Ingresso em domicílio e busca pessoal: Tema 280 do STF e jurisprudência do STJ
2 de dezembro de 2024, 7h07
A questão das provas obtidas mediante invasão de domicílio por policiais sem mandado de busca e apreensão foi tratada pelo Supremo Tribunal Federal, sob a sistemática da Repercussão Geral, no RE nº 603616-RO, à luz do artigo 5º, XI, LV e LVI, da Constituição. No julgamento, encerrado presencialmente em 05/11/2015, o Plenário da Corte, por maioria e nos termos do voto do relator, o Ministro Gilmar Mendes, negou provimento ao recurso e fixou a seguinte tese:
“A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.”
Fundamentos da decisão
Pode parecer, numa breve leitura da tese, que se analisou e se concluiu o autoevidente. Ora, porque se a Constituição, em seu artigo 5º, inciso XI, já dispõe que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador — salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial —, parece que não haveria por que a Corte Constitucional ser instada a fixar um tema em repercussão geral para reproduzir exatamente a essência, para a hipótese, do dispositivo constitucional. É o que por vezes se questiona; contudo, ante a falta de uma leitura aprofundada do julgamento.
As hipóteses de flagrante delito, bem sabemos, vêm previstas pelo ordenamento infraconstitucional (CPP, arts. 302 e 303). E o que fez o STF foi, também, salientar que “não será [apenas] a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida”, pois, “os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida”, conforme consigna a ementa do julgado.
Controle judicial: a priori e a posteriori
O que se explica ao longo do julgamento paradigmático é que seria de difícil compatibilização com a Constituição exigir controle judicial prévio para as três hipóteses que excetuam o ingresso sem autorização do morador. Por isso, a Constituição considerou que a urgência é presumida nessas situações, independentemente, inclusive, de o crime envolver violência ou grave ameaça à pessoa. Mas a regra, é óbvio, continua sendo a inviolabilidade e, por isso, também é regra a exigência de um controle judicial prévio para a sua quebra.
Assim, seguiu ponderando a Corte sobre as três exceções, nos termos do voto do relator: “Ao respeitar a literalidade do texto constitucional, que simplesmente admite o ingresso forçado em caso de flagrante delito, contraditoriamente estamos fragilizando o núcleo essencial dessa garantia. Precisamos evoluir, estabelecendo uma interpretação que afirme a garantia da inviolabilidade da casa e, por outro lado, proteja os agentes da segurança pública, oferecendo orientação mais segura sobre suas formas de atuação. A ausência de mandado judicial prévio pode ser contrabalanceada pela disponibilidade de um controle ex post”.
Implicações da decisão
Diante disso, podemos traçar o seguinte: Premissa 1: O domicílio é inviolável. Premissa 2: Salvo exceções constitucionais a serem justificadas. Senão: Toda entrada forçada em domicílio será arbitrária.
Então, a busca e apreensão domiciliar necessita de controle judicial porque, como apontado pelo voto-condutor do julgado, “a avaliação feita por um juiz ‘neutro e desinteressado’ sobrepõe a avaliação de um ‘policial envolvido no empreendimento, muitas vezes competitivo, de revelar o crime’, resguardando contra medidas arbitrárias — Justice Robert H. Jackson, redator da opinion da Suprema Corte dos Estados Unidos, caso Johnson v. United States 333 U.S. 10 (1948)”.
Com efeito, e como segue fundamentando o voto-condutor, o nosso sistema de garantias conta com o:
CONTROLE A PRIORI: “No controle prévio, a adoção da medida deve ser precedida da expedição de uma ordem (mandado) judicial. O juiz, terceiro imparcial, analisa a presença dos requisitos da medida e, se for o caso, autoriza sua realização”.
CONTROLE A POSTERIORI: “a legislação permite aos agentes da administração desde logo atuar, realizando a medida invasiva. Apenas depois de sua concretização, o terceiro imparcial verifica se os agentes da administração agiram de acordo com o direito, analisando se estavam presentes os pressupostos da medida e se sua execução foi conforme o direito”.
