Sobre a fixação de valor mínimo para reparação dos danos causados
21 de agosto de 2024, 15h20
Nos termos do artigo 387, inciso IV do CPP, o juiz ao proferir sentença penal condenatória “fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”.
Trata-se de dispositivo que vem prestigiar os reclamos de parcela da doutrina, porquanto resguardar os interesses patrimoniais daqueles que foram afetados pela infração penal.
Conquanto a fixação de valor à título de reparação dos danos causados à vítima não seja inédita em nosso ordenamento jurídico (v.g. a Lei 9.605/98 — Lei de Crimes Ambientais, em seu artigo 20, traz disposição idêntica à prevista no CPP), foi apenas com o advento da Lei 11.719/2008, que tal disposição ganhou forma no âmbito do Código de Processo Penal.
Ainda que, en passant, buscaremos analisar as principais controvérsias acerca deste dispositivo legal.
1. Necessidade de pedido expresso do MP ou do ofendido: há quem advogue a tese de que a fixação de valor mínimo a título de reparação prescindiria da manifestação do MP ou do ofendido por ser um consectário lógico da sentença penal condenatória (nesse sentido: MENDONÇA, Andrey Borges. Nova reforma do código de processo penal. São Paulo: Método, 2008. p. 240; CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed. – São Paulo: Saraiva, 2009. p. 167).
A propósito, cite-se o escólio de Renato Marcão (2019, p. 924) “quer nos parecer que a regra tratada é bastante clara ao determinar que o juiz, independentemente de qualquer provocação (ex officio), deverá fixar a parcela mínima de reparação sempre que cabível”. Ousamos divergir. Como se sabe, a pretensão punitiva materializa-se com a denúncia. É ela que irá ditar os rumos do processo, sendo vedado ao magistrado em respeito à regra da correlação entre acusação e sentença e do ne procedat iudex ex officio prover sem que haja expresso pedido, ou prover diversamente do que foi pedido (BADARÓ, 2013, p. 39). Cremos, portanto, ser proibido ao magistrado, a fixação de quantum indenizatório de ofício (sem pedido expresso do MP ou do ofendido), sob pena de violação ao contraditório e à ampla defesa, o que desaguaria, por conseguinte, em uma sentença ultra petita. É o que impera na jurisprudência: “ao interpretar o artigo 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, este Superior Tribunal de Justiça fixou a compreensão de que a fixação do valor mínimo para a indenização dos prejuízos suportados pelo ofendido depende de pedido expresso e formal, de modo a oportunizar a ampla defesa e o contraditório”. (HC 321.279/PE, Rel. ministro Leopoldo de Arruda Raposo (desembargador convocado do TJ-PE), 5ª Turma, julgado em 23/06/2015, DJe 03/08/2015).
2. Possibilidade de fixação de valor mínimo à título de danos morais: o Superior Tribunal de Justiça, em reiteradas decisões, tem admitido a fixação de valor reparatório à título de danos morais. Segundo o Tribunal da Cidadania: “considerando que a norma não limitou e nem regulamentou como será quantificado o valor mínimo para a indenização e considerando que a legislação penal sempre priorizou o ressarcimento da vítima em relação aos prejuízos sofridos, o juiz que se sentir apto, diante de um caso concreto, a quantificar, ao menos o mínimo, o valor do dano moral sofrido pela vítima, não poderá ser impedido de fazê-lo” (REsp 1585684/DF, rel. ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, julgado em 09/08/2016, DJe 24/08/2016). Permissa vênia, a esse entendimento não podemos concordar. Temos que o dano a ser fixado na seara penal é aquele patrimonial. Com efeito, o processo penal não pode subverter-se, tampouco transformar-se em uma disputa civil. Lembremo-nos com Aury Lopes Jr. (2021, p. 35) que o processo penal é, pois, um caminho necessário para alcançar-se a pena. Na esteira dos ensinamentos de Nereu José Giacomolli (2009, p. 110) “no momento em que o legislador determinou a estipulação de uma indenização de danos de natureza civil no âmbito de um processo criminal, incrementou o polo acusador e fragilizou, ainda mais, o polo defensivo. Isso porque a acusação terá interesse em também levar ao processo criminal a prova destinado a fixação dessa indenização e a defesa, por outro lado, terá mais uma preocupação, além da criação da dúvida razoável no processo, tendente a sua absolvição, preocupar-se-á com a indenização”. Em suma, o dano moral jamais deverá integrar o valor mínimo de indenização a ser fixado pelo magistrado na sentença. Isso porque, como relembra Damásio de Jesus (2014, p. 347) o juiz criminal não dispõe de mecanismos aptos a quantificar um montante a respeito deste tema. E mais, haveria segundo o saudoso jurista, uma ampliação exagerada do thema probandum.
