Opinião

Responsabilidade civil do Estado por pane elétrica em hospital

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23 de agosto de 2024, 18h35

Em janeiro de 2024, uma pane elétrica gerou fumaça no Hospital São Luiz do Morumbi, São Paulo. De acordo com o relatado pelo corpo de bombeiros na época, a situação foi ocasionada por um equipamento elétrico do prédio hospitalar [1].

Em março do mesmo ano, a Santa Casa de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, sofreu um “apagão”. Segundo a notícia, foi a quarta vez que a situação aconteceu neste ano. Em janeiro, o prédio registrou três desligamentos seguidos [2].

Ainda em março, um “apagão” na região central de São Paulo deixou a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo sem energia elétrica. O hospital continuou funcionando à base de geradores [3].

Em junho, três pacientes morreram sem oxigênio após pane em hospital de Santo André, no ABC paulista. O governo disse que estava apurando o que aconteceu e que os funcionários responsáveis foram afastados [4].

Ainda em junho, um “apagão” no Hospital Estadual Otávio de Freitas, Recife, fez com que o Estado transferisse pacientes para outras unidades. Na noite do dia anterior ao ocorrido, um problema na subestação de energia da unidade de saúde provocou o desligamento de todo o sistema [5].

Questiona-se a responsabilidade civil do Estado em panes elétricas em unidades públicas de saúde, especialmente quando há mortes.

Ainda, questiona-se a responsabilização do Estado por uma pane elétricas em unidades particulares de saúde.

1. Da responsabilidade civil

1.1. Dos pressupostos da responsabilidade

Itaeres Pereira/Divulgação

Em princípio, qualquer atividade que acarrete prejuízo pode gerar a responsabilidade ou o dever de indenizar. A obrigação de indenizar surge através de fatores que são denominados pressupostos de admissibilidade. Sendo assim, o dever de indenização surge de um ato ilícito somente quando constar tais pressupostos (Freitas; Verner, 2024).

A responsabilidade civil objetiva está prevista no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil – CC, e possui como pressupostos o ato ilícito, o nexo causal e o dano (Suris; Dias, 2024).

Já a responsabilidade subjetiva está prevista nos artigos 927 e 186 do CC, estando os pressupostos estabelecidos no artigo 186 do CC.

No tema em análise, a ação/omissão seria a falta do fornecimento de energia; o dano seria o prejuízo causado à vítima (exemplo a morte) e o nexo de causalidade seria a falta de energia em determinado equipamento que causou danos à vítima.

1.2 Da responsabilidade civil em hospital

Para facilitar a identificação, será adotado o termo “hospital” como qualquer unidade de saúde, seja ela pública ou privada.

Quando se trata de energia elétrica em hospitais, vários desdobramentos na responsabilidade civil podem ser analisados. Equipamentos cruciais podem deixar de funcionar por conta de falta de fornecimento de energia e o gerador de energia pode não estar funcionando ou não poder funcionar devido a riscos de incêndio, por exemplo.

Aqui, abrem-se dois caminhos: (1) responsabilidade civil do Estado por pane elétrica em hospital público e (2) responsabilidade civil do Estado por pane elétrica em hospital particular [desdobramentos na teoria do risco integral, nas concessionárias de serviço público e/ou na responsabilidade objetiva].

1.2.1. Da responsabilidade civil do estado em pane elétrica em hospital público

A responsabilidade objetiva do Estado (artigo 37, § 6°, da CF) é o ponto de partida para possibilitar a obrigação estatal de reparar ou indenizar os da­nos causados às vítimas pela prestação deficiente de serviços de saúde na ocorrência de pane elétrica.

Se o dano é resultante de omissão estatal, a doutrina e a jurisprudência divergem. Alguns entendem pela responsabi­lidade objetiva e outros, somente se demonstrada a culpa do serviço (Gomes, 2009).

Em tese, o Estado responderia pelos danos causados em consequência do funcionamento anormal de seus serviços de saúde, excluindo essa res­ponsabilidade por meio de prova da regularidade do atendimento médico-hospita­lar prestado, decorrendo o resultado de fato inevitável da natureza (Gomes, 2009).

