Opinião

O golpe, o avestruz e o negacionismo jurídico

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2 de dezembro de 2024, 6h33

Dizem que todo brasileiro é um técnico de futebol, a expressão está fora de moda, hoje em dia todo brasileiro é juiz, o pior, entretanto, é que trazem para o campo jurídico a paixão do torcedor, o que nunca dá certo.

Após a publicação do relatório da Polícia Federal sobre o golpe, surgem, agora, as narrativas contrapostas, que são adotadas pelo público de modo irrefletido e sem o mínimo de conhecimento técnico necessário.

Se fosse perguntado a alguém quem é Claus Roxin corria-se o risco de receber como resposta a referência a algum costureiro francês. Somente agora, quanto a Teoria do Domínio do Fato é uma das justificativas para o reconhecimento da malfadada tentativa de golpe, os partidários de lado a lado se lançam em uma disputa político-ideológica de um conceito puramente jurídico.

O jurista alemão Roxin aperfeiçoou um conceito já existente criado por um predecessor também alemão, Hans Welzel, de quem era contemporâneo (Roxin conta hoje com quase 100 anos de idade e Welzel é falecido), que não tem nada de político. O conceito é simples, possui o domínio do fato aquele que tem o controle sobre sua realização, se determinar que ocorra, acontecerá, se determinar que não ocorra, nada se fará.

É a figura do chefe, do líder, do mandante, daquele de cuja vontade dependerá a prática do crime. Quem tem o domínio do fato não precisa (e usualmente não faz) participar dos atos de execução, da ação concreta, do comportamento dito comissivo ou positivo. Aliás, na função de líder normalmente estará longe da prática do fato em si.

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Pode agir de modo que o fato ocorra e estar, até mesmo, em outro país, isto nada importa, porque o crime ocorre por força e influência de sua vontade. Esta discussão é um tanto quanto insensata, no Direito Brasileiro prevalece a figura do mandante como autor do crime, tanto assim que no artigo 62, inciso I do Código Penal está descrito que a pena será agravada para quem promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes.

Resumidamente, ao mandante será aplicada a pena do crime e mais um pouco ao critério do julgador. Simples assim. Agora, se estivéssemos na Alemanha, onde a Teoria se criou, a discussão teria razão de ser, porque, naquele país, as penas aplicadas a quem tem o domínio do fato (mandante) é diferente daquele que executou (executor) o crime.

O que parece estar por detrás destas questões não é a aplicação da teoria em si, mas da aferição (prova) do agente ter sido o mandante ou não, dele ter o domínio do fato com a poder de determinar que aconteça ou negar que o seja. É aqui que surgem duas narrativas mais efetivas, a primeira é o clássico “eu não sabia de nada”, a segunda é que isto implica em atribuir ao acusado o ônus de produzir a prova impossível de não ter feito nada.

Abelardo Barbosa tinha o jargão “Nada se cria, tudo se copia”, uma paráfrase de Lavoisier, o cientista francês que dizia “Na natureza nada se cria, tudo se transforma”. Quem diria que Chacrinha fosse um pensador tão profundo. A tese do “eu não sabia de nada” é usada cotidianamente em processos criminais, especialmente nos delitos de sonegação fiscal.

Muito dos artigos sobre responsabilidade penal objetiva e decisões sobre o tema são resultado desta modalidade criminosa. Outra porção vem do crime organizado. Na sonegação de nove em cada dez processos o empresário sonegador se defende dizendo que não tinha conhecimento da fraude fiscal, que era realizada pelo departamento contábil sem sua aquiescência, como método usual de administração cotidiana. Logo, sem saber de nada, não pode ser acusado e muito menos condenado pela acusação.

Curiosamente, também em nove de cada dez processos se afirma que as guias de recolhimento tributário e a documentação fiscal não possuía assinatura dos empresários, que de nada sabiam. Portanto, a falta de uma prova positiva de autoria impediria a condenação. Isto é muito comum também nas hipóteses de furto de água, quando o dono do ponto de consumo diz desconhecer que havia um desvio que permitia o consumo sem remuneração.

Entretanto, dez em cada dez processos deste tipo resultam em condenação, isto porque a sonegação implica em um ganho palpável, um lucro, para o agente, que não poderia passar desapercebido. Mais precisamente, o ganho derivado da sonegação era visível para qualquer um que administrasse a empresa, até porque era evidente a falta de recolhimento tributário.

