Doação de material impresso casado de prefeitos a vereadores
2 de dezembro de 2024, 13h20
A propaganda eleitoral é a forma lícita de cooptação de votos do eleitorado. É por meio dela que o candidato se apresenta ao público em geral, enaltecendo suas qualidades pessoais e profissionais, bem como defendendo seu plano de governo para a gestão da sua cidade.
As eleições municipais são realizadas na circunscrição eleitoral dos municípios (artigo 86 do Código Eleitoral). No Brasil, no último dia 6 de outubro deste ano, foi realizado simultaneamente o pleito em nossas 5.570 cidades, nas quais reside a nossa população de aproximadamente 212 milhões de pessoas. Cada município desse tem sua geografia e número de eleitores próprios, espalhados por uma extensão territorial de zona urbana e rural — essa última predominante nos municípios interioranos; que, por sua vez, são a maioria esmagadora do perfil das cidades brasileiras (informação do site da Confederação Nacional de Municípios).
Haja vista que a propaganda eleitoral se inicia no dia 16 de agosto (artigo 36 da Lei das Eleições), quando antes já se procedeu ao registro de candidatura de todos os concorrentes por seus partidos políticos, e finaliza na véspera do pleito, sobra no tempo apenas 50 dias para que candidatos e candidatas a prefeito(a) e vereador(a) possam percorrer todo o território da circunscrição eleitoral de seu município para a cooptação de votos. Diz-se, assim, que o tempo é um ativo importantíssimo em campanhas eleitorais.
Essa tensão entre tempo, extensão territorial da circunscrição eleitoral e quantitativo do eleitorado impõem que as polarizadas campanhas eleitorais para as prefeituras sejam uma disputa de grupos, nos quais a chapa de candidatos a prefeito e vice assume a condição de liderança política, junto aos seus candidatos a vereador liderados (essa disputa ao mesmo tempo está prevista no artigo 1º da Lei das Eleições).
Ou seja, na práxis política das eleições municipais, o candidato a prefeito e vice pedem voto para si, e também todos os candidatos a vereador integrantes de sua coligação majoritária pedem votos em favor deles também. Para isso, fazem propaganda eleitoral em conjunto, quer seja na mídia ortodoxa na televisão e no rádio, quer seja na internet (especialmente no ambiente das redes sociais), quer seja na rua em caminhada, passeata, carreata ou comício, mas sempre nesse último meio de propaganda eleitoral (na rua) com a distribuição de material impresso — em especial por meio da propaganda impressa casada, em que, com benefício mútuo, é divulgada a imagem e pedido de voto simultâneo do candidato a prefeito e seu candidato a vereador.
Dúvida sobre doação de material impresso a candidatos a vereador
Atualmente, existe uma celeuma jurisprudencial sobre a exegese do artigo 17, §2º, incisos I e II, da Resolução TSE nº 23.607/19, sobre a possibilidade jurídica ou não das campanhas de prefeito e vice promoverem doação estimada de material impresso casado para candidatos a vereador integrantes de partidos de sua coligação majoritária — mesmo ante a inexistência de coligações proporcionais.
Existem diversos precedentes de diversos tribunais regionais reconhecendo a legalidade dessa doação estimada, a saber por exemplo: TRE-PR, no Recurso Eleitoral 060045517, publicado no DJE de 14/05/2021; TRE-SP, no Recurso Eleitoral nº 060063214, publicado no DJE de 28/02/2024; TRE-MG, no Recurso Eleitoral nº 060030558, publicado no DJE de 29/08/2022; TRE-SC, Recurso Eleitoral nº060018331, publicado no DJE de 28/09/2022.
A respeito do estado das coisas sobre a jurisprudência nos processos de prestação de contas, deve-se ter em consideração que esses são processos de jurisdição voluntária, sem a existência então de partes litigantes em polos antagônicos, de modo que a existência de sucumbência recursal fica a cargo somente do candidato que teve censurada suas contas, motivo pelo qual decai o interesse recursal em prolongamento desses feitos até os regionais, ou até mesmo até o TSE — malgrado a legitimidade do MPE como custos legis.
Mesmo assim, o TSE passou a anunciar a exegese do artigo 17, §2º, incisos I e II, da Resolução TSE nº 23.607/19 como pacificada sobre a ilicitude das doações estimadas de material impresso casado de prefeito para vereador integrante de partido de sua coligação majoritária.
O Tribunal Superior, data venia, caiu na armadilha daquilo que se chama de plenipotenciariedade da jurisprudência (expressão alcunhada pelos professores Lenio Streck e Georges Abboud), em que o tribunal e os demais tribunais e Juízos sobrepostos, pressionados pelos referenciais estatísticos de produção de julgamentos, passam a dar aceleradas respostas hermenêuticas a priori a partir das ementas de precedentes do Tribunal Superior, contudo de maneira irrefletida — sem a análise da sua ratio decidendi.
Recurso especial serviria como jurisprudência?
Melhor explico. No banco de dados de jurisprudência do TSE consta o julgamento do Recurso Especial nº 060065485, publicado no DJE em 02/08/2022. Aparentemente esse é o leading case sobre a questão, posto que foi referenciado posteriormente como assim no julgamento do Recurso Especial nº 060047407, publicado no DJE em 15/09/2022.
