Opinião

O direito ao esquecimento em uma perspectiva histórica

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30 de agosto de 2024, 7h02

A origem do direito ao esquecimento remonta ao campo da ciências criminais, como uma possibilidade de o indivíduo condenado, que já cumpriu uma determinada penalidade, ter o seu passado deixado para trás, longe de qualquer categorização atrelada a fatos pretéritos, com o objetivo de alcançar um espaço novamente na sociedade. De forma análoga, haja vista que esse entendimento não se esgota da esfera do Direito Penal, é possível observar no campo civil uma relação estreita com os direitos inerentes à personalidade humana e os seus desdobramentos, como será analisado a seguir.

Henri Désiré Landru (1869-1922)

No viés internacional europeu, na década de 1960, utilizou-se pela primeira vez na França a ideia do que viria a ser o chamado “direito ao esquecimento” na seara civil, especificamente na indústria cinematográfica, ao expor a antiga amante do serial killer Henri Désiré Landru [1]. No documentário, não foi autorizada a publicação do nome e das vivências amorosas. Diante do inconformismo da pessoa exposta, com base na violação à honra e à imagem, houve o pedido de reconhecimento do pleito indenizatório pela corte francesa, porém o mesmo não foi acolhido.

Em um segundo momento, após mais de uma década, outro caso semelhante envolveu um sobrevivente da 2ª Guerra Mundial, o qual publicou um livro detalhando suas vivências e dificuldades enfrentadas pela ocupação nazista, sendo também alvo de discussão acerca da aplicação do esquecimento pelos franceses. Em uma mesma ótica, sob o argumento de que a narrativa expositiva foi licitamente veiculada e de que se tratava de um acontecimento de interesse público que gerou comoção nacional, não foi acolhido novamente o pedido de retirada da veiculação. Ou seja, até o momento, predominava a posição contrária, pressupondo que as publicações não teriam relação direta com os direitos da personalidade.

Precedente alemão

Diferentemente da posição acima, é importante abordar a notoriedade do “Caso Lebach”, proferido pelo Tribunal Constitucional Alemão, em 1973, utilizado como fundamento para julgamentos posteriores. A história envolve a morte de quatro soldados assassinados e um quinto ferido enquanto guardavam um depósito de munição. No julgamento, ocorreu a condenação dos principais acusados à prisão perpétua e à reclusão, vez que ajudaram no pleito criminoso. Após quatro anos do caso, uma grande emissora televisiva da Alemanha construiu um documentário sobre a narrativa em questão, incluindo informações íntimas dos acusados.

Com a divulgação da referida intimidade, os alvos entenderam tratar-se de uma nítida violação pessoal, visto que dificultaria o reingresso e aceitação no seio da sociedade. Assim, um dos acusados ingressou com uma ação pleiteando que a transmissão do programa não ocorresse, o que conduziu a uma reflexão bastante pertinente à decisão proferida pelo juízo.

Nesse contexto, por um lado destacava-se a análise do instrumento de liberdade de imprensa informacional, prevista na revolução dos meios de comunicação, a chamada 3ª Revolução Industrial. Em outra face, uma nítida contraposição com a utilização de informações pessoais de forma lesiva aos direitos personalíssimos. Fato é que a corte alemã incorporou a última premissa, em prol dos direitos da pessoa humana, restringindo a circulação do nome e da aparência física dos sujeitos envolvidos no documentário, o que resguardaria os efeitos de uma possível transmissão que gerasse a prorrogação do ódio ao longo das futuras gerações.

Spacca

Nota-se que, apesar de o julgamento não ter feito referência direta à expressão “direito ao esquecimento”, esse clássico da jurisprudência alemã foi usado como paradigma, sendo certo que as decisões posteriores passaram a observar a possibilidade da deliberação, a fim de garantir o monitoramento pelo cidadão sobre os próprios dados pessoais, alvos de uma posterior veiculação contrária aos seus interesses. Dessa forma, entendeu-se que diante de um caso concreto, caberia analisar a colisão de bens jurídicos tutelados, sua importância, e consequentemente, a respectiva proteção.

Jurisprudência norte-americana

Em uma linha diferente do pensamento europeu, a vertente libertária clássica espelhada na jurisprudência americana prevê que a autonomia da vontade teria preferência frente à privacidade e à imagem.  Apesar desse viés libertário defendido pelos americanos, ocorreram uma série de debates nos Estados Unidos, no que tange ao conceito de privacidade e de reputação.

