'Cadastro nacional de predadores sexuais' e inconstitucionalidades da Lei nº 15.035
3 de dezembro de 2024, 18h25
O princípio constitucional da publicidade decorre da fórmula do Estado democrático de Direito, estando ligado ao direito de informação dos cidadãos (vertente da garantia de participação e controle social) e ao dever de transparência do Estado (vertente da atuação da administração pública sob o aspecto amplo) [1].
Nesse sentido, a Constituição, em seu artigo 5º, inciso LX, estabelece que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem” [2], uma vez que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos (…)” (artigo 93, inciso IX). Igualmente, prevê que a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá, dentre outros, ao princípio da publicidade (artigo 37, caput).
Tendo por norte o paradigma constitucional, o artigo 234-B, caput, do Código Penal brasileiro, incluído pela Lei nº 12.015, de 2009, diz que os processos em que se apuram crimes contra a dignidade sexual, previstos no Título X da Parte Especial do CP, correrão em segredo de justiça. Esse dispositivo, encravado no Capítulo VII (disposições gerais) do mencionado título, tem por escopo preservar a dignidade do agente (presumido inocente até uma eventual condenação definitiva) e da vítima, contra o chamado strepitus iudicii (escândalo ou vergonha do processo/julgamento), comum de acontecer em crimes que tais.
Nessa perspectiva, somente o juiz, o órgão acusador (Ministério Público), a defesa e o réu terão acesso aos autos do processo, de modo que o segredo de justiça deve existir desde o momento do inquérito policial. Seguindo essa trilha, o artigo 210, § 6º, do Código de Processo Penal (CPP), incluído pela Lei nº 11.690/2008 aduz que “o juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação”. A jurisprudência entende que preservar a intimidade do acusado representa um reforço à proteção da intimidade da própria vítima.
Apesar disso, recentemente o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei nº 6.212, de 2023 (substitutivo), sancionado pelo presidente Lula em 27 de novembro de 2024, dando origem à Lei nº 15.035/2024, que “altera o Código Penal para permitir a consulta pública do nome completo e do número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) das pessoas condenadas por crimes contra a dignidade sexual, garantindo-se o sigilo do processo e das informações relativas à vítima, e a Lei nº 14.069/2020, para determinar a criação do Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais”.
A novel lei acrescentou os §§ 1º, 2º e 3º ao artigo 234-B do CP. Conforme o § 1º, “o sistema de consulta processual tornará de acesso público o nome completo do réu, seu número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) e a tipificação penal do fato a partir da condenação em primeira instância pelos crimes tipificados nos artigos 213, 216-B, 217-A, 218-B, 227, 228, 229 e 230 deste Código, inclusive com os dados da pena ou da medida de segurança imposta, ressalvada a possibilidade de o juiz fundamentadamente determinar a manutenção do sigilo”.
Sigilo processual deixa de ser regra
Portanto, em relação aos crimes mencionados pela norma, o sigilo processual, ao menos em relação ao acusado, deixa de ser a regra. É possível que o sentimento do legislador tenha sido o de oferecer uma resposta mais dura aos reclamos da sociedade, diante do significativo aumento, por exemplo, dos crimes de estupro, sobretudo conta mulheres, crianças e adolescentes, conforme demonstram dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgados nos anos de 2023 [3] e 2024 [4].
Nessa perspectiva, em havendo condenação em primeira instância, libera-se ao público o acesso aos dados do processo pertinentes ao condenado. Ao que parece, o legislador avaliou a mitigação dos efeitos da presunção de inocência a partir da decisão condenatória de primeiro grau, o que já soa um tanto quanto controverso, embora não haja, a priori, impedimentos a que a regra da publicidade se imponha em crimes dessa natureza.
De seu turno, o § 2º acrescentado ao dispositivo em comento averba que “caso o réu seja absolvido em grau recursal, será restabelecido o sigilo sobre as informações a que se refere o § 1º deste artigo”. Ora, temos, aqui, um sério problema, qual seja o do pretendido “restabelecimento de um sigilo quebrado após condenação de primeiro grau”, sobretudo quando se observa que:
1) no atual momento histórico, caracterizado pela chamada “sociedade da informação”, dados e informações pessoais se espalham em frações de segundos em todo o mundo, tendo como veículos catalizadores os ambientes virtuais (internet, redes sociais, etc.);
2) no Brasil, o julgamento de recursos, mesmo em matéria penal, costumam demorar além do desejado, o que mais ainda incrementa as possibilidades de divulgação em massa dos dados de acesso público eventualmente obtidos e armazenados após a condenação do réu em primeira instância pelos crimes aludidos no § 1º do artigo 234-B, CP. Por tudo isso, vê-se que a eventual aplicação desse parágrafo (§ 2º) tende a se tornar inócua.
Como se não bastasse, o § 3º cria a obrigatoriedade de decretação de uma medida cautelar diversa da prisão independentemente das condições concretas ou objetivas do caso, nos seguintes termos: “§ 3º O réu condenado passará a ser monitorado por dispositivo eletrônico”. Ou seja, ainda que o acusado tenha respondido ao processo em liberdade e sem qualquer restrição acautelatória dentre as previstas no artigo 319 do CPP [5], se houver condenação em primeira instância, lhe será obrigatoriamente imposta a monitoração eletrônica, vale dizer, o uso de tornozeleira, independentemente de mudança no quadro fático.
