Balanço aduaneiro: um ano de Cejul
3 de dezembro de 2024, 9h20
O Cejul (Centro Nacional de Julgamento de Penalidades Aduaneiras) completou recentemente um ano de funcionamento e, este marco, certamente merece ser objeto de apreciação.
No ano passado, publicamos artigo debatendo sobre a criação do órgão e os possíveis cenários em relação ao futuro da discussão sobre a aplicação da pena de perdimento e da efetividade das novas normas correlatas. Passado um ano de instauração do Cejul, parece pertinente analisar os resultados produzidos até aqui e verificar, de fato, onde estamos com relação ao tema.
Sobre o Cejul
O Cejul nasceu a partir da iniciativa da Receita de buscar adequação às normas e diretrizes contidos nos acordos internacionais sobre facilitação do comércio, principalmente, a Convenção de Quioto Revisada (CQR), que impõe a necessidade de duplo grau de jurisdição para o julgamento de recursos administrativos em matéria aduaneira.
Pautada nesta exigência, a Administração criou um novo tribunal especificamente designado para julgar casos de pena de perdimento de mercadorias, veículos e moeda, o que levou à alteração do rito previsto no então Decreto-Lei nº 1.455/76 e criação da Lei nº 14.651/2023.
Diante dessas mudanças, e avaliando as implicações legais e práticas do novo rito, nos posicionamos de forma reticente quanto ao potencial benefício e legalidade do Cejul. Isto porque, em síntese, nos preocupava — e ainda preocupa — o fato de que o duplo grau, ainda que implementado, não teria independência funcional e hierárquica adequada, já que constituído dentro da estrutura da aduana (autoridade fiscalizatória) e composto unicamente por auditores-fiscais.
Não obstante, quando da publicação do artigo original, ressalvamos que nosso posicionamento era estritamente legal e pautado em preocupações, já que, naquele momento, não se poderia concluir se os recursos apresentados ao Cejul seriam, de fato, “ilusórios” ou se a corte funcionaria de forma adequada e capaz de endereçar os problemas relacionados à matéria com independência e tecnicidade.
Um ano depois: onde estamos?
Pois bem. Em novembro de 2024 o Cejul completou um ano de funcionamento e, com isso, tem-se a oportunidade de avaliar seu desempenho e atividades de forma a validar ou rechaçar as preocupações e cenários anteriormente aventados.
Na semana passada, a Receita realizou um evento bastante completo para comemoração da data, no qual diversos auditores-fiscais, membros e não-membros do Cejul palestraram, além de alguns convidados. Nesta oportunidade, foram apresentadas as estatísticas de julgamento, as quais são um ponto de partida interessante para a presente análise. [1]
Segundo os dados apresentados, em seu primeiro ano de funcionamento o Cejul proferiu mais de 1.000 decisões, considerando o órgão como um todo. Destas, cerca de 90% das decisões de primeira instância, realizadas monocraticamente pela Equipe Nacional de Julgamento (Enaj), mantiveram as autuações de perdimento.
Já as Câmaras Recursais, nos julgamentos de segunda instância, apresentam resultados um pouco mais flexíveis, com cerca de 19% de provimento dos recursos para afastamento das penas de perdimento.
Balanço anual
Sobre esses dados, pode-se tecer conclusões positivas e negativas. A positiva é que, as Câmaras Recursais têm revertido uma quantidade significativa de decisões e, assim, afastado autos de infração.
O número talvez esteja aquém do que se esperaria, mas é, sem dúvidas, muito superior ao que se verificava nos processos regidos pelo rito anterior. O aumento no número de decisões favoráveis aos operadores, a nosso ver, não se dá apenas pela existência de uma instância a mais, mas pelo fato de que o órgão colegiado conta com alguns auditores experientes e especializados na área.
Por outro lado, as estatísticas revelam que a criação e a atuação do Cejul não reduziram a judicialização da matéria. Pelo contrário. Ainda que seja difícil mensurar com exatidão a quantidade de ações movidas para discussão de perdimento na esfera judicial, principalmente em primeira instância, é pública a informação de que os Tribunais Regionais Federais (TRFs) julgaram, nos últimos 12 meses, 12% mais processos sobre a matéria do que em relação ao período anterior e 18% a mais do que há dois anos atrás.
