Opinião

Registro de patente e inexigibilidade de licitação: limites jurídicos e cautelas

Autores

  • é conselheiro do Tribunal de Contas do estado de Minas Gerais (TCE-MG).

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  • é mestra em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) pós-graduada em Finanças Públicas pela Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo e em Direito Ambiental e Urbanístico pela PUC Minas professora e assessora de conselheiro no Tribunal de Contas de Minas Gerais.

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2 de dezembro de 2024, 15h24

O dever de licitar da administração pública, expresso na Constituição de 1988, busca a observância aos princípios da impessoalidade, moralidade e publicidade e a garantia de se obter a proposta mais vantajosa nas contratações, por meio da realização de procedimento concorrencial formal, que permita a participação de todos os interessados.

Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández lecionam que a concorrência nas contratações públicas “persegue uma dupla finalidade: proteger os interesses econômicos destes [entes públicos], suscitando em cada caso a máxima competição possível e garantir a igualdade de acesso à contratação […]” [1], motivo pelo qual o ordenamento jurídico estabelece a realização da licitação como regra a ser observada pela administração pública e como diretriz norteadora da interpretação jurídica sobre a matéria.

No entanto, diante da compreensão de que a licitação não é a única forma de realização do interesse público, sobretudo considerando-se a pluralidade de situações abrangidas pela atuação estatal e as vicissitudes da realidade, a ordem constitucional atribuiu às normas infraconstitucionais a possibilidade de fixação de exceções à realização de procedimento licitatório.

Nesse cenário, a Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei n. 14.133/2021), seguindo a tendência da Lei nº 8.666/1993, estabeleceu as hipóteses de inexigibilidade e de dispensa de licitação, nos artigos 74 e 75, respectivamente.

Ocorre que a mitigação da concorrência operacionalizada nas contratações diretas exige atenção especial do legislador e do aplicador do Direito, de modo a garantir a observância aos princípios constitucionais inerentes à atuação estatal e evitar a sua utilização como forma de burla ao dever de licitar.

Nesse sentido, Marçal Justen Filho afirma que “a contratação direta não significa o afastamento dos princípios básicos que orientam a atuação administrativa. Nem autoriza escolhas prepotentes ou arbitrárias”. Por essa razão, “o administrador está obrigado a seguir um procedimento administrativo determinado, destinado a assegurar (também nesses casos) a prevalência dos princípios jurídicos fundamentais”. Assim, “permanece o dever de realizar a melhor contratação possível, dando tratamento igualitário a todos os possíveis contratantes” [2].

Diante disso, o artigo 72 da Lei nº 14.133/2021 delineou o processo de contratação direta, trazendo de forma mais detalhada, em relação à legislação anterior, quais são seus documentos obrigatórios.

Para o presente estudo, importa destacar, entre as hipóteses de inexigibilidade de contratação, a inviabilidade de competição decorrente da ausência de alternativas para execução da necessidade estatal, quando a aquisição de materiais, de equipamentos ou de gêneros ou contratação de serviços só puderem ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivos (artigo 74, I, da Lei nº 14.133/2021). Isso porque, o gestor público, em muitos casos, encontra dificuldades em definir a incidência do mencionado dispositivo, a exemplo das situações nas quais os fornecedores afirmam ser detentores de exclusividade para contratar determinado objeto, em razão da existência de patente.

Comprovação da inviabilidade de licitação

Tendo em vista que a realização da licitação é a regra, a configuração da hipótese de inexigibilidade em razão da inviabilidade de competição demanda justificativa técnica. A justificativa há de ser adequada de modo a demonstrar que a solução a ser contratada é a única apta a atender à pretensão contratual administrativa. Além disso, exige-se a demonstração cabal da exclusividade do contratante para fornecimento do bem, prestação do serviço ou execução da obra.

A argumentação de que há um fornecedor exclusivo e, portanto, ausência de pluralidade de opções, demanda, além da documentação constante no artigo 72 da Lei nº 14.133/2021, que sejam justificados tecnicamente os motivos pelos quais aquele objeto contratual é o único capaz de atender ao interesse público subjacente à contratação [3].

Ao tratar da relevância da justificativa para a escolha da solução a ser contratada nas hipóteses de inexigibilidade de licitação, Renato Geraldo Mendes e Egon Bockmann Moreira aduzem que “a exclusividade do fornecedor é a consequência lógica da relação entre a necessidade que se pretende satisfazer e a solução capaz de viabilizar a desejada satisfação”. Por essa razão,

“[…] em um primeiro momento, é preciso que se demonstre a adequação entre a necessidade e a solução. Definida a solução, em um segundo momento, é preciso demonstrar, de acordo com o mercado, quais são os objetos (produtos e serviços) que traduzem e materializam a solução capaz de satisfazer plenamente a necessidade, o que se faz por meio de cuidadosa análise e eleição de um conjunto de especificações e características técnicas – a descrição do objeto. Por fim, no terceiro momento, como condição para que se configure a inexigibilidade com fulcro na exclusividade, é indispensável demonstrar que o objeto, seja de que natureza for, somente poderá ser fornecido ou prestado por um agente econômico monopolista. Vale dizer: é preciso demonstrar cabalmente que somente o monopolista (fornecedor exclusivo) é capaz de atender plenamente à necessidade da Administração, o que torna a competição inviável por impossibilidade de disputa” [4].

Na mesma perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou entendendo que o que torna a licitação inexigível, nos casos de fornecedor exclusivo, é o fato de que o produto ou serviço detenham “certas características peculiares, não encontradas nos produtos que lhe são concorrentes e ainda que tais características sejam decisivas para contemplar o interesse público” [5].

