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Deveríamos tratar educação e saúde como são tratados os juros

Autor

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff – Advogados.

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3 de dezembro de 2024, 8h00

Não custa sonhar.

Sabe-se que o Brasil é um dos países com maior nível de desigualdade social do mundo.

Sabe-se também que uma das formas mais eficazes de combater as desigualdades sociais é por meio de educação, que gera benefícios intergeracionais, e pela saúde, que permite a todos ter qualidade de vida no presente, e condições de disputar melhores oportunidades nos mercados de trabalho e emprego.

Mesmo sabendo disso, qual é o único gasto público que não possui limite no orçamento? O pagamento de juros.

O pagamento de juros anuais é determinado pela Lei de Diretrizes Orçamentárias por exclusão, isto é, cancela-se ou bloqueia-se (contingencia-se, no jargão técnico) todas as demais despesas, privilegiando-se este pagamento para os credores da dívida pública.

Esse montante de juros é expresso por meio do conceito de superávit primário, que significa a diferença positiva entre as receitas e as despesas do governo, excluindo os juros da dívida pública. Consideradas as despesas correntes e os investimentos, busca-se um excedente (superavit primário) para pagar os juros da dívida pública. Traduzindo para o português, se a arrecadação for insuficiente para pagar os juros no montante previsto, todas as demais despesas devem ser bloqueadas.

Logo, o montante previsto no orçamento para o pagamento dos juros é o crédito mais privilegiado que existe no Brasil, obtido diretamente da Lei de Diretrizes Orçamentária anual, que determina o bloqueio de todas as demais despesas para que seu pagamento ocorra.

Dentre essas despesas bloqueadas estão os gastos sociais, incluindo aqueles com educação e saúde.

O Ministério da Fazenda determinou semana passada o bloqueio de diversos gastos públicos, sendo os gastos com educação um dos que foram mais atingidos, com corte de R$ 1,6 bilhão, de um total de R$ 5,5 bilhões. A previsão de bloqueios para 2024 está em 17,6 bilhões.

Isso implica em menos recursos para reduzir as desigualdades sociais, em especial aquelas que têm impacto nas futuras gerações, reforçando a desigualdade social.

Spacca

Seria muito bom que, ao invés de metas de superávit primário para pagamento de juros, tivéssemos a mesma fórmula financeira para privilegiar os gastos com educação e saúde. Assim, poderíamos ter metas como a de reduzir o analfabetismo funcional que atinge milhares de brasileiros, ou a de melhorar nossos indicadores nos testes do Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa). Ou de reduzir (ou mesmo erradicar) algumas doenças endêmicas que ainda existem no Brasil, como a malária (65 mil casos no 1º semestre de 2024), ou ampliar o atendimento básico para prevenção do câncer de mama (73 mil casos estimados em 2024).

Por esse mecanismo financeiro, seria possível bloquear todos os demais gastos, inclusive o de juros, até que a meta social estabelecida fosse atingida.

Sei que existem muitas condicionantes macroeconômicas para a mudança dessas regras, como os expostos por Marcos Lisboa, fruto do persistente desequilíbrio das contas públicas, mas se tivéssemos uma população com maior nível educacional e com saúde, certamente seríamos um país mais estável economicamente, e o risco Brasil seria menor, havendo maior nível de investimento privado, por meio de capital interno ou estrangeiro.

Embora difícil, este é o caminho para conseguirmos alavancar nosso desenvolvimento.

Trata-se de uma mudança de paradigma, para o qual não vejo horizonte político, mas que certamente mudaria o perfil do país.

Não custa sonhar.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

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