3. Extinção da punibilidade e reparação do dano: operada a extinção da punibilidade pela prescrição, extingue-se também a condenação pecuniária fixada com esteio no artigo 387, inciso IV do CPP. Nada impede, todavia, que a vítima ingresse na esfera cível contra o ofensor (EDcl no AgRg no REsp 1260305/ES, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado em 12/03/2013, DJe 19/03/2013).
Isenção da indenização em caso de réu pobre
Em se tratando de réu juridicamente pobre, a regra prevista no artigo 387, IV do CPP, pode ser perfeitamente afastada.
4. Necessidade de instrução específica para apuração do valor a ser reparado: destaque-se que a fixação de valor à título de reparação perpassa à análise de elementos de provas que permitam aferir o real prejuízo sofrido pela vítima, bem como a capacidade econômico-financeira do réu. Com efeito, a reparação em âmbito penal (artigo 387, inciso IV do CPP) deve ser regida pelo binômio prejuízo-possibilidade, afinal, de nada adiantaria aferir-se o prejuízo causado à vítima pela infração penal, se o réu não dispusesse de recursos para compensá-lo. Bem por isso, a jurisprudência do STJ já se manifestou no sentido de que “o pedido expresso na inicial acusatória não é suficiente para autorizar a reparação de danos à vítima. É necessária instrução específica, com indicação de valor e prova suficiente a sustentá-lo, viabilizando o direito de defesa ao réu, que poderá, através de documentos, indicar quantum diverso ou comprovar a inexistência de prejuízo material ou moral a ser reparado” (AgRg no REsp n. 1.483.846/DF, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, DJe de 29/2/2016). Conforme alinhavado por Guilherme de Souza Nucci (2016, p. 861), em se tratando de reparação de dano no âmbito do processo penal, é de todo necessário a indicação dos valores e provas suficientes a sustentá-lo. A partir daí, deve-se proporcionar ao imputado a possibilidade de defender-se e produzir contraprova (uma espécie de contestação da reparação do dano), de modo a indicar valor diverso, ou até mesmo apontar que inexistiu prejuízo a ser reparado. Há, todavia, uma exceção. Segundo decidido pelo STJ, “nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória” (REsp 1.643.051-MS, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 28/02/2018, DJe 08/03/2018 (Tema 983).
Prazo prescricional para ajuizamento da ação de execução
O capítulo da sentença referente à indenização deve ser executado no juízo cível, havendo que se observar o prazo prescricional previsto no artigo 206, §3º, inciso III do Código Civil, que determina que “prescreve em três anos a pretensão de reparação civil”.
Valor mínimo
Como se depreende da norma em comento, o valor fixado na sentença penal condenatória se trata de parcela mínima para reparação dos danos, nada obstando, portanto, que a vítima quando da execução do título judicial no juízo cível promova a apuração do dano efetivamente sofrido. É o que dispõe o artigo 63, §1º do CPP: “art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. Parágrafo único. Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do artigo 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido”.