Avestruz

Diga-se o mesmo, também, da água, cujo desvio leva o consumo para um nível insignificante, é impossível que este fato não seja percebido. De outra banda, agora dentro do aspecto probatório, é costumeiramente adotada a figura da Teoria do Avestruz.

Apesar de num primeiro momento parecer que estamos retomando a folclórica figura do Chacrinha, não é o caso. O Avestruz (aqui grafado em maiúscula) é uma ave simpática, não voadora, que tem o hábito de encostar o rosto no chão primeiro para ouvir a aproximação de algum predador e depois para se disfarçar com a plumagem.

A lenda se alastrou que a ave enterrava a cabeça no chão por medo e assim se popularizou. A Teoria do Avestruz ou Teoria da Cegueira Deliberada é antiga, deita raízes na Inglaterra, século 19, no caso Regina vs. Sleep, onde ficou conhecida também como “Willful Blindness” ou “Conscious Avoidance Doctrine” (Doutrina da Ignorância Consciente) ou, popularmente, “Ostrich Instructions” (Instruções do Avestruz).

Depois se popularizou nos Estados Unidos, acolhida em diversos casos criminais, principalmente de receptação. Podemos definir a Teoria do Avestruz como a ação do agente criminoso que se coloca deliberadamente em uma posição de ignorância em relação a ação criminosa, quando na verdade não somente assumiu o risco, mas se beneficiou ou se beneficiaria da ação criminosa.

O agente declara que nada sabia ou não fez nada, quando tinha todos os indicativos de que a conduta ocorria e de que seria beneficiado, não tendo, todavia, agido de modo direto para tanto. O agente toma conscientemente a decisão de manter-se na ignorância em relação a ação criminosa.

Veja-se a tangência entre a Teoria do Domínio do Fato e a Teoria do Avestruz, como o líder não pratica os atos executórios, sempre pode dizer que de nada sabia, casando as duas linhas de defesa. Resumindo: o agente não tinha domínio sobre o que acontecia porque não mandava ou não tinha como impedir, ao mesmo tempo, não tinha como saber de nada.

Vejamos estes argumentos à luz do informado publicamente pelo relatório da Polícia Federal. O presidente tem nominalmente o comando das Forças Armadas, é o comandante em chefe, logo, tecnicamente, nenhuma ação militar poderia ser desfechada sem sua aquiescência, mais ainda, os chamados golpistas eram membros da sua assessoria direta, ministros, generais, ajudante de ordens, políticos, divulgadores, advogados, almirantes, brigadeiros, deputados, senadores e o candidato a vice, que emplacava quase todas estas denominações.

Todos com vínculo direto e pessoal. Assim, estando em pleno exercício do seu poder de comando, torna-se o responsável pelas ações praticadas. E aqui vai uma observação o específica, dentre os golpistas esta listado o presidente do Partido Liberal, Valdemar da Costa Neto, este, por sua vez, não tinha nenhuma relação ou contato com as carreiras militares, o único vínculo do líder partidário com a esfera militar era justamente o presidente da República e desta forma somente ele poderia fazer a ligação entre ambos.

“Eu não sabia de nada” é uma frase de triste memória, evoca a justificativa e muitos alemães no pós-segunda guerra mundial quanto ao Holocausto. O historiador canadense Robert Gellately, (“Apoiando Hitler” -Editora Record, 2011) destacou que as práticas criminosas eram publicadas em jornais, discutidas claramente e que o extermínio era considerado um fato positivo, que os campos e concentração eram locais de confinamento de judeus sem ordem judicial, por força policial.

Nada era escondido

Da mesma forma que no Brasil se fizeram acampamentos pedindo o golpe, manifestações pedindo que o presidente desse o golpe (eu autorizo), marchas, preces públicas (até para um pneu), imitações de marchas militares (muito à fascista) e outras tantas crises.

Logo, o desconhecimento é uma afirmação temerária. Resta, por último, a questão da prova maldita, ou diabólica, o presidente não poderia provar que não fez, mas o raciocínio é, este sim, perverso, não se trata de provar que não fez, mas de provar que outros o fizeram sem sua concordância, o que, ao que se nos afigura, se torna muito difícil.

Existe o negacionismo climático, agora, parece, estamos defronte ao negacionismo jurídico, uma tentativa de negar o valor dos fatos. Como já anotamos, na história, deu no que deu.

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