Opinião

Nova dimensão pedagógica do Mito de Pandora na mediação de conflitos e gênero

Autores

  • é advogada professora da Unisociesc doutoranda pela Universidade Federal de Santa Catarina e conselheira da Comissão de Mediação e Conciliação do Conselho Federal da OAB.

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  • é advogada graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) mediadora judicial registrada no CNJ especialista em gestão de conflitos fundadora e presidente da Comissão de Mediação e Advocacia Colaborativa da OAB-RS (Subseção Carazinho) embaixadora no Brasil do projeto italiano Medianos instrutora e facilitadora certificada pela Ferrari Associati Lecco (Itália).

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3 de dezembro de 2024, 20h42

No mito grego, Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, recebeu uma caixa misteriosa que, ao ser aberta pela sua curiosidade, liberou todos os males do mundo. De maneira semelhante, na tradição judaico-cristã, Eva, ao morder a maçã, simboliza a tentação e a desobediência, culminando na expulsão do paraíso [1].

Luis Alberto Warat redefine mito com um “produto significamente congelado de valores com função socializadora”, ou seja, um discurso cuja função é esvaziar o real para pacificar as consciências, fazendo com que os sujeitos se conformem com o que lhes foi socialmente imposto e, sobretudo, aceitem e venerem as formas de poder que engendraram esse contexto [2].

Os dois mitos fundamentais da tradição ocidental descrevem as mulheres como as responsáveis por trazerem o mal para o mundo — Pandora, ao abrir a caixa dada por Zeus, e Eva, ao ceder à tentação da maçã. Essas representações refletem, portanto, uma estrutura de poder que deslegitima a curiosidade e o conhecimento, associando as mulheres à causa do sofrimento humano. Essas histórias, longe de serem apenas mitos, formam a base de uma cultura que, hoje, sustenta a violência de gênero [3].

Considerando essas críticas às narrativas que se propagam historicamente acerca da mulher, propõe-se uma releitura do Mito de Pandora, por meio de uma atitude desmistificadora, que busque captar o real [4] para alcançar uma nova dimensão pedagógica. Para tanto, adota-se o entrelaçamento da mediação de conflitos com a perspectiva de gênero.

Ao reinterpretarmos esse mito dentro do contexto da mediação de conflitos, estamos, de certa forma, questionando e subvertendo a função socializadora mencionada por Warat, que tem sido utilizada para legitimar a desigualdade de gênero. A mediação, como prática de transformação de conflitos, oferece o terreno fértil para essa subversão. Já ao trazer a perspectiva de gênero, abre-se espaço para desestabilizar as dinâmicas de poder presentes nas relações sociais, incluindo aquelas que estruturam o sistema de justiça.

Nesses termos, a partir dessa proposta, a figura Pandora pode bem representar as partes em conflito e a coragem de buscar o que está oculto quando enfrentam dores e desafios. Por meio da escuta ativa, as partes se orientam para considerarem suas necessidades e as dos outros, em busca de um sentido compartilhado de justiça.

A caixa de Pandora pode ser entendida como metáfora da lide sociológica — ela contém os interesses, as necessidades e os sentimentos que permanecem ocultos e negligenciados. No contexto da mediação com perspectiva de gênero, essa caixa representa não só os desafios visíveis, mas também as violências sutis e simbólicas que as mulheres enfrentam ao buscar o sistema de justiça. A ressignificação da caixa de Pandora, então, destaca a importância de reconhecer essas intersecções — como as dinâmicas de poder, violência e desigualdade de gênero moldam a experiência das mulheres.

Mediadores pandoras

A figura da pessoa mediadora pode ser simbolicamente associada à esperança presente no fundo da caixa de Pandora. Essa esperança não é passiva, mas ativa, no sentido de esperançar [5], como sendo um processo de construção coletiva.  Quando o mediador adota uma perspectiva de gênero, ele não apenas facilita o diálogo, mas também ajuda as partes a identificarem como os mitos e as narrativas sociais impactam suas experiências e relações. Dessa forma, o processo mediador deixa de ser uma simples negociação de interesses e se torna uma prática de reeducação social, permitindo a construção de novas formas de convivência mais igualitárias.

Reprodução

Nesse caminho, o mediador não só oferece um espaço de alívio, mas atua como facilitador de um processo transformador, em que as partes, especialmente as mulheres, encontrem oportunidade de terem suas vozes escutadas, e a reconstruir suas relações de maneira mais equitativa [6]. A mediação, ao integrar a sensibilidade de gênero, transforma-se, portanto, em uma via de empoderamento [7].

Essa abordagem permite que as partes se sintam encorajadas a compartilhar suas experiências e emoções [8]. A mediação possibilita que sentimentos — tanto os positivos quanto os negativos — sejam trazidos à tona durante o desenrolar do percurso dialógico. Esse é o seu grande diferencial: a capacidade de considerar as emoções e proporcionar um espaço para a expressão do sentir, permitindo, assim, uma compreensão mais profunda dos conflitos e dos desafios humanos.

Cite-se, como exemplo dessa perspectiva, uma mediação que envolva o direito das famílias em que se discuta a partilha de bens. Considere que a mulher está pensando em aceitar a proposta do ex-marido de transferir os bens para o nome dos filhos. Ele argumenta que essa é a melhor opção para proteger o patrimônio, caso ela constitua uma nova relação. Contudo, ela intui que ele quer manter o controle sobre ela. Essa dinâmica exemplifica como a violência patrimonial pode ser sutil e revelar diversas nuances do machismo, que coloca a mulher em uma condição de objeto. Nessa situação, o mediador poderia explorar os sentimentos da mulher, perguntando, por exemplo, como ela se sente em relação à ideia de transferir os bens e o que essa decisão significaria para sua autonomia e segurança futura.

