidor, tal fato pode gerar insegurança no mercado, fazendo com que as seguradoras, ao precificar suas apólices, considerem os riscos regulatórios e de litígio.” Ele concorda que a norma fere o entendimento do STJ e destaca que, nos termos do projeto aprovado na Câmara, caso haja divergência entre o que está escrito no documento de recusa e sua aplicação, as questões serão decididas em favor do segurado.
Outro problema, de acordo com Thaís, é que a seguradora estará vinculada aos argumentos da recusa. Isso significa que tudo o que a empresa colocar na carta de recusa poderá ser usado em juízo. E novos argumentos não poderão ser apresentados. “Não há a mesma restrição para o segurado. Quando for a juízo, ele pode levar o argumento que quiser. Ao passo que a seguradora, salvo se houver documentos novos, estará 100% vinculada ao que ela disse na regulação.”
Questão de interpretação
Por outro lado, Glauce Carvalhal, diretora jurídica da Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNseg), destaca que a norma também estabelece uma série de deveres ao segurado. “Um exemplo é que o segurado tem de avisar a ocorrência do sinistro imediatamente à seguradora. Apesar de, por um lado, o prazo prescricional começar a contar da negativa, e não da ocorrência do sinistro, se o segurado demora a notificar é ruim para ele mesmo, que demora a receber. Entendo que a seguradora teria argumentos, por exemplo, para uma negativa, porque o segurado tem essa obrigação. É uma lei que tem essa via de mão dupla.”
A questão, segundo ela, é a ponderação na aplicação da norma. Para Glauce, algumas regras — como a apresentação de documentos em caso de negativa — não devem ser aplicadas de forma irrestrita. “Não podemos aplicar isso, que já está previsto no entendimento do STJ, de uma forma que ponha o segredo industrial e comercial das seguradoras em jogo. Ninguém vai ser obrigado a passar segredos do negócio, porque isso tem uma proteção constitucional.”
Além disso, a diretora da CNseg acredita que a adaptação às novas regras não será trivial. “É uma lei nova, uma mudança muito significativa. Afinal de contas, foram 20 anos de jurisprudência com base no Código Civil. Vai ter uma necessidade de adaptação das seguradoras. É uma lei perfeita? Não. É uma lei que veio a partir de uma série de debates que duraram mais de 20 anos. Mas, no final, em que pesem esses desafios, o saldo será positivo.”
Igor Montalvão, sócio e diretor jurídico da banca Montalvão & Souza Lima Advocacia de Negócios, entende que o Marco Legal vai contribuir para uma relação mais equilibrada entre seguradora e cliente. “Embora a adaptação possa ser desafiadora para o setor, o reforço da transparência tende a fortalecer o mercado a longo prazo, promovendo confiança e mitigando potenciais conflitos.”
Brisa Nogueira, advogada consumerista do escritório Brossa & Nogueira Advogadas, pensa que os legisladores poderiam ter ido mais longe. Embora os segurados tenham obtido alguns benefícios, há pontos que poderiam ter sido melhorados, sem comprometer a integridade do contrato ou o equilíbrio entre as partes, de acordo com ela. “Dizer que as mudanças legislativas trarão impactos como o aumento de preços parece um exagero. O setor de seguros é altamente lucrativo para as empresas e essa ideia de encarecimento é comumente usada para defender os interesses empresariais, mas, na prática, isso nem sempre se confirma.”
Já para Mayra Sampaio, especialista em Direito do Consumidor e sócia do escritório Mayra Sampaio Advocacia e Consultoria Jurídica, o segurado deve ter sempre transparência no andamento dos processos. “Eu acredito que tudo deva ser posto às claras ao consumidor, e que este possa ter direito a entender uma negativa. O problema aqui refere-se à jurisprudência. Às vezes, precisamos de mais de dez anos para uma jurisprudência estabilizar a interpretação de uma lei.”
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