Outro ponto que chama a atenção é a disparidade entre os percentuais de manutenção de autos de infração em primeira instância, pela Enaj, e em segunda instância, pelas Câmaras Recursais. Essa situação se torna especialmente grave pelo fato de que a Lei n. 14.651/2023 autoriza a destinação de mercadorias e veículos após a decisão de primeira instância.
Ou seja, o cumprimento literal da legislação está permitindo a destinação indevida de parcela significativa de mercadorias e veículos. E para quem acha que essa situação pode, posteriormente, ser devidamente remediada está enganado, visto que o que o Regulamento Aduaneiro chama de “indenização” é tão somente o pagamento, pela Fazenda Nacional, do valor aduaneiro declarado para fins de início do despacho [2]. Ou seja, não há qualquer compensação pela destinação indevida e pelos prejuízos causados indevidamente ao particular, apenas a correção pela Selic, contada da data da apreensão.
Na prática, isso significa que todas as partes que tiveram a autuação afastada em última instância pelo Cejul ainda assim saíram perdendo, já que o valor a ser recebido em caso de destinação indevida é inferior e insuficiente para neutralizar as adversidades econômico-financeiras sofridas com a apreensão de produtos essenciais à atividade empresarial e, principalmente, para cobrir os valores de que foram ilegalmente privados.
Preocupações atuais
Durante o evento de celebração promovido pela Receita, chama a atenção a fala da chefia do Cejul, quando justifica a discrepância nos números de provimento em primeiro e segundo grau no fato de que o perdimento seria tratado de forma diversa em cada unidade e que auditores de muitas localidades não teriam experiências comparáveis. E, diante disso, conclui que foi necessário fazer um “nivelamento do conhecimento” dos julgadores ao longo deste primeiro ano de atuação do Centro.
Ora, esta fala, por si só, é preocupante e não apenas pelos prejuízos já mencionados. Ao verificar-se o que prevê a Portaria RFB nº 348/2023, que dispõe sobre o funcionamento do Cejul, é clara a disposição de que os julgadores “serão selecionados com fundamento na experiência profissional e na formação acadêmica”. Todavia, esta não parece ser a prática.
Conforme explicação dada durante o mencionado evento, os julgadores inicialmente designados para integrar o órgão eram auditores-fiscais da DRJ Belém, cedidos ao Cejul para que pudesse iniciar seu funcionamento. Ainda que não se possa afirmar que se trata de grupo sem conhecimento técnico ou capacidade adequada, é, no mínimo, curioso que, a Receita tenha considerado que a experiência profissional e formação acadêmica de julgadores lotados em localidade que não possui comércio exterior expressivo e que sequer é em um grande centro econômico parecia razoável.
Além disso, a quantidade de julgadores atualmente alocados para a Cejul parece ser insuficiente, já que têm sido necessárias nomeações ad hoc mensais de alguns auditores para atuação como julgadores temporários. Além disso, alguns dos julgadores permanentemente lotados no órgão vêm sendo forçados a exercer duplo papel e julgando, simultaneamente, processos em primeira e segunda instância.
Este último fato é igualmente preocupante, na medida em que as atas de julgamento da Câmara Recursal revelam diversas declarações de impedimento em razão de o julgador ter sido o relator da decisão monocrática. O efeito imediato dessa situação é a aparente ausência de independência entre a primeira e segunda instância, além da necessidade de haver a constante redução na quantidade de julgadores em razão da abstenção obrigatória do julgador originário — ainda que dentro do quórum mínimo exigido –, o que pode acabar comprometendo a qualidade do debate.
Por fim, acreditamos que o maior problema do Cejul seja a falta de transparência. Afinal, as decisões não são publicas e os fundamentos não estão acessíveis à comunidade. Além disso, sequer é possível cruzar as informações das atas com o conteúdo das ementas, já que a numeração e o formato são incompatíveis. Essas questões afetam diretamente a legitimidade do Órgão, além de abrirem espaço para contestações sobre a sua independência.
A respeito disso, inclusive, chama a atenção outra fala da chefia do Cejul, sobre a governança da Receita Federal e de que a Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) é quem “daria a palavra”, no sentido de ser o órgão é quem dita interpretação normativa e que esta sempre deveria prevalecer sobre eventuais opiniões divergentes.
Na fala mencionada, a submissão às ordens da Cosit é justificada para garantir uniformização, consenso, celeridade e eficiência. Não obstante, para o setor privado o sentimento que ela desperta é diametralmente oposto. Como se pode falar em independência se os julgadores são meros aplicadores de normas pensadas pela estrutura fiscalizatória?