O problema da plenipotenciaridade da jurisprudência está em ambos esses precedentes (o pioneiro e o subsequente). O primeiro cita como referencial de julgamento do TSE o Recurso Especial nº 060074538, publicado no DJE de 25 de fevereiro de 2022, que versa sobre as eleições gerais em que o partido MDB doou diretamente recurso financeiros para candidatos a deputado do partido PRTB; e cita também o precedente do Recurso Especial 060510947, julgado em 28 de outubro de 2021, em que por um apertado placar de 4×3 a maioria dos ministros do TSE decidiu também em relação as eleições gerais que ilícita é a doação indireta estimada de material impresso casado entre candidato a deputado federal para candidato a deputado estadual, haja vista a ausência de coligação entre as agremiações dos envolvidos na disputa proporcional.
Há ainda um destaque de impropriedade das referências jurisprudências do leading case do Recurso Especial nº 060047407, qual seja: tanto o Recurso Especial nº 060074538 como o Recurso Especial 060510947 interpretam ordenamento jurídico diferente daquele do apreciado no leading case, pois ainda nas eleições de 2018 vigiam as coligações proporcionais (vide artigo 2º da Emenda Constitucional nº 97/2017) e a vedação do financiamento entre partidos não coligados estava contida no artigo 19, §1º, da Resolução TSE nº 23.553/2017 (cuja redação é em essência diferente da atual do artigo 17, §2º, incisos I e II, da Resolução TSE nº 23.607/19).
Sendo assim, o Recurso Especial nº 060065485 não pode ser considerado como jurisprudência do TSE sobre a licitude ou não da doação de candidato a prefeito para vereadores integrantes de sua coligação majoritária, seja pela impropriedade técnica dos precedentes lá referenciados, seja pela falta de debate exauriente em torno de todos os fundamentos relevantes. Para se ter ideia da insuficiência da fundamentação do leading case, o voto condutor seguido a unanimidade sem debate cita apenas o dispositivo da resolução, a emenda constitucional proibitiva das coligações proporcionais, e os dois indigitados precedentes.
Outrossim, existem, sim, diversos fundamentos relevantes não submetidos ou apreciados pelo TSE para a questão posta — suficientes à superação de precedente por meio do overruling. É cediço que na hermenêutica, malgrado a tópica para a argumentação jurídica (a exegese em torno de um determinado dispositivo legal), a interpretação sistemática se exige, como um diálogo com as opções legislativas tomadas pelo legislador para a solução do problema globalmente (essa é a ideia de unidade, coerência e completude do ordenamento jurídico).
Tempo de propaganda dos candidatos a vereador
A possibilidade jurídica do candidato a prefeito compartilhar o tempo de propaganda eleitoral dos candidatos a vereador integrantes de sua coligação majoritária está contida no artigo 53-A da Lei das Eleições. Ou seja, no campo do financiamento público indireto do horário gratuito de televisão e rádio, o candidato a prefeito pode usufruir do tempo dos candidatos a vereador de sua coligação majoritária, independentemente se essas candidaturas proporcionais não estejam coligadas. Logo, por criatividade na interpretação do direito essa solução legislativa não pode ser derrogada — princípio da dignidade da legislação de Jeremy Waldron.
Ademais, com o fim do financiamento privado de empresas para as campanhas eleitorais, há, hodiernamente, uma predominância quase que absoluta de financiamento público das campanhas eleitorais, quer seja por fonte dos recursos de fundo partidário ou eleitoral (artigo 38 e seguintes da Lei Orgânica dos Partidos Políticos e artigo 16-C da Lei das Eleições) — informação essa divulgada pelo site da CNN Brasil (96,57% das campanhas eleitorais foram financiadas em 2022 financiadas por recursos públicos).
Sendo assim, esse aporte de recursos públicos nas campanhas eleitorais é na práxis política das eleições municipais distribuído quase que absolutamente aos candidatos a prefeito e vice das agremiações. De posse desses recursos são empreendidos gastos eleitorais diversos (em especial, com a propaganda eleitoral casada em material impresso) para a conquista do poder local em conjunto pelo candidato a prefeito e sua base de candidatos a vereador, vez que no sistema representativo para além da conquista do mandato no período eleitoral, para a governabilidade do momento pós-eleitoral é necessária a formação de uma base política no relacionamento institucional interdependente entre o Executivo e o Legislativo (perspectiva do presidencialismo de coalizão de Sérgio Abranches).
Face a isso, dadas as finalidades do poder normativo da Resolução do TSE, que serve a explicitação do ordenamento jurídico eleitoral com a sua sistematização, e não a inovação, por certo é que dado o princípio constitucional da legalidade (artigo 5º da Constituição), o dispositivo do artigo 17, §2º, inciso I, da Resolução TSE nº 23.607/2019 não pode ser interpretado como a proibir a doação de material impresso casado de prefeito a vereadores integrantes dos partidos de sua coligação majoritária — a Emenda Constitucional nº 97/2017 apenas proíbe a formação de coligações proporcionais para não mais deturpar esse sistema eleitoral.
Por fim, sinalizar hermeneuticamente diferente do arrazoado deste artigo — como no julgamento do pseudo leading case do Recurso Especial nº 060065485, por consequencialismo, é um convite ao financiamento oculto dessas despesas eleitorais.
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