O caso da mediação envolvendo a partilha de bens ilustra bem como a violência patrimonial pode ser sutil, mas com efeitos nefastos. Quando a mulher considera aceitar a proposta do ex-marido de transferir os bens para o nome dos filhos, ela enfrenta uma pressão que vai além da simples questão financeira. Ao questionar suas preocupações e emoções, o mediador ajuda a mulher a reconhecer as dinâmicas de poder e a tomar uma decisão que reflita verdadeiramente suas necessidades, sem a pressão de um sistema que perpetua as desigualdades.

Nesse contexto, o mito da caixa de Pandora se transforma em uma metáfora provocativa, que pode abrir caminhos para novas possibilidades, para “mediadores pandoras”, que longe de serem super-heróis, também olham para si mesmos, reconhecendo seus próprios vieses, crenças e limitações. Somente ao confrontar suas próprias narrativas e padrões, o mediador poderá agir de forma mais consciente e imparcial, promovendo um espaço realmente transformador para todas as partes envolvidas.

Spacca

Diante de seu papel essencial como agente transformador, o mediador deve criar um espaço de conexão genuína e expressão segura, preservando a confiança das partes em seu ofício. Sua atuação facilita a identificação de necessidades, promove a empatia, busca soluções viáveis e mantém uma postura de não julgamento, mesmo diante de emoções intensas [9]. A comunicação não-violenta se destaca como uma ferramenta essencial, assim como o papel pedagógico do mediador, que conduz o procedimento com empatia desde um rapport autêntico, assegurando um ambiente produtivo e harmonioso.

Ao adotar uma perspectiva de gênero, o mediador contribui para desconstruir as narrativas sociais que perpetuam desigualdades, auxiliando as partes a romperem com ciclos de conformidade e os valores impositivos que regem suas vidas. Incorporar dimensões pedagógicas na mediação ressignifica o Mito de Pandora, permitindo que, especialmente as mulheres, reconfigurem suas relações livres das amarras de narrativas opressoras que distorceram o real por tanto tempo.

 


Referências

CAROLA, Carlos Renato. Pandora, Eva e Sofia: a naturalização da desigualdade de gênero na história do pensamento ocidental. Disponível em: http://mineralis.cetem.gov.br/bitstream/cetem/1303/1/genero_e_trabalho_infantil2.pdf. Acesso em: 30 out. 2024.

Acesso em: 30 out. 2024. DOI: http://dx.doi.org/10.4067/S0718-04622019000100049.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: paz e terra, 2005.

GOULART, Juliana Ribeiro. Cultura de mediação na Administração Pública: uma abordagem para o apoio a gestantes e lactantes no serviço público. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Florianópolis, 2023.

ROSSI, Rachel. Mediação sem fronteiras à luz da comunicação não-violenta: como ultrapassar obstáculos que impedem a resolução pacífica de conflitos. Santa Cruz do Sul/RS: Booklife. 2024.

TRUJILLO CRISTOFFANINI, Macarena. Misoginia y violencia hacia las mujeres: dimensiones simbólicas del género y del patriarcado. Atenea (Concepc.), Concepción, n. 519, p. 49-64, jun. 2019. Disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-04622019000100049&lng=es&nrm=iso

[1]CAROLA, Carlos Renato. Pandora, Eva e Sofia: a naturalização da desigualdade de gênero na história do pensamento ocidental. In: Gênero e trabalho infantil na pequena mineração: Brasil, Peru, Argentina, Bolívia. Rio de Janeiro: CETEM/CNPq, 2006. p. 23-40. Disponível em: http://mineralis.cetem.gov.br/bitstream/cetem/1303/1/genero_e_trabalho_infantil2.pdf. Acesso em: 30 out. 2024.

[2] WARAT. Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabres Editor. 1994, p. 104.

[3] TRUJILLO CRISTOFFANINI, Macarena. Misoginia y violencia hacia las mujeres: dimensiones simbólicas del género y del patriarcado. Atenea (Concepc.), Concepción, n. 519, p. 49-64, jun. 2019. Disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-04622019000100049&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 30 out. 2024. DOI: http://dx.doi.org/10.4067/S0718-04622019000100049.

[4] WARAT. Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabres Editor. 1994, p. 106.

[5] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: paz e terra, 2005.

[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: paz e terra, 2005.

[7] GOULART, Juliana Ribeiro; BARBOSA, Gabriela Jacinto. É urgente a formação de profissionais da mediação na perspectiva de gênero. Consultor Jurídico, 14 abr. 2024. Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-abr-14/e-urgente-a-formacao-de-profissionais-da-mediacao-na-perspectiva-de-genero/. Acesso em 13 nov. 2024.

[8] GOULART, Juliana Ribeiro. Cultura de mediação na Administração Pública: uma abordagem para o apoio a gestantes e lactantes no serviço público. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Florianópolis, 2023.

[9] ROSSI, Rachel. Mediação sem fronteiras à luz da comunicação não-violenta: como ultrapassar obstáculos que impedem a resolução pacífica de conflitos. Santa Cruz do Sul: Booklife, 2024.

Autores

  • é doutora e mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, mediadora judicial e professora do Centro Universitário Unicesusc.

  • é advogada, graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mediadora judicial registrada no CNJ, especialista em gestão de conflitos, fundadora e presidente da Comissão de Mediação e Advocacia Colaborativa da OAB-RS (Subseção Carazinho), embaixadora no Brasil do projeto italiano Medianos, instrutora e facilitadora certificada pela Ferrari Associati, Lecco (Itália).

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