O artigo 10.5 do Anexo Geral da CQR é categórico em dispor que “o requerente deverá ter um direito de recurso para uma autoridade independente da administração aduaneira”. No entanto, se todos os julgadores estão declaradamente vinculados ao entendimento da própria Administração Aduaneira, e há constante alocação de autores-fiscais em exercício como julgadores ad hoc, não parece existir outra conclusão que não seja a existência de dependência e parcialidade do Órgão em relação à Receita.
O que pode ser feito?
Diante de tudo que foi exposto, e utilizando o artigo publicado em setembro de 2023 como base, não parece justo concluir que o Cejul é um mero artifício da Administração ou que seria uma “cortina de fumaça jurídica”. Há de se reconhecer e valorizar o empenho empreendido pela equipe dedicada ao Órgão para, apesar das adversidades, fazer com que o Centro prospere e evolua.
Apesar disso, a versão atual está longe de refletir o cumprimento das obrigações internacionais pelo Brasil, fazendo com que persista a insegurança jurídica de outrora.
Nestes termos, cabe repisar o que tratamos no passado como cenário/alternativa ideal: a necessidade de que a comunidade do comércio exterior não desista de debater a temática e que continue a negociar e discutir possíveis caminhos para efetivamente compatibilizar os procedimentos internos com as obrigações assumidas pelo Brasil em compromissos internacionais, em especial, a CQR.
O balanço deste primeiro ano de existência do Cejul permite algumas sugestões, a exemplo da mudança do órgão para a estrutura do Ministério da Fazenda, separando-o da Receita — o que traria não só a independência necessária, nos moldes já utilizados pelo Carf, como resolveria os atuais problemas de orçamento e estrutura.
Outra sugestão seria a modificação para tornar o órgão paritário, envolvendo julgadores advindos e indicados pelo setor privado. Esta alternativa remediaria os problemas de legitimidade atualmente enfrentados, bem como resolveria as dificuldades com pessoal, tornando possível separar os julgadores de primeira e segunda instâncias e evitar as constantes convocações temporárias, que acabam por misturar aplicadores e julgadores de autuações.
Por fim, a medida mais fácil e urgente refere-se à publicação integral das decisões proferidas, de modo a garantir o devido respeito à Constituição [3] e à Lei nº 9.784/99 [4], e permitir, inclusive, que a qualidade técnica e a legalidade do trabalho que vem sendo realizado possam ser comprovadas e acompanhadas.
Sobre o futuro
Como mencionado pela chefia do Cejul, o órgão aparentemente veio para ficar. Talvez isso não seja, de todo, uma má notícia. O aumento do número de decisões favoráveis aos operadores e a possibilidade de recurso em dupla instância são, sim, vitórias já conquistadas, assim como saber que existem – ainda que em minoria — nomes consagrados do Direito Aduaneiro dentre os julgadores.
Há um ano, fazíamos um grande esforço para que o Cejul não nascesse ou prosperasse, dadas as preocupações e ilegalidades que o rodeavam. Passado esse tempo, a melhor alternativa talvez não seja continuar brigando pela sua extinção, mas por seu aprimoramento; pelo aumento da transparência, da paridade e da independência.
No Direito Aduaneiro nada vem fácil e as mudanças demoram — muitas vezes décadas —, mas o ano que está em vias de terminar vem mostrando que existe espaço para debater e negociar grandes projetos em prol de uma Aduana mais moderna e cooperativa.
É este o espírito que buscamos despertar: a necessidade de atores públicos e privados atuarem de forma coordenada para o avanço do comércio exterior e da conformidade — objetivo nobre, mas que necessita de engajamento (sobre o que falamos na última coluna) e concessões de ambos os lados.
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[1] Evento virtual transmitido pelo YouTube no seguinte link.
[2] RA art. 803-A: “Na hipótese de decisão administrativa ou judicial que determine a restituição de mercadorias que houverem sido destinadas, será devida indenização ao interessado, com recursos do Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização, tendo por base o valor declarado para efeito de cálculo do imposto de importação ou de exportação”.
[3] O inciso LX do art. 5º, da CF dispõe que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.
[4] No âmbito da Lei n. 9.784/99, que trata do processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, tem-se obrigação contida no §5º do art. 49-A de que as decisões colegiadas obedeçam “aos princípios da legalidade, da eficiência e da transparência”.
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