Opinião

Necessidade de combate à litigância abusiva e efeitos práticos da Recomendação CNJ 159

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1 de dezembro de 2024, 17h18

Em 23 de outubro, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) editou a Recomendação nº 159, que dispõe acerca de medidas para identificação, tratamento e prevenção da litigância abusiva ou predatória.

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Papéis, processos, pilha de documentos, contratos, acordos, lentidão da Justiça, morosidade

A litigância abusiva se tornou uma prática cada vez mais comum no sistema judiciário brasileiro, sobretudo em demandas consumeristas, em sua grande parte ajuizadas contra instituições financeiras, empresas de telefonia, concessionárias de energia elétrica, companhias aéreas e grandes varejistas.

Desse modo, o presente artigo tem como objetivo analisar a norma em questão e os impactos a serem por ela causados, principalmente na forma como tal preceito auxiliará o Poder Judiciário e os jurisdicionados no combate a essa prática.

O CNJ, diante da preocupação com o fenômeno da litigância predatória, editou importantes normas. Dentre elas, destaca-se, inicialmente, a Resolução CNJ nº 349/2020, que criou o Centro de Inteligência do Poder Judiciário (CIPJ) e a rede de Centros de Inteligência do Poder Judiciário, com o intuito de “identificar e propor tratamento adequado de demandas estratégicas ou repetitivas e de massa no Poder Judiciário brasileiro.

Além disso, foram editadas a Recomendação CNJ nº 127/2022, que sugere aos tribunais a adoção de cautelas que visem a coibir a judicialização predatória que possa acarretar o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão, e a Recomendação CNJ nº 129/2022, que recomenda aos tribunais a adoção de cautelas visando evitar o abuso do direito de demandar que possa comprometer os projetos de infraestrutura qualificados pelo programa de parcerias de investimentos (PPI), previsto na Lei nº 13.334/2016.

Já a Recomendação CNJ nº 159/2024 tratou, de forma mais aprofundada, o tema e trouxe consigo três anexos, os quais apresentam uma lista exemplificativa de 20 condutas processuais potencialmente abusivas, 17 medidas judiciais a serem adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva e 8 medidas administrativas recomendadas aos tribunais.

Litigância abusiva

A norma em comento materializa o conceito dessa prática e define a litigância abusiva como “o desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, inclusive no polo passivo, comprometendo a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça”.

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Em complemento, ela classifica a litigância abusiva como gênero, de modo que “devem ser consideradas como espécies as condutas ou demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras, as quais, conforme sua extensão e impactos, podem constituir litigância predatória”.

Dentre as condutas apresentadas na lista exemplificativa, as que mais são verificadas na prática são: o requerimento de gratuidade de justiça sem fundamento; a desistência de ações após o indeferimento de medidas liminares ou da intimação para juntar documentos comprobatórios; o ajuizamento de ações em comarca distinta da parte autora, da parte ré ou do local do fato controvertido; a fragmentação de ações; a distribuição de ações com petições iniciais genéricas ou por padrão, sem a particularização dos fatos do caso concreto; as ações com pedidos vagos, hipotéticos ou alternativos, que não guardam relação lógica com a causa de pedir; o ajuizamento de ações sem menção a processos anteriores extintos, cujos fatos já foram ali analisados; o aforamento de demandas desacompanhadas de documentos comprobatórios essenciais; a existência de grande volume de processos sob o patrocínio dos mesmos profissionais, cuja sede de atuação ou o domicílio da parte são diversos do foro onde propostas; e juntada de instrumento de cessão do direito de demandar ou de eventual e futuro crédito a ser obtido com a ação judicial, especialmente quando conjugada com outros indícios de litigância abusiva.

Já em relação às medidas judiciais a serem adotadas pelos magistrados, importante mencionar: a necessidade de análise criteriosa das ações; a realização de diligências, inclusive probatórias, a fim de averiguar os requisitos da ação; a ponderação criteriosa de requerimentos de inversão do ônus da prova, inclusive nas demandas envolvendo relações de consumo; o julgamento conjunto de ações com relação entre si; a adoção de medidas para evitar o fracionamento de ações e a notificação da OAB.

Recomendações aos tribunais

De outro lado, as medidas recomendadas aos tribunais estão relacionadas, sobretudo, à implementação de sistemas destinados ao monitoramento e tratamento de dados para a criação de relatórios, painéis de informação, consolidação de dados e integração de sistemas e informações entre os tribunais do país, com o intuito de identificar de forma mais eficaz os indícios de litigância predatória, alertar os magistrados e subsidiar o planejamento e as ações preventivas, de correção e avaliação das medidas adotadas no âmbito das unidades e tribunais.

Entende-se que a evolução da tratativa dada à referida prática atentatória à Justiça evidencia o amadurecimento do CNJ quanto ao tema e a relevância que lhe foi atribuída, sendo certo que o órgão de controle do Judiciário explicita que não se devem medir esforços para se rechaçar a prática de litigância predatória.

Desse modo, a Recomendação CNJ nº 159/2024 revela um grande avanço no combate à litigância predatória, uma vez que define de forma concreta o fenômeno, mitiga eventuais dúvidas dos magistrados em relação ao conceito e às suas características, além de dispor sobre medidas a serem adotadas para a sua correta identificação e repressão.

A norma tende a ser uma baliza para o Poder Judiciário na identificação e posterior adoção das medidas cabíveis em face dos responsáveis por esse uso abusivo e desvirtuado do Poder Judiciário.

Além disso, importante destacar que o efeito prático da aplicação dessa norma, à medida que os tribunais adotem as suas recomendações, será uma redução substancial no número de processos e, consequentemente, de custos para o Poder Judiciário e para as partes que são vítimas dessa prática.

Juiz avalia existência de litigância predatória

Outrossim, muitas condutas previstas na norma, se isoladamente consideradas, podem não configurar litigância predatória, de modo que caberá ao magistrado avaliar a existência ou não dos indícios e aplicar as medidas cabíveis, sob pena de violar o direito fundamental de acesso à Justiça.

Nesse sentido, em que pese a existência de diversas previsões na norma do CNJ, sobretudo por não se tratar de rol exaustivo, ainda caberá aos julgadores avaliar as condutas das partes e aplicar as medidas processuais necessárias.

Ainda, a norma tende a promover a proteção aos princípios constitucionais do acesso à justiça (artigos 5º, XXXV, da Constituição e 3º do CPC) e da celeridade processual (artigo 5º, LXXVIII, da Constituição), além do princípio da boa-fé processual (artigo 5º do CPC), e a combater o enriquecimento ilícito dos litigantes de má-fé, na medida em que deixarão de obter proveito econômico indevido com as demandas caracterizadas como abusivas.

Por fim, importante ressaltar a necessidade de que o Poder Judiciário tome medidas em conjunto com as partes, advogados e outras instituições, tais como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Defensoria Pública, o Ministério Público, as Procuradorias Estaduais e outras eventualmente responsáveis por defender o direito constitucional de acesso à Justiça, a fim de combater a litigância predatória.

Portanto, a edição da Recomendação CNJ nº 159/2024 é um avanço e uma conquista tanto para o Poder Judiciário quanto para os jurisdicionados, sobretudo para aqueles que mais sofrem os nefastos efeitos da judicialização predatória em massa (instituições financeiras, empresas de telefonia, concessionárias de energia elétrica, companhias aéreas e grandes varejistas), que despendem bilhões de reais por ano com o pagamento de indenizações advindas de ações abusivas.

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