Spacca

Suponhamos que, em um dia de chuva intensa, um poste de energia caia, deixando um hospital público de médio porte sem energia. O gerador de eletricidade não pôde ser ligado devido à inundação do subsolo do hospital, mas depois uma perícia confirmou que havia um problema técnico no equipamento e ele não teria funcionado independentemente da chuva. Caso uma pessoa venha a falecer por uma parada cardíaca durante uma cirurgia de emergência, sem possibilidade de uso de equipamentos elétricos, constatado ainda que o desfibrilador não foi higienizado e devolvido a tempo ao local designado, há grande possibilidade de responsabilizar o Estado.

No caso hipotético relatado, houve diversos acontecimentos que podem ser entendidos como causadores do dever de indenizar do Estado.

Caso houvesse um processo, haveria total possibilidade de o ente público pagar indenização à família da vítima. Adota-se aqui a responsabilidade objetiva, baseada na teoria do risco administrativo.

Em um determinado caso real em Santo André (SP) durante a pandemia de Covid-19, o Estado foi responsabilizado pela pane de energia elétrica que interrompeu o fornecimento de oxigênio aos pacientes, levando à morte de todos que respiravam por aparelho naquele momento.

Na indenização de R$ 150 mil para os familiares de uma vítima, foram considerados a extensão do dano, a capacidade econômica das partes, o grau de culpabilidade e o fator de desestímulo (Família, 2022).

A indenização não levou em consideração a gravidade do estado de saúde da vítima. Se o seu pulmão já estava bastante comprometido ou se tinha qualquer outra comorbidade. Sendo irrelevante, inclusive, se ela se encontrava entre a vida e a morte. O fato é que a vítima estava viva em um instante, e, no momento seguinte, veio a falecer em razão de falha no sistema do hospital (Família, 2022).

Em casos assim, entende-se pela necessidade de responsabilizar o Estado pela morte da vítima após a pane elétrica.

Ainda, em casos de omissão genérica, pode ser aplicada a responsabilidade subjetiva.  Nesses casos, a inércia do Estado não se apresenta como causa direta, mas concorre para o resultado, havendo a necessidade de se provar que uma ação teria evitado o evento danoso.

São casos em que o não agir lesou o particular de alguma forma, pode-se ter como exemplo a não transferência de pacientes por parte da administração pública na falta de energia em um hospital, não tendo sido providenciado gerador elétrico, e, por conta da inércia, ocorre o falecimento de pacientes que necessitavam de oxigênio (concentrador de oxigênio estacionário por exemplo).

1.2.2. Da responsabilidade civil do estado em pane elétrica em hospital particular

Como a energia elétrica em muitos Estados é fornecida por concessionária de serviço público, para responsabilizar um hospital por dano causado por pane na energia, considera-se responsabilizar a própria concessionária ou o Estado (tópico a seguir).

Em outras palavras, se a intenção é responsabilizar civilmente por pane elétrica, há que se responsabilizar quem fornece a energia, não a entidade particular, a menos que se trate de dano facilmente verificado por gerador elétrico, por exemplo, do ente particular.

Assim, se um paciente em hospital particular vier a falecer devido a problemas com o gerador elétrico relacionados, por exemplo, com a falta de manutenção do equipamento, entende-se pela responsabilização do ente particular, por se tratar de problema técnico do sistema particular.

1.3. Da concessionária de energia elétrica

Há serviços que o Estado escolhe atuar não diretamente, delegando o seu cumprimento aos particulares, que os executam em nome deles, mas no interesse público, devendo, portanto, ser atribuídos como próprios.

Conforme o tipo de serviço que é fornecido e da situação que ocorre, a responsabilidade pode ser subsidiária ou solidária.

Na responsabilidade subsidiária, ocorrendo interrupções inesperadas no fornecimento, dificuldades das empresas privadas para restabelecer o serviço ou danos resultados da negligência no serviço prestado, o Estado responde civilmente por ser o titular do fornecimento do serviço, pois, nesses casos, a lesão ao consumidor é consequência da atividade estatal (outorga de serviços públicos a terceiros) (Estado, 2023).