Trata-se de regra que viola a garantia constitucional fundamental da individualização da pena, insculpida no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição, uma vez que os critérios para aplicação de medida cautelar diversa da prisão deverão estar harmonizados com o conjunto das garantias constitucionais, sendo de rigor exigir-se, a partir da realidade concreta, a fundamentação da necessidade de imposição de uma medida cautelar, seja ela qual for, ao sujeito submetido à jurisdição penal, antes ou após condenação de primeiro grau.
Criação de cadastro nacional
A Lei nº 15.035/2024, cuja (in)constitucionalidade ora se avalia, também modificou a Lei nº 14.069/2020, para determinar a criação do controverso “Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais”. Acrescentou-se, assim, à Lei nº 14.069/2020, o artigo 2º-A, que reza: “É determinada a criação do Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais, sistema desenvolvido a partir dos dados constantes do Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro, que permitirá a consulta pública do nome completo e do número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) das pessoas condenadas por esse crime”.
Trata-se, sem dúvida alguma, de norma cuja constitucionalidade é duvidosa, não se sabendo, ainda, de que forma será operacionalizada, evitando-se, como se espera, humilhações e hostilidades outras contra o presumido inocente, sendo possível que, na prática, faça soçobrar a pretensão de prevenção especial positiva (ressocialização, reinserção social do apenado etc.), uma das finalidades da pena criminal, destacadamente da pena privativa de liberdade, já difícil de ser alcançada mesmo sem esse tipo de questionável política criminal. Ademais, alude à “pessoa condenada”, não exigindo, no entanto, que essa condenação seja definitiva (transitada em julgado), o que parece violar o disposto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição.
Conforme demonstrado em detalhes pelo sociólogo francês Loïc Wacquant no impactante Livro “Punir os pobres — A nova gestão da miséria nos Estados Unidos”, publicado em 2009, de há muito se verifica nos EUA uma verdadeira “caça aos delinquentes sexuais” (sex offenders), manifestada a partir da adoção das seguintes medidas, em sua maioria de reduzida eficiência.
Os delinquentes sexuais são obrigados a se registrarem junto ao comissariado de polícia de seu local de residência nos cinco dias seguintes à sua liberação de uma casa de detenção ou de uma pena (Califórnia), podendo sofrer reclusão perpétua automática; as autoridades devem colocar os “sex offenders” em lista de domínio público, pois tais sujeitos representam um perigo criminal ad infinitum, independente do seu status judicial etc.
Os policiais dos 50 estados se obrigam a fazerem notificação pública da presença de (ex)delinquentes sexuais, considerados perigosos e tendentes à recidiva (“predadores sexuais”). No Alabama, a lista dos condenados por estupro etc. fica exposta no átrio das prefeituras e locais próximos do domicílio dos infratores; em cidades maiores, os que residem em um raio de mil pés de um sex offender são pessoalmente advertidos de sua presença.
Na Louisiania, o próprio (ex)delinquente sexual deve avisar do seu status aos seus vizinhos e aos responsáveis da escola e dos parques de seu bairro, sendo que a lei autoriza qualquer forma de notificação do público (imprensa, cartazes, panfletos e adesivos colocados no para-choque do veículo do delinquente sexual); os tribunais podem exigir que um condenado por atentado aos costumes use uma vestimenta distintiva que assinale sua identidade judiciária.
Na Flórida, a informação é difundida através de uma linha direta/site gratuito de internet, constando nome, foto e endereço atualizado de 12 mil “predadores sexuais”. Lei do Texas de 1997 exige que todos os condenados por atentado aos costumes desde 1970 sejam registrados no banco de dados automatizado à disposição do público; dentre muitas outras medidas de todo chocantes [6].
O exposto revela que o legislador brasileiro, ao editar a Lei nº 15.035/2024, atendeu às demandas de um irracional populismo penal, que clamam por “leis penais mais duras” como antídoto contra a criminalidade sempre crescente.
O princípio constitucional da publicidade permite, em tese, que informações sobre investigados e sentenciados por crimes, ainda que graves, como o de estupro, estejam disponíveis para acesso público. Isso não autoriza, todavia, que sejam criadas leis que, a pretexto de protegê-la, afrontem diretamente a garantia constitucional fundamental da presunção de inocência, assim como o princípio penal da individualização da pena e seus consectários.
Ademais, se mostra temerária a criação de um “Cadastro nacional de predadores sexuais”, pois a materialização desse instrumento de suposta salvaguarda da sociedade em face de agressores sexuais poderá trazer irremediáveis injustiças, tornando os danos da medida extrema superiores aos benefícios que se busca auferir, tal qual se observa em dinâmica semelhante há um tempo incorporada nos Estados Unidos.
[1] MENDES, Gilmar et al. Curso de direito constitucional. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 863.
[2] Veja-se, também, o art. 5º, inc. X, da CF/88, verbis: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
[3] Informações disponíveis em: https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/13541-brasil-tem-cerca-de-822-mil-casos-de-estupro-a-cada-ano-dois-por-minuto. Acesso em: 1º dez. 2024.
[4] Informações disponíveis em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/7868-atlas-violencia-2024-v11.pdf. Acesso em: 1º dez. 2024. Confira-se, ainda, interessante reportagem a respeito da temática em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-08/pais-registra-164-mil-estupros-de-criancas-e-adolescentes-em-3-anos. Acesso em: 1º dez. 2024.
[5] Diz o dispositivo: “Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX – monitoração eletrônica”.
[6] WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Trad. de Eliana Aguiar. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 123-144.
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