Opinião

Imunidade parlamentar à beira da morte: o caso Marcel Van Hattem

Autores

  • é procurador federal mestre em Direito pela Uerj e pela UniRio e especialista em Direito Administrativo Econômico pela PUC-Rio.

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  • é advogado professor doutorando em Direito pela PUC-SP mestre em Direito pela PUC-SP especialista em liberdade de expressão e autor do livro Censura por Toda Parte.

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  • é sócio do Penna Marinho e Rebouças Advogados mestre em Direito Tributário pela USP especialista em Direito Tributário pelo IBET e MBA em Direito da Economia e da Empresa pela FGV.

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2 de dezembro de 2024, 20h37

O presente artigo visa colocar luz sobre os recentes movimentos institucionais do Supremo Tribunal Federal e da Polícia Federal sobre o alcance da imunidade parlamentar, reduzindo a importância do instituto em nosso ordenamento, principalmente com relação a parlamentares com tons de fala mais incisivos [1].

Esse avanço na busca de restrição de um direito tão importante é que permite afirmar que a imunidade parlamentar está à “beira da morte”. Isso porque, com os recentes desdobramentos precários do instituto, os parlamentares passarão a não ter, nem mesmo, mais qualquer espaço geográfico para dizerem o que bem entenderem. O caso atual do deputado federal Marcel Van Hattem é bastante emblemático, uma vez que as opiniões e palavras foram proferidas da Tribuna da Câmara dos Deputados.

A jurisprudência do STF é pacífica, pelo menos desde 1992, no sentido de que ofensa irrogada em Plenário, independentemente de conexão com o mandato, elide a responsabilidade civil por dano moral [2].

Esse afastamento da responsabilidade cível, por óbvio, abrange também a impossibilidade de responsabilização criminal, principalmente para os casos em que a persecução penal visa imputar ao parlamentar a prática de crimes contra a honra de quem quer que seja, até mesmo autoridades judiciais e quaisquer outros servidores que compõem o sistema de justiça, inclusive o criminal.

Trata-se de conclusão diretamente ligada, tanto à literalidade, quanto à teleologia, do artigo 53 da Constituição da República de 1988, segundo o qual os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.

Local sagrado da imunidade parlamentar

O objetivo final da imunidade parlamentar é permitir a congressistas em geral ampla liberdade para promoverem a denúncia de irregularidades, de ilegalidades e de abusos praticados por agentes públicos e, até mesmo, privados que atingem diretamente os interesses públicos da sociedade brasileira.

Ou seja, a imunidade parlamentar existe, de acordo com decisões anteriores do próprio STF, para fins de proteção republicana ao livre exercício do mandato [3]. O maior local de livre expressão do mandato ocorre, por óbvio, no recinto da Câmara dos Deputados e, em especial, na tribuna, que é o local em que parlamentares promovem discursos de toda sorte para a defesa dos interesses da população brasileira em geral e, sobretudo, de seus eleitores.

Luis Macedo / Câmara dos Deputados

Por isso mesmo, o STF de há muito fixou que há de se distinguir as situações em que as supostas ofensas são proferidas dentro e fora do Parlamento, de modo que, somente nessas últimas ofensas irrogadas fora do Parlamento, é de se perquirir da chamada “conexão com o exercício do mandato ou com a condição parlamentar [4], porquanto, para os pronunciamentos feitos no interior das casas legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das ofensas ou a conexão com o mandato, dado que acobertadas com o manto da inviolabilidade, devendo, em tal seara, caber à própria Casa a que pertencer o parlamentar coibir eventuais excessos no desempenho dessa prerrogativa [5].

O recinto da Câmara dos Deputados e, por óbvio, a Tribuna da Casa sempre foram consideradas o local sagrado em que a imunidade parlamentar deveria ser preservada no seu mais extenso nível material e formal, descabendo qualquer análise de “pertinência” entre a fala do parlamentar com o exercício da sua função. Isto é, as falas da tribuna não poderiam passar pelo filtro de análise da prática in officio (conexão com o desempenho da função legislativa) ou propeter officium (conexão das manifestações em razão da função legislativa).

No caso do deputado Marcel Van Hattem, o ministro Flávio Dino do STF e a própria Polícia Federal dão indícios de que passaram a entender de maneira totalmente contrária a essa posição pacífica do STF.