Fixação de valor mínimo na Lei Contra o Abuso de Autoridade
A Lei Contra o Abuso de Autoridade (nº 13.869/2019) em seu artigo 4º, inciso I, disciplina que são efeitos da condenação “tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, devendo o juiz, a requerimento do ofendido, fixar na sentença o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos por ele sofridos”. Note-se que o dispositivo em comento, encontra-se em consonância com o sistema acusatório (artigo 3º-A do CPP), porquanto consignar a necessidade de requerimento do ofendido para fins de fixação de valor mínimo à título de indenização.
No entanto é bom rememorar que os delitos previstos na Lei de Abuso de Autoridade — ao revés do que comumente se sustenta — é de difícil configuração. Com efeito, o artigo 1º, §1º, da norma em comento, exige para fins de enquadramento típico o dolo específico de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
Segundo Guilherme de Souza Nucci, “todos os tipos penais configuradores de crime de abuso de autoridade exigem, além do dolo, a especial finalidade de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal […] A atual lei 13.869/19 é muito mais garantista e protetora. O agente público está amparado pelo escudo do elemento subjetivo específico, que é muito difícil de explorar e provar”. Em suma, o diploma legal em apreço, é mais um dentre os muitos exemplos de direito penal simbólico.
Possibilidade de impetração de HC para impugnação do valor fixado à título de reparação
Não havendo risco à liberdade de locomoção do imputado, elementar que se reconheça a impossibilidade de impetração de Habeas Corpus para que se discuta o quantum fixado à título de reparação. De acordo com o STJ: “como a matéria relativa à fixação do valor mínimo devido pela reparação dos danos causados pela infração penal, nos termos do artigo 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, não enseja ameaça sequer indireta à liberdade de locomoção dos recorridos, tampouco seria possível a concessão de habeas corpus de ofício para fins de se afastar a fixação da reparação em tela” (AgRg no AgRg no REsp 1519523/PR, relatora ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª, julgado em 01/10/2015, DJe 23/10/2015).
Ataque recursal ao capítulo da sentença referente à fixação de valor à título de reparação
Tendo sido formulado pedido de fixação de valor mínimo à título de reparação, acaso o magistrado não acolha tal pleito, o MP ou a vítima (por intermédio do assistente de acusação), poderão impugnar o decisum através de apelação, nos termos do artigo 593, inciso I do CPP. De modo diverso, em sendo fixado valor que desagrade a vítima, apenas esta ostentará legitimidade para recorrer, sendo vedado ao MP, por ausência de pressuposto processual (interesse recursal), a interposição de recurso. Sublinhe-se, por necessário, que nos casos em que a infração praticada afete a coletividade (v.g. crimes ambientais, crimes contra a ordem econômica, etc.), muito embora sejamos críticos à regra contida no art. 387, inciso IV, do CPP, poderá o MP interpor recurso de apelação.
Revisão criminal
Se a sentença penal condenatória for desconstituída por meio de revisão criminal (art. 621 do CPP), há que se observar as seguintes situações: (i) se o condenado já tiver adimplido o quantum indenizatório, poderá este intentar ação de repetição de indébito contra a vítima favorecida pelo édito condenatório anulado. É preciso advertir, contudo, que a posição por nós externada é minoritária. A doutrina majoritária, costuma sustentar que a pretensão do condenado deve voltar-se ao Estado, não a vítima (nesse sentido: DEZEM, 2019, p. 351 e BADARÓ, 2018, p. 221); (ii) se o condenado não tiver adimplido o valor fixado à título de indenização e o processo de execução tiver sido iniciado, restará ao magistrado extingui-lo.
À guisa de conclusão
É crescente em terrae brasilis a ideia que o processo penal deve tutelar integralmente os direitos do imputado e os direitos das vítimas, sob pena de praticar-se um “garantismo penal hiperbólico monocular”.
Todavia, conforme visualizado no presente ensaio, a fixação de indenização de danos de natureza civil é tarefa hercúlea, por vezes impossível de ser praticada no campo penal. Assinala-se, que em um processo penal de cariz acusatório (artigo 3ª-A do CPP) que adota dentre seus baluartes as garantias do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