O controle posterior é o que ocorre no caso da prisão em flagrante, que é uma exceção à exigência de prévia ordem escrita da autoridade judiciária para a prisão (artigo 5º, LXI, da CF), “fundada na urgência em fazer cessar a prática de crime e na evidência de sua autoria”. Por isso, a própria CF, no inciso seguinte (LXII), também estabelece que é indispensável o controle da medida a posteriori, tanto que exige imediata comunicação dessa prisão ao juiz, que então deve analisar a legalidade do ato.
Inviolabilidade domiciliar e justa causa
No caso da inviolabilidade domiciliar, em geral, é necessário o controle judicial prévio – com expedição de mandado judicial. O juiz analisa a existência de justa causa para a medida, na forma do art. 240, §1º, do CPP, verificando se estão presentes as fundadas razões. Ocorre que o dispositivo não conceitua essa expressão, o que a torna vaga e aberta.
Em face disso, como deve ser realizado o controle a posteriori? Esse controle vai exigir dos policiais a demonstração de que a medida foi adotada mediante justa causa, tal como a apreciaria o juiz para deferi-la antecipadamente se não fosse a urgência. E segundo o Supremo, nos debates e votos apresentados no julgamento do Tema 280, deve ser exigida a demonstração de que havia elementos para caracterizar a suspeita de que uma situação autorizava o ingresso forçado em domicílio. Numa certa síntese apresentada pelo ministro Relator: “Trata-se de exigência modesta, compatível com a fase de obtenção de provas. É amplo o leque de elementos que podem ser utilizados para satisfazer o requisito.”
Portanto, podemos sintetizar as fundadas razões ou justa causa, segundo o STF no julgamento do Tema 280, partindo da premissa de que o fundamental é que o critério para a decisão de realizar a entrada forçada não tenha sido arbitrário. Isto é, “a proteção contra a busca arbitrária exige que a diligência seja avaliada com base no que se sabia antes de sua realização, e não depois”.
Aliás, como referido nesse julgamento, esse princípio é adotado pelo Direito Americano, que não dispensa o mandado em situações de crime em curso, salvo se a busca imediata decorrer das assim intituladas circunstâncias exigentes (exigent circumstances), consideradas “as circunstâncias que levariam uma pessoa razoável a crer que a entrada era necessária para prevenir o dano aos policiais ou outras pessoas, a destruição de provas relevantes, a fuga de um suspeito, ou alguma outra consequência que frustre indevidamente esforços legítimos de aplicação da lei [United States v. McConney, 728 F. 2d 1195, 1199 (9th Cir.), cert. denied, 469 U.S. 824 (1984)]”.
Discussão sobre necessidade e urgência
Nesse cenário e diante de uma situação concreta, cabe então perscrutar: para a invasão de domicílio sem mandado judicial, essa conduta policial mostra-se mesmo imprescindível, principalmente, para prevenir a destruição de provas relevantes ou a fuga, ou é possível fazer o certo pelo modo ordinariamente certo: quer dizer, é possível primeiro representar ao juiz para a devida análise da medida e sem que o decorrer do tempo traga prejuízo aos esforços legítimos de aplicação da lei? Frente a isso, se se constatar que não há urgência manifesta, o tempo pode muito bem esperar o atendimento da regra, que é a da ordem judicial para a hipótese.
Esse é o argumento de urgência, aliás, adotado pelo STJ quando trata, em nível infraconstitucional acerca do art. 240, § 1º, do CPP, considerando “que só justifica o ingresso policial no domicílio alheio a situação de ocorrência de um crime cuja urgência na sua cessação desautorize o aguardo do momento adequado para, mediante mandado judicial – meio ordinário e seguro para o afastamento do direito à inviolabilidade da morada – legitimar a entrada em residência ou local de abrigo” (HC 598051, Rel. Min. Ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, p. 15/03/2021).