Esse agir demonstra que a imunidade parlamentar no Brasil está sofrendo grave risco de não ter mais a devida importância como em sistemas republicanos e democráticos mundo afora, uma vez que sempre existirá o filtro judicial para dizer se uma fala de congressista tem, ou não, pertinência com o desempenho da função parlamentar.

Trata-se de criação de uma fragilidade institucional em que o Poder Judiciário passará a ser o filtro moral, ético e jurídico de falas de parlamentares em detrimento à cláusula da independência e harmonia dos Poderes.

Isso, por si só, demonstra o equívoco na abertura, na manutenção e, até mesmo, no indiciamento do deputado federal Marcel Van Hattem. É uma afirmação de substância, de mérito sobre o caso, que revela, com todo respeito, a incorreção da atuação do ministro Flávio Dino do STF e da Polícia Federal.

Arquivamento do inquérito

Há ainda um ponto que merece uma reflexão mais acurada.

O Direito Penal é regido por um princípio secular de que a lei não pode retroagir, exceto para beneficiar o réu (artigo 5º, inciso XL, da Constituição da República). Por esse princípio jurídico, tem-se a tranquilidade de qualquer lei prejudicial ao réu não poder atingi-lo. Isso se evidencia de maneira mais aparente em duas situações: quando um fato atípico (não previsto como crime) passa a ser típico (previsto como crime) ou quando existe um aumento de pena ou outra circunstância mais gravosa de punição ao criminoso.

A primeira situação tem relação direta com a garantia constitucional de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição da República). Embora o dispositivo constitucional indique “lei”, é certo que se está a falar de norma jurídica [6], razão pela qual a doutrina interpreta esse dispositivo para estabelecer que essa garantia também abrange situações em que não se permite a aplicação de entendimento jurisprudencial em que antes se elidia a tipificação de determinada conduta como crime e passe, em momento atual, considerar como crime (jurisprudência penal mais gravosa).

O caso do deputado federal Marcel Van Hattem é tipicamente essa hipótese, uma vez que o STF sempre colocou que as falas no recinto da Congresso Nacional seriam absolutamente invioláveis (imunidade parlamentar material absoluta).

Spacca

Se a Suprema Corte desejar alterar a sua posição jurisprudencial, para exigir o filtro da pertinência (in officio ou propter officium) para os casos ocorridos até mesmo no recinto do Congresso Nacional e na Tribuna do Parlamento, deveria, no mínimo, por respeito à segurança jurídica [7] – corporificada no direito sancionador na garantia fundamental de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal [8] –, determinar o arquivamento do inquérito policial contra o deputado Marcel Van Hattem e quaisquer outros parlamentares na mesma situação jurídica, passando tão somente a ser possível a aplicação desse novo entendimento jurisprudencial potencialmente criminalizador de falas parlamentares a partir do julgamento desse caso emblemático.

Essa posição evita que falas antigas de parlamentares de quaisquer espectros políticos, no âmbito interno do Congresso, passem a ser alvo de investigação policial e posteriormente ação penal, que pode culminar na aplicação de penas retroativas.

Espera-se muito que não cheguemos a esse desfecho de alteração jurisprudencial e que se mantenha a posição solidificada há mais de três décadas no STF. No entanto, o momento atual nos mostra que a ofensiva contra as imunidades parlamentares está a todo vapor. Estamos à beira da morte da imunidade parlamentar, infelizmente.

 


[1] Confira texto já publicado alertando sobre o tema: https://www.conjur.com.br/2020-jul-23/jonathan-mariano-otoni-paula/.

[2] RE 210.917, rel. min. Sepúlveda Pertence e RE 463.671, rel. min. Sepúlveda Pertence

[3] Pet 5.705, rel. min. Luiz Fux.

[4]  Inq 390 e Inq 1.710

[5] Inq. 1.958, Rel. Min. Ayres Britto e Inq 3.814, rel. min. Rosa Weber

[6] GRAU, Eros Roberto. Porque tenho medo de juízes: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2018.

[7] A ideia de segurança jurídica como conhecimento prévio da norma e sua maneira de aplicação, previsibilidade das consequências e confiança de que as consequências esperadas, ou sua ausência é sempre bem lembrada pela obra de fôlego de Humberto Ávila. Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

[8] art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição da República.

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