Opinião

Conversão de flagrante em preventiva quando MP pede cautelares alternativas

Autor

  • é servidor público mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) pós-graduado em Docência no Ensino Superior (Unicsul) graduado em Direito pelo UniCeub e ex-orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito do UniCeub.

    Ver todos os posts

22 de agosto de 2024, 19h33

A possibilidade de o juiz decretar a prisão preventiva quando o Ministério Público requerer a aplicação de medida cautelar mais branda ao autuado em flagrante apresenta sensível divergência de entendimento no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal.

Freepik
cadeia prisão habeas corpus soltura algema prisão preventiva

A prisão preventiva é medida cautelar amplamente utilizada com o objetivo declarado de resguardar a ordem pública ou econômica, por conveniência da instrução ou para assegurar a aplicação da lei penal. Sua decretação representa uma das mais contundentes restrições aos direitos fundamentais, devendo ser sempre bem motivada e justificada. Os contornos e hipóteses de cabimento do instituto devem ser muito bem definidos na lei e claramente interpretados pelo Judiciário.

O artigo 310 do Código de Processo Penal estabelece que após receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá promover audiência de custódia em até 24 horas, e, como uma das opções, deverá converter a prisão em flagrante em preventiva, desde que presentes os requisitos do artigo 312 do CPP e inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares alternativas.

A decretação da prisão preventiva pelo juiz demanda requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou representação da autoridade policial, como estabelece o artigo 311 do CPP.

Inclusive, a 3ª Seção do STJ exige pedido expresso e inequívoco do MP/querelante/assistente ou da autoridade policial dirigido ao juízo competente para a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, no contexto da audiência de custódia, sob pena de ilegitimidade do decreto prisional (RHC nº 131.263/GO, rel. ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª Seção, julgado em 24/2/2021).

Embora não haja dúvidas sobre a ilegalidade da conversão, de ofício, da prisão em flagrante em prisão preventiva, subsiste dissemelhante interpretação nas cortes superiores nos casos em que Ministério Público requer a aplicação de medida cautelar diferente da custódia.

Spacca

As Turmas divergem se a imposição da prisão caracteriza atuação de ofício, incompatível com a estrutura acusatória atualmente adotada pelo legislador (artigo 3º-A, do CPP). A controvérsia também envolve a incidência e a extensão do poder-dever geral de cautela do magistrado criminal, além da devida efetivação do princípio da tipicidade estrita da lei processual penal.

Dissonância interpretativa

No julgamento do AgRg nos EDcl no RHC nº 196.080/MG, interposto pelo Ministério Público Federal, os ministros da 5ª Turma do STJ, por unanimidade, entenderam que o agravado sofria constrangimento ilegal, pois identificaram que na audiência de custódia o Ministério Público requereu a concessão da liberdade provisória cumulada com cautelares mais brandas. A orientação está expressa na ementa do julgado datado de 18/6/2024, de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca:

“AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. CRIMES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AMEAÇA E LESÕES CORPORAIS. CRIMES COM PENAS EM ABSTRATO QUE NÃO SUPERAM, ISOLADAMENTE, 4 ANOS. RÉU PRIMÁRIO. NÃO HOUVE DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA. PEDIDO DE APLICAÇÃO DE MEDIDAS CAUTELARES MAIS BRANDAS. DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA. ATUAÇÃO DE OFÍCIO. ILEGALIDADE. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.1. O habeas corpus não pode ser utilizado como substitutivo de recurso próprio, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, com a exceção de quando a ilegalidade apontada é flagrante, hipótese em que se concede a ordem de ofício.2. No caso, as condutas imputadas não apresentam, isoladamente, penas máximas em abstrato superior a 4 anos, o paciente não ostenta condenação com trânsito em julgado e, ainda que tenham sido praticadas em um contexto de violência doméstica, não havia medidas protetivas de urgência decretadas. Ainda que possível, em tese, a decretação da medida extrema considerando a soma das penas dos dois tipos penais, a prisão é ilegal por ter sido decretada de ofício.3. Com efeito, nos termos do art. 311 do CPP, “Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”. No caso, embora o representante ministerial tenha postulado a aplicação de outras cautelares mais brandas, o Juízo decretou a prisão preventiva, caracterizando uma atuação de ofício. Julgados do STJ.4. Agravo regimental improvido.”(AgRg nos EDcl no RHC n. 196.080/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 18/6/2024, DJe de 21/6/2024). A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça entende de modo diverso, o que é ilustrado por julgamento unânime realizado em 29/4/2024. O colegiado, nos termos do voto do relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, não acolheu o pedido do paciente e decidiu que não configura constrangimento a decretação da prisão mesmo que o Ministério Público requeira medida cautelar mais branda:’AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA MULHER NO ÂMBITO FAMILIAR. LESÃO CORPORAL. CONVERSÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE EM PREVENTIVA, DE OFÍCIO. MANIFESTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELA APLICAÇÃO DAS MEDIDAS CAUTELARES PREVISTAS NO ART. 319 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. GRAVIDADE CONCRETA. MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.1. Não se desconhece o entendimento de que, ’em razão do advento da Lei n. 13.964/2019, não é mais possível a conversão ex officio da prisão em flagrante em prisão preventiva. Interpretação conjunta do disposto nos arts. 3º-A, 282, § 2º, e 311, caput, todos do CPP’ (RHC nº 131.263/GO, relator ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Terceira Seção, julgado em 24/2/2021, DJe 15/4/2021). 2. Contudo, no caso, o Ministério Público, durante a audiência de custódia, requereu fossem fixadas medidas cautelares diversas da prisão, nos moldes do art. 319 do Código de Processo Penal, tendo o Juízo singular decretado a prisão preventiva. Conforme a jurisprudência desta Corte, ‘é possível ao magistrado decretar medida cautelar diversa daquela requerida pelo Ministério Público, o que não representa atuação ex officio’ (AgRg no HC n. 846.420/AL, relatora ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 2/10/2023, DJe de 5/10/2023), ausente, portanto, a ilegalidade arguida. 3. A validade da segregação cautelar está condicionada à observância, em decisão devidamente fundamentada, aos requisitos insertos no art. 312 do Código de Processo Penal, revelando-se indispensável a demonstração de em que consiste o periculum libertatis. 4. No caso, após se desentender com sua companheira, o agravante voltou-se contra ela com o objetivo de atingi-la com uma faca, momento em que o padrasto da ofendida interveio com o objetivo de evitar a conduta criminosa. Além disso, destacaram as instâncias de origem que a vítima já teria sido agredida pelo agravante em outras ocasiões, ‘classificando[-o] como insolente, por meio da expressão ‘desaforento (cf. mídia), o qual, mesmo na presença dos demais familiares da vítima, não se mostrou inibido em praticar a conduta delitiva’ (e-STJ fl. 66). Tais circunstâncias denotam a periculosidade do réu e a necessidade da segregação como forma de acautelar a ordem pública. Precedentes.5. No mais, mostra-se indevida a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, quando a segregação encontra-se fundada na gravidade efetiva do delito, indicando que as providências menos gravosas seriam insuficientes para acautelar a ordem pública. 6. Agravo regimental desprovido.” (AgRg no HC nº 892.531/SP, relator ministro Antonio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, julgado em 29/4/2024, DJe de 3/5/2024).