Em uma decisão da corte julgadora, ao analisar a exposição decorrente do filme The Red Kimono (1925), o direito ao esquecimento foi considerado em sua literalidade, diante insatisfação de uma cidadã em ter sua imagem perpetuada, o que seria contrário aos valores morais vigentes à época, tendo em vista o enredo tratar diretamente sobre prostituição. A partir desse julgado, iniciou-se uma prévia análise dedutiva sobre os riscos ao prosseguimento natural da vida, ao mesmo tempo, ainda seguindo parâmetros de uma interpretação essencialmente mais inclinada a valores liberais de perpetuação da informação.

Ou seja, como titular de direitos e obrigações, cabe ao indivíduo a possibilidade de discutir sobre fatos pretéritos e permitir que situações passadas prejudiciais à sua honra, imagem e privacidade, ainda que verídicas, não sejam reexibidas pela ampla rede ampla informacional. Assim, emerge a viabilidade de o ser humano, caracterizado como um ser social, em constante transformação, expressar-se de novas formas e por meio de novos comportamentos, rompendo com laços antigos que não traduzem mais a conjuntura presente.

Portanto, diante de muitos dados pessoais à disposição na internet, é como se houvesse uma necessidade de quebrar padrões rígidos que não versam mais sobre o ser, a partir do direito ao esquecimento para garantir os institutos da personalidade.

Caso Xuxa

O caso que inaugurou a ideia do direito ao esquecimento no Brasil envolve a apresentadora Maria da Graça Xuxa Meneghel, que teve seu nome associado a uma cena do filme Amor Estranho Amor (1982), na qual havia uma suposta prática libidinosa com um menor de idade. No caso, o provedor de pesquisa Google vinculou a personagem do filme — interpretada por Xuxa — à pessoa física da apresentadora, sem qualquer premissa protetiva à artista. Inconformada, ela ingressou com ação judicial em 2012. O caso foi julgado pelos tribunais superiores, tendo sido afastada a aplicação do direito ao esquecimento, permitindo a perpetuação das cenas.

De acordo com a decisão da ministra Nancy Andrighi, do STJ, os provedores de pesquisa não são responsáveis pelo conteúdo disponível na rede. Se a página detém conteúdo ofensivo, cabe à parte buscar a retirada desse conteúdo do site, não justificando a transferência da responsabilidade ao provedor de pesquisa. Sob essa visão, o Google é caracterizado como um  provedor de pesquisa, não sendo objeto de uma filtragem detalhada antecipada do objeto divulgado, cabendo primeiramente a responsabilidade aos responsáveis pela divulgação do conteúdo de cunho prejudicial.

Casos Candelária e Aída Curi

No ano de 2013, os tribunais brasileiros analisaram dois casos emblemáticos que repercutiram na mídia e que foram tema de debates acerca da aplicação do instituto do esquecimento: Chacina da Candelária e Aída Curi, respectivamente.

De modo semelhante ao julgamento do caso Lebach, na Alemanha, o caso Chacina da Candelária, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, também repercutiu no âmbito criminal. O autor da demanda ingressou em uma ação contra a emissora de televisão que havia exposto o nome do mesmo, por entender que aquele fato repercutido afetava diretamente a vida privada, a segurança e o bem-estar. Somente no âmbito recursal foi compreendida a demanda, porém. Nessa fase, foi feita a ponderação sobre a exposição indevida e a liberdade midiática prejudicial associando determinadas pessoas ao caso por décadas, e por fim houve a citação ao referido direito ao esquecimento.

Já o caso Aída Curi envolveu a violência seguida de morte da jovem Aída Jacob Curi, que possuía 18 anos na década de 50, quando foi jogada de um prédio localizado no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Assim como no caso da chacina, no ingresso da ação não havia um pedido quanto ao reconhecimento de tal direito.

Na realidade, alegou-se uma afronta aos direitos individuais, no que tange à divulgação irrestrita dos fatos pela mídia, resultando na necessidade de aplicação do instituto do esquecimento. A grande repercussão no Judiciário ultrapassou limites razoáveis, tendo em vista a exibição do caso pela TV, o que resgatava memórias negativas, resultado da crueldade do feminicídio, por meio da exposição de fotos não autorizadas pela família da vítima.