A nova legislação previu que a inviabilidade de competição, nesses casos, deverá ser demonstrada pela administração “mediante atestado de exclusividade, contrato de exclusividade, declaração do fabricante ou outro documento idôneo capaz de comprovar que o objeto é fornecido ou prestado por produtor, empresa ou representante comercial exclusivos, vedada a preferência por marca específica” (artigo 74, § 1º) [6].

Ressalta-se que, uma vez que a “inviabilidade de licitação é condição fática e momentânea que pode ser modificada ao longo do tempo”, a exclusividade deve ser comprovada a cada situação, com base nas circunstâncias específicas e relevantes do caso concreto, visto que “um mercado que possui fornecedor exclusivo hoje pode ser modificado com a entrada de novos participantes, o que retiraria a condição de exclusividade daquela empresa” [7].

Registro de patente e a exclusividade do fornecimento

No tocante à existência de patente que tutele a propriedade industrial, observa-se que tal fato, por si só, não é capaz de comprovar a exclusividade da prestação do serviço, fornecimento do bem ou execução da obra para fins de caracterização da inviabilidade de competição, de modo a possibilitar a contratação por inexigibilidade [8].

Isso porque, a Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996) –  ao conferir ao detentor da patente o direito de uso exclusivo – permitiu a autorização para que terceiros produzam, usem, coloquem à venda, vendam ou importem o produto patenteado (artigo 42, I). Portanto, pode haver “produtos patenteados produzidos por empresa exclusiva, mas distribuído e comercializado em regime de concorrência, pelo que se impõe licitação pública” [9]. Sendo assim, faz-se necessária a demonstração de que o contratado é fornecedor exclusivo do bem ou serviço.

O Tribunal de Contas da União já se manifestou no sentido de ser “irregular a contratação de empresa detentora da patente de determinado medicamento por inexigibilidade de licitação caso haja outras empresas por ela autorizadas à comercialização do produto, pois evidente a viabilidade de competição” [10].

Spacca

Joel Menezes Niebuhr alerta para o fato de que mesmo que um produto ou serviço seja patenteado, pode ser que a patente se refira a características periféricas que não sejam fundamentais ao interesse público. O autor explica que “o produto pode ser patenteado em virtude de suas características periféricas, sem que se impeça cotejá-lo com outros produtos do mesmo gênero, que cumprem, da mesma maneira, a funcionalidade almejada pela Administração”. Assim, o ponto principal está na definição do objeto que se pretende contratar, pois se as características periféricas do produto patenteado não forem determinantes para realização do interesse público, “o registro da patente é imprestável para indicar a exclusividade e para justificar a contratação direta” [11].

Dessa forma, o registro de patente sobre uma invenção ou modelo de utilidade não é capaz de demonstrar diretamente a exclusividade do fornecimento do bem, prestação do serviço ou execução de obra, motivo pelo qual devem constar no processo de contratação a justificativa técnica e os documentos que comprovem que o contratado é o único capaz de atender à demanda estatal.

 


[1] ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNANDÉZ, Tomás Ramón. Curso de Direito Administrativo, 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 703.

[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei n. 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. E-book.

[3] Nesse sentido, o Tribunal de Contas do Estado do Paraná respondeu à consulta que lhe foi formulada, por meio do Acórdão n. 3249/2021, nos termos que se seguem, in litteris: “No caso de inexigibilidade de licitação por força da exclusividade do contratado, a existência de atestado de exclusividade fornecido por órgão de registro do comércio não exime a Administração Pública de dimensionar devidamente seus problemas e necessidades, fixando os contornos e características das soluções disponíveis no mercado para atender ao interesse público, só podendo ocorrer a contratação direta caso haja a devida demonstração e comprovação de que o produto é o único disponível no mercado a atender adequadamente a finalidade pretendida. (PARANÁ. Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Acórdão n. 3249/2021. Tribunal Pleno. Rel. Cons. Fernando Augusto Mello Guimarães. Sessão de 25/11/2021)

[4] MENDES, Renato Geraldo; MOREIRA, Egon Bockmann. Inexigibilidade de licitação. Repensando a contratação pública e o dever de licitar. Curitiba: Zênite, 2016, p. 249.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS n. 37.688. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. DJe de 6.8.2012.

[6] Sobre o tema, destaca-se a Súmula n. 255 do Tribunal de Contas da União (TCU), in verbis: “Nas contratações em que o objeto só possa ser fornecido por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, é dever do agente público responsável pela contratação a adoção das providências necessárias para confirmar a veracidade da documentação comprobatória da condição de exclusividade. ”

[7] BOSELLI, Felipe. Artigo 74. In: FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; CAMARÃO, Tatiana (Coord.). Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei n. 14.133, de 1º de abril de 2021. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2023. v. 2. p. 68.

[8] Nesse sentido: MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Consulta n. 1156677. Tribunal Pleno. Rel. Conselheiro substituto Licurgo Mourão. Sessão de 10/7/2024.

[9] NIEBUHR, Joel de Menezes. Dispensa e Inexigibilidade de Licitação Pública. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 162.

[10] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 2950/2020. Plenário. Sessão de 4/11/2020.

[11] NIEBUHR, Joel de Menezes. Dispensa e Inexigibilidade de Licitação Pública. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 162.

Autores

  • é pós-doutorando e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, conselheiro substituto do Tribunal de Contas de Minas Gerais, com extensões na Hong Kong University, California Western School of Law, Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne e The George Washington University.

  • é mestra em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pós-graduada em Finanças Públicas pela Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo e em Direito Ambiental e Urbanístico pela PUC Minas, professora e assessora de conselheiro no Tribunal de Contas de Minas Gerais.

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