Assim, vai ficando mais claro entender o porquê da necessidade dessa distinção expressa de que a diligência seja avaliada com base no que se sabia antes de sua realização. Porque embora pareça de antemão que seja algo suprimível, depois, pelo próprio flagrante, ou passível de convalidação por ele, se se entender sob essa perspectiva, isto é, de que basta o flagrante “positivo” para justificar, por si só, o ingresso forçado, na prática, isso esvaziaria a necessidade do efetivo controle judicial prévio. Mesmo porque bastaria “qualquer flagrante” para justificar qualquer abuso ou arbitrariedade no ingresso indevido.
Interpretação e implicações práticas
Bem, só que o próprio STF ressalvou, pelo voto do relator, que “a solução preconizada não tem a pretensão de resolver todos os problemas. A locução fundadas razões demandará esforço de concretização e interpretação”. A partir daí, tem sido também pela casuística que a Suprema Corte vem se pronunciando sobre as mais diversas circunstâncias. Nesse sentido, é de se apontar:
A possibilidade de deflagração da persecução penal por denúncia anônima, desde que realizadas diligências para confirmar a veracidade dos fatos noticiados (ARE 1.418.414, Relª. Minª. Cármen Lúcia, dje 17/03/2023; RHC 198.977 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, dje 26/05/2021; HC 226.599 AgR, Rel. André Mendonça, Segunda Turma, dje 02/10/2023).
O reconhecimento de fundadas razões para a invasão domiciliar, sem mandado judicial, pela fuga ou tentativa de fuga diante da abordagem ou patrulhamento policial (ARE 1.466.339 AgR. Rel. Alexandre de Moraes, 1ª Turma, dje 09/01/2024; RE 1.499.863 AgR, Rel. Min. André Mendonça, 1ª Turma, dje 26/11/2024; RE 1.517.069, Rel. Nunes Marques, dje 09/10/2024). Em sentido contrário (RHC 221772 AgR. Rel. Edson Fachin, 2ª Turma, dje 23/02/2024).
Além do mais, já se pontuou serem exigidos apenas elementos mínimos para caracterizar as fundadas razões (HC 222.149 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, dje 17/02/2023), as quais não reclamam, pois, a certeza da ocorrência de delito (RE 1.447.374 AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Alexandre de Moraes, dje 09/10/2023). Deve, assim, ser considerada a junção de elementos (indiciários e prévios), que, em conjunto, formem um critério objetivo (RE 1.459.390 AgR,, Rel. Min. André Mendonça, Segunda Turma, dje 03/09/2024).
Busca pessoal e STJ
O Tema 280 não cuidou exatamente dessa medida, mesmo porque independe de mandado judicial. Mas, dentre o mais, há uma intersecção entre a busca pessoal e a invasão domiciliar porque lhes subjaz a destacada locução fundadas razões (e seus equivalentes).
Para tanto, é preciso ingressar na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, até porque o STF ainda não se pronunciou a respeito da busca pessoal sob a sistemática da repercussão geral. O que a Suprema Corte fez, tranversalizando essa temática, foi fixar a tese no HC nº 208240-SP, de relatoria do ministro Edson Fachin, quando julgada a questão do perfilamento racial, oportunidade em que assentou:
“A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física.”
Posicionamento do STJ
Já o STJ, enquanto responsável pela uniformização acerca da legislação infraconstitucional, ao tratar dos arts. 240 e ss. do CPP, também vem utilizando a interpretação que extrai da expressão fundada suspeita, trazida pelo artigo 244, para aferi-la, inclusive e em certa medida, para fins de ingresso em domicílio sem mandado [1].
A Corte Superior estabeleceu dessa interpretação o que rotula como standard ou padrão probatório para o reconhecimento da licitude da busca pessoal e veicular. Um voto emblemático e referencial a respeito é o do ministro Rogério Schietti, no RHC nº 158.580-BA, que acabou levando consigo o posicionamento atualmente prevalente na Seção Criminal da Corte Superior de Justiça.
O entendimento lá assentado criou uma orientação geral para a licitude da medida de quebra dos direitos fundamentais à privacidade, à intimidade e à liberdade decorrente da busca pessoal e veicular. E embora as balizas para a definição do que vem a ser a “fundada suspeita” para a invasão de domicílio já tenham sido estabelecidas pelo STF no julgamento do Tema 280, o STJ estreitou-as ao tratar da busca pessoal.