Decisão do TJ-UE e o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados

Sob essa ótica evolutiva global, o direito ao esquecimento foi aplicado sob a égide informacional em uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ-UE), publicada em 2014. Trata-se de uma ação demandada, em 2010, pelo cidadão espanhol Mario Costeja González, solicitando a um portal de notícias e ao Google a remoção de suas informações, as quais noticiavam frequentemente acerca do leilão de bens pessoais, o que trazia uma violação à imagem, atrelada a de um indivíduo que ainda possui dívidas e recusa-se ao pagamento, algo extremamente negativo no viés econômico.

O autor argumentava que, uma vez que o processo de execução já estava encerrado já algum tempo, não haviam motivos para a utilização e tratamento desses aspectos sensíveis, inerentes à vida privada, pela rede ampla de computadores.

Em seguimento ao paradigma de evolução, pelo viés desigual dos contornos europeus acima mencionados, nota-se uma necessidade de uniformização no tratamento de dados pessoais. Em 2018, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) em busca de universalização, consolidou institutos legislativos protetivos em toda a União Europeia, impedidos que sejam utilizados sem a devida autorização. A privacidade emerge como um direito indubitável ao prosseguimento de uma vida harmônica, evidenciando uma clara tendência para o instituto do direito ao esquecimento no mundo contemporâneo.

Entendimento do STJ e a Tese 786 do STF

Assim como ocorreu na Europa, no que tange à RGPD, em maio de 2018, no Brasil, foi reconhecida a premissa protetiva pelo STJ, ainda que não seja aplicado efetivamente no ordenamento pátrio o direito ao esquecimento. Caso seja verificada alguma oposição pelo titular no conteúdo veiculado pelos meios digitais, aplica-se o fundamento da desindexação que retira dos índices dos provedores de busca, dificultando o acesso direto, diferentemente do esquecimento que entende pela remoção dos catálogos. Logo, o instituto da desindexação é compreendido como algo mais genérico, quando houver uma irregularidade que seja intensa e visivelmente prejudicial ao prosseguimento da vida.

No Brasil, foi originada a Tese 786 pelo STF, quando estava em pauta o reconhecimento ou não na esfera cível do direito ao esquecimento, em ações movidas pela vítima ou por sua família. É importante frisar que essa decisão é capaz de vincular o Poder Judiciário em um todo, mas não impede uma mudança do entendimento firmado por tal instância superior. Entretanto, no ano de 2024, no âmbito criminal, em uma decisão do STJ, o ministro Antonio Saldanha Palheiro entendeu pela não aplicação do antecedente criminal do sujeito, uma vez que não traduzia a perspectiva atual. Dessa forma, a decisão aplicou o entendimento adotado na 6ª Turma preconiza que [2]:

“Quando os registros da folha de antecedentes do réu são muito antigos, como no presente caso, admite-se o afastamento de sua análise desfavorável, em aplicação à teoria do direito ao esquecimento. Não se pode tornar perpétua a valoração negativa dos antecedentes, nem perenizar o estigma de criminoso para fins de aplicação da reprimenda, pois a transitoriedade é consectário natural da ordem das coisas. Se o transcurso do tempo impede que condenações anteriores configurem reincidência, esse mesmo fundamento – o lapso temporal – deve ser sopesado na análise das condenações geradoras, em tese, de maus antecedentes.” 

Conclusão

Sabe-se que o Direito ao esquecimento é um instituto que permite ao indivíduo, titular de sua autonomia privada, a possibilidade de administrar quais dados sobre a sua personalidade possam ser divulgados nos meios de informação. Assim, em consonância com a atual conjuntura brasileira, conforme previsão do artigo 21 do Código Civil de 2002, “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Ademais, é possível observar que a Carta Cidadã de 1988 abrange diversos princípios oriundos da dignidade da pessoa humana, os quais podem ser utilizados para basear a necessidade do tribunal entender pelo reconhecimento desse Direito.

 


[1] FRAJHOF, Isabella. O Direito ao Esquecimento na Internet. Conceito, aplicação e controvérsias. Rio de Janeiro: abril, 2019.  Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/36944/36944.PDF Acesso em 14 abr. 2024

MARTINS, Guilherme. O direito ao esquecimento na sociedade da informação. Revista dos Tribunais, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC 693.127/SP. Relator:Antonio Saldanha Pinheiro. 6ª Turma. Disponível em :https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1280323722/decisao-monocratica-1280323857Diário de Justriça Eletônico,  São Paulo, 17 dez. 2021. Acesso em 14 de abri. 2024.

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