O STF também discorda se o juiz fica vinculado ao requerimento do parquet na audiência de custódia.

No ano de 2022, em caso no qual o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios se manifestou pela homologação de auto de prisão em flagrante e pela concessão de liberdade provisória cumulada com a aplicação de outras cautelares, a composição unânime da Segunda Turma do STF, acompanhando voto do ministro Gilmar Mendes, entendeu ser teratológica a decisão que decreta a prisão preventiva. Assim, desproveu o agravo do Ministério Público Federal:

“Agravo regimental no habeas corpus. 2. É ilegal a conversão em preventiva da prisão em flagrante quando o Ministério Público requer a concessão da liberdade provisória, salvo se houver representação da autoridade policial, o que não é o caso dos autos. 3. Prisão preventiva decretada com base, exclusivamente, na quantidade da droga. Impropriedade. 4. Agravo improvido.” (HC 193592 AgR, relator ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 21/2/2022).

No ano de 2024, a 1ª Turma do STF, por unanimidade, decidiu acerca da discordância entre o promotor de Justiça e o magistrado sobre a espécie de medida cautelar a ser adotada em caso de agente autuado em flagrante, entendendo que não constitui ofensa ao sistema acusatório a opção do juiz pela prisão preventiva, em julgado relatado pelo ministro Cristiano Zanin:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. RECORRENTE PRESO PREVENTIVAMENTE POR SUPOSTA TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. DECRETAÇÃO DE OFÍCIO. NÃO OCORRÊNCIA. REPRESENTAÇÃO PELA CONVERSÃO DO FLAGRANTE POR OUTRAS CAUTELARES ALTERNATIVAS. MANIFESTAÇÃO PRÉVIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AGRAVO IMPROVIDO. I – Não ocorrência da hipótese de aplicação da jurisprudência desta Suprema Corte acerca da ilegalidade da conversão, de ofício, da prisão em flagrante em custódia preventiva, sem que haja prévio requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial, conforme dispõem os arts. 282, §§ 2° e 4°, e 311 do Código de Processo Penal, com as alterações introduzidas pela Lei n. 13.964/2019. II – Apesar da discordância de entendimento entre o Promotor de Justiça e o Magistrado de origem acerca da espécie de medida cautelar a ser adotada, houve pronunciamento do órgão de acusação para que outras cautelares alternativas fossem fixadas, situação bem distinta de quando o julgador age sponte sua. III – A propósito, o inciso II do art. 282 do Código de Processo Penal dispõe que as medidas cautelares deverão ser aplicadas observando-se a “adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado”. No caso, depois de ouvir o Ministério Público e a defesa, o Juízo de custódia homologou a prisão em flagrante e entendeu que a medida mais adequada, na espécie, era a conversão do flagrante em prisão preventiva. IV – Nessas circunstâncias, a autoridade judiciária não excedeu os limites de sua atuação e nem tampouco agiu de ofício, de modo que a prisão preventiva do recorrente é compatível com a nova legislação de regência, além de proporcional e adequada ao caso concreto. V – Agravo regimental improvido.” (RHC 234974 AgR, relator ministro Cristiano Zanin, 1ª Turma, julgado em 19/12/2023)

Conclusão

Como se vê, as Turmas julgadoras do STF e do STJ têm decidido de volúvel acerca da decretação da prisão preventiva pelo juiz do agente autuado em flagrante, quando o MP não requer a medida extrema, mas outras providências menos graves.

A interpretação dissonante sobre a conversão da prisão em flagrante em preventiva quando o MP requer medida cautelar alternativa, embora orgânica e compatível com a evolução natural da jurisprudência nos tribunais uniformização da aplicação do direito, é paradoxal e potencializa o risco de multiplicar situações injustas país afora, o que constitui razão suficiente para demandar ajuste do sistema de justiça.

 

Autores

  • é servidor público, mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), pós-graduado em Docência no Ensino Superior (Unicsul), graduado em Direito pelo UniCeub e ex-orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito do UniCeub.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!