Referibilidade da medida: O STJ especifica que a normativa do artigo 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. Há uma necessária referibilidade da medida, que deve estar vinculada à sua finalidade legal probatória, ou seja, deve necessariamente estar relacionada à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.
E assim para que essa medida “não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto (droga, por exemplo)”.
Segundo o ministro Schietti, na relatoria desse recurso paradigmático: “O artigo 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata.”
O STJ também entende que não satisfazem a exigência legal da justa causa meras informações de fonte não identificada (como as tais denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta (e aí aponta expressamente como exemplo o tirocínio policial, a mera atitude suspeita, o mero nervosismo, como não preenchedores do standard probatório de “fundada suspeita” exigido pelo artigo 244 do CPP).
Juízo de probabilidade: Nesse sentido, a segunda exigência do STJ para o preenchimento da fundada suspeita é de que seja baseada em juízo de probabilidade, isto é, seja aferível mediante a maior precisão possível, de modo objetivo e devidamente justificado pelos indícios e circunstâncias do caso concreto.
Além disso, o STJ também considera, e aí tal qual o STF no Tema 280, que a fundada suspeita de posse de corpo de delito seja aferida com base no que se tinha antes da diligência, de modo que o encontro de objetos ilícitos, por si só, após a revista, não convalida a ilegalidade prévia e as provas obtidas por meio dessa medida invasiva são nulas, bem como todas as decorrentes (a ressabida teoria dos frutos da árvore envenenada).
Elementos sólidos e concretos
No referido RHC nº 158580, o ministro Schietti explica e destaca as principais razões pelas quais devem ser exigidos elementos sólidos, objetivos e concretos para a realização de busca pessoal:
Evitar o uso excessivo da medida, que é invasiva, constrangedora e implica a detenção do indivíduo, ainda que breve, pela autoridade policial.
Garantir a sindicabilidade da medida, para que possa ser controlada e contrastada sob o contraditório e ampla defesa, o que não ocorre com eficiência se o policial invocar apenas impressões subjetivas.
Evitar a repetição de preconceitos estruturais, no sentido de se enquadrar as pessoas não exatamente pela fundada suspeita de seu engajamento na conduta ilegal, mas apenas sob o viés na avaliação e tomada de decisão pelo agente policial contra grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos.
A propósito — e dos tantos vieses reconhecidos, sobretudo, pela psicologia —, lembremos então do denominado viés de perfil criminoso, que se revela pela tendência em realizar julgamentos com base em estereótipos, pelo que se associa certas características, como raça, etnia, aparência, gênero ou classe social, a um perfil criminal, mesmo sem evidências concretas.
Conclusão
Em suma, tanto para o STF, em razão do que decidido no Tema 280 para o ingresso em domicílio sem mandado judicial, e reverberando as mesmas premissas para as buscas pessoais e veiculares, como para o STJ, no que vem decidindo e firmando em termos de standard probatório para as medidas de busca pessoal e veicular, tem-se o seguinte: a justa causa (fundadas razões ou fundada [atitude] suspeita) tem de ser aferida com base anterior à diligência e justificada a posteriori, da forma mais objetiva e precisa possível [2].
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[1] No HC 598051-SP, em julgamento que se tornou referencial na jurisprudência do STJ sobre ingresso em domicílio sem mandado judicial, a Corte assentou, além da necessidade de demonstração de fundadas razões prévias e objetivas, também a urgência que demande ação imediata, fixando, ainda, diretrizes para a obtenção do consentimento do morador. Sobre o consentimento, a questão já foi reconhecida em repercussão geral pelo STF, que lhe conferiu o Tema 1208 (Pressupostos de validade do consentimento do morador para a busca e apreensão domiciliar – RE 1368160, Rel. Min. André Mendonça), ainda pendente de julgamento.
[2] Processos paradigmáticos:
Ingresso domiciliar: STF, RE nº 603616-RO; STJ, HC 598051-SP.
Busca pessoal: STJ, RHC nº 158580-BA (vide também HC 877943-MS, abordando especificamente a fuga); STF, HC nº 208240-SP.
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