Na objetiva, caso ocorra interrupção súbita e extensiva do fornecimento de energia, haverá a teoria da “falta do serviço”, criada pela doutrina francesa (Andrade, 2023). Essa teoria explica que, quando ocorre a ausência da prestação do serviço “essencial”, surge a possibilidade de indenizar pela inexistência, má prestação ou retardamento do serviço.

Posto isso, temos que a responsabilidade solidária ou subsidiária do Estado na concessão de serviço público traduz que os contratos respectivos apenas transferem ao particular a execução do serviço e eventual rendimento, como se o próprio Estado prestasse ao diretamente o serviço ao consumidor (Mello, 2020).

Em casos de fornecimento de água e energia, por exemplo, o STJ já aplicou a teoria do “risco administrativo do negócio” (Estado, 2023). Esse risco é assumido pela empresa privada ao licitar determinada atividade com o poder público, comprometendo-se a ressarcir eventuais danos provenientes dos “perigos inerentes a sua atividade ou profissão”.

1.4. Da exclusão da responsabilização estatal

O Direito Administrativo brasileiro adota a teoria do risco administrativo, que independe de dolo ou culpa, contudo o Estado não é obrigado a responder por fato que não deu causa, por esse motivo são admissíveis as denominadas excludentes da responsabilidade civil estatal.

A força maior pode ser entendida como um acontecimento involuntário, imprevisível e incontrolável, que rompe o nexo de causalidade entre a ação estatal e o prejuízo sofrido pelo particular. É admissível, por exemplo, a imprevista falta de energia elétrica, durante uma cirurgia, causada por tempestade (fato da natureza) (Federighi, 2021).

No caso fortuito, o dano é decorrente de ato humano ou de falha da administração. Temos como exemplo o rompimento de adutora, causando a falta de água no nosocômio e a pura e simples falta de medicamentos específicos, por descaso da administração.

A força maior exclui a responsabilidade estatal; o caso fortuito, contudo, não a exclui.

Em certos casos, como em danos ambientais, não há a possibilidade de se afastar a responsabilidade solidária do Estado mesmo havendo concessão integral dos serviços públicos. Já em outros casos, o Estado pode ser responsabilizado de forma subsidiária, necessitando esgotar previamente as tentativas de indenização pela concessionária. Assim, Estado poderá ser obrigado a ressarcir os danos se a concessionária não puder arcar (Silva; Lima, 2024).

2. Considerações finais

A responsabilidade civil do Estado serve para indenizar eventuais danos causados pelo ente público ou que a ele possam ser responsabilizados, ainda que não tenho causado diretamente o dano.

Obrigar o Estado a indenizar pode torná-lo um segurador universal. Isso pode ensejar certa vantagem ao setor privado de não responder única e exclusivamente ao deixar de fornecer energia elétrica, pela razão que seja.

Se toda pane elétrica ocorrida em hospital for considerada responsabilidade civil do Estado, não haverá margem para limitar essa responsabilidade. Em outras palavras, havendo morte, indeniza.

Como indenizar uma vítima que morreu por uma pane elétrica em um hospital público? Talvez a resposta de alguns seja pela não indenização, pelo infortúnio da situação. Mas como não indenizar a família de quem estava vivo um segundo atrás e veio a falecer por conta de falha no sistema?

Não se pode negar a possibilidade de prejuízo financeiro a ser causado aos cofres público se o entendimento da responsabilização se tornar frequente e praxe jurídica, retoma-se aqui a ideia da Administração Pública como seguradora universal [6].

Em outra linha, há a vítima como duplamente sofredora: suposta inação do Estado e falecimento. Ao haver uma sentença procedente, há outra batalha a ser vencida. A mora do judiciário e o longo tempo do cumprimento de sentença fazem afastar o peso da responsabilidade do causador do dano, entendimento esse que serve para qualquer processo.

Quanto mais tempo houver entre o dano e a responsabilização (entendida como o efetivo pagamento da indenização), menor aos olhos do causador esse dano será, porque houve um lapso temporal, um esquecimento inerente do fato. A vítima falecida não tem consciência, mas seus familiares relembram o luto dia após dia.

 


Referências

ANDRADE, Vander. A responsabilidade civil das concessionárias de serviço público em decorrência da falta de fornecimento de energia elétrica e a teoria do “faute du service”. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/396774/responsabilidade-concessionarias-da-falta-de-energia-eletrica. Acesso em 06/08/2024.

ESTADO também é responsabilizado por falhas de concessionárias na jurisprudência do STJ. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-nov-13/estado-tambem-e-responsabilizado-por-falhas-de-concessionarias-na-jurisprudencia-do-stj/ Acesso em 06/08/2024

FAMÍLIA de paciente que morreu após pane em aparelho de oxigênio será indenizada. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-09/familia-paciente-morreu-pane-oxigenio-indenizada/. Acesso em 05/08/2024.

FEDERIGHI, Wanderley José. Apontamentos sobre a responsabilidade civil do Estado no fornecimento de serviços médicos. Disponível em https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/CadernosJuridicos/cj_n58_11_apontamentos%20sobre%20a%20responsabilidade%20civil%20do%20estado_2p.pdf?d=637605062638267978. Acesso em 4/8/2024.

FREITAS, Lucas Eduardo A; VERNER, Reinaldo Laviola. Responsabilidade civil por erro médico: implicações jurídicas entre a objetividade e a subjetividade. Revista Vox, [S. l.], n. 19, p. 120–141, 2024. Disponível em: https://www.fadileste.edu.br/revistavox/index.php/revistavox/article/view/98. Acesso em 07/08/2024.

MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Natureza Jurídica da Concessão de Serviço Público. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura | RDAI, São Paulo: Thomson Reuters | Livraria RT, v. 4, n. 12, p. 403–442, 2020. Disponível em: https://rdai.com.br/index.php/rdai/article/view/247. Acesso em 06/08/2024.

SILVA, Artenira da Silva e; LIMA, Leonardo Maciel. Responsabilidade civil do Estado na manutenção do abastecimento de água durante a pandemia da Covid-19. Revista Videre, 16(34), 227–248.

SURIS, Jéssica; DIAS, Ádamo Brasil. Uma análise crítica acerca do regime de responsabilidade civil dos agentes de tratamento da lei geral de proteção de dados. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 1, n. 34, p. 286–305, 2024. Disponível em: https://revistadpers.emnuvens.com.br/defensoria/article/view/643. Acesso em: 13/08/2024.

[1] Para a notícia completa, acessar https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/01/11/pane-eletrica-causa-fumaca-no-hospital-sao-luiz-do-morumbi-e-pacientes-tem-de-ser-transferidos.htm. Acesso em 04/08/2024.

[2] Para a notícia completa, acessar https://www.campograndenews.com.br/cidades/capital/pela-4a-vez-em-apenas-dois-meses-santa-casa-fica-sem-energia. Acesso em 04/08/2024.

[3] Para a notícia completa, acessar https://www.metropoles.com/sao-paulo/santa-casa-funciona-a-base-de-gerador-apos-apagao-da-enel-no-centro. Acesso em 04/08/2024.

[4] Para a notícia completa, acessar https://tab.uol.com.br/videos/?id=tres-pacientes-morrem-sem-oxigenio-apos-pane-em-hospital-04024D193960CCC96326. Acesso em 04/08/2024.

[5] Para a notícia completa, acessar https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2024/06/pacientes-sao-transferidos-por-causa-de-apagao-no-hospital-otavio.html. Acesso em 04/08/2024.

[6] No julgamento do ARE n° 1.392.660 AgR-ED, o ministro Gilmar Mendes se manifestou sobre a União como seguradora universal no caso em que ficou reconhecida a responsabilidade civil do Estado para reparar cerca de 75 milhões da empresa sucroalcooleira Jalles Machado S.A., em razão de suposta má intervenção do Estado na economia. O processo estava em cumprimento de sentença, logo não foi analisado pelo STF neste julgamento se haveria ou não responsabilidade civil.

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