Contrato administrativo como ferramenta de promoção de política pública
2 de dezembro de 2024, 19h39
Dentre as várias atividades da gestão pública, a contratação pública é, de longe, a mais dinâmica. Parece intuitivo cogitar que as transformações decorrem das sucessivas alterações legislativas na área, no entanto, as novas leis e regulamentos sobre contratos administrativos representam somente a face mais aparente das mudanças, as quais se originam, antes de tudo, de novas funções que passaram a ser exigidas das licitações e dos contratos públicos.
A partir da entrada em vigor da nova Lei Geral de Licitações, a processualidade e os mecanismos de planejamento e controle entre estado e mercado foram aperfeiçoados. Como se fosse a versão atualizada de um aplicativo, é nítida a percepção de evolução da sistemática das licitações com a adequação dos modos de disputa, assim como com a melhora da experiência do usuário, seja estatal, seja privado, graças à uniformização dos procedimentos. Enfim, o “como licitar” restou modernizado.
A maior transformação contemporânea nos contratos administrativos, entretanto, surge como resposta a outra questão iniciada também por um pronome relativo: o “para que licitar”. Ela tem relação com a percepção das consequências indiretas e, porque não dizer, até então inesperadas da contratação pública. Também deriva da verificação do patamar acentuado e, portanto, crítico, que os contratos públicos passaram a exprimir nos últimos anos em relação ao PIB da nação.
A grande mudança decorre, sobretudo, da compreensão de que, para além de se obter um bem ou serviço para a administração ou conceder um serviço público, os contratos podem ser vocacionados, quando bem dirigidos, até mesmo a movimentar a economia, a levar benefícios diretos à determinadas pessoas ou até mesmo redistribuir a riqueza social, por meio de subsídios cruzados, por exemplo. Em última análise, trata-se da compreensão de que eles veiculam, queira-se ou não, políticas públicas. E isso muda tudo, desde o início, na própria concepção do objeto a ser licitado pela administração.
Não há mais margem de liberdade entre a aquisição de móveis de madeira certificada ou não, entre equipamentos que racionalizem o consumo de energia ou não, entre veículos menos poluentes ou não. Por implicação do dever de eficiência, a nova Lei de Licitações previu a necessidade do aproveitamento de potencial pouco explorado das licitações e contratações públicas, que é o alcance de efeitos que transcendem o objeto pretendido pelo contrato, isto é, a obtenção, na máxima medida possível, também das externalidades positivas.
Hoje, o objeto licitado não é mais apenas o objeto licitado. É o objeto licitado, é claro, mas devidamente acompanhado de suas externalidades, as quais, sempre que for possível e viável, internalizadas no próprio contrato.
Incorporação de políticas públicas aos editais
Essas externalidades, quando positivas, são chamadas de objetivos acessórios, secundários e/ou horizontais da contratação pública. Elas abrem a oportunidade para que o Estado desenvolva, na própria relação contratual, ações e políticas públicas que, até então, estavam excluídas do objeto e do escopo do contrato e, portanto, sob o rol de funções desempenhadas por meio de outros instrumentos administrativos, como a prestação direta de serviços públicos ou políticas públicas executadas por seus servidores.
O estímulo à inovação e a determinada atividade econômica privada, o incentivo à competividade em determinados setores, a minimização de assimetrias regionais, a resolução de desafios sociais e o benefício a minorias excluídas são alguns exemplos das políticas públicas hoje veiculadas regularmente em contratos administrativos.
Ao lado de diversos outros fins, essas políticas públicas estão incorporadas em todos os editais, dos mais simples destinados à aquisição de insumos para a máquina administrativa até as modelagens abrangentes voltadas à estruturação e concessão de infraestruturas complexas, como portos, aeroportos, rodovias, ferrovias, saneamento, políticas de mobilidade urbana e planos de urbanização.
A contratação pública pode se apresentar como uma ferramenta útil para a realização de múltiplas políticas públicas nas quais os custos a elas associados se apresentem inferiores aos comparados a outros modos de implantação, como a concessão direta de auxílios e subvenções, ou a prestação direta. Além disso, a materialização destas políticas através da contratação pública, quando já autorizada por lei geral, pode dispensar a necessidade de autorização legislativa específica, necessária pela adoção de medidas similares, como a alteração da legislação fiscal, por exemplo.
De outro lado, em pouco anos, fruto do casuísmo e voluntarismo típico do legislativo brasileiro, já se verificam dezenas de fins acessórios aos objetos licitados em praticamente todas as áreas que demandam do Estado algum nível de proteção ou fomento, como infância e juventude, PcDs, gênero e raça, consumidor, família, saúde, microempresas e empresas de pequeno porte, meio ambiente, além da agricultura, indústria nacional, previdência, pesquisa científica e inovação tecnológica, energia, mobilidade urbana etc.
Todas são demandas legítimas e que guardam fundamento na Constituição. No entanto, a incorporação descomedida de políticas públicas que veiculam tais pretensões (e boas ou más preferências estatais) no regime de contratação pública podem inviabilizar a própria contratação. A incorporação de fins acessórios ao objeto licitado conduz invariavelmente à majoração de custos e, por consequência, à mitigação do best value for money contratual.
Aí a pergunta que se apresenta é: essas políticas públicas acessórias devem ser implementadas mesmo que atenuem a eficiência econômica estrita do contrato? Em teoria, não. Cada comunidade, porém, precisa definir as prioridades e estabelecer os equilíbrios que entenda adequados entre as suas preocupações de eficiência e necessidades de justiça.
Em situações de subdesenvolvimento, aferidas pelo déficit de infraestruturas e pela desigualdade de renda, os objetivos sociais contidos na contratação pública podem propiciar resultados efetivos de equidade e incitar o desenvolvimento socioeconômico. Em última análise, o best social value poderá prevalecer. Nessa hipótese, a frase: quem licita não licita apenas o que licita poderá ser complementada por outra: quem licita não licita apenas com quem licita. Mas isso já é tema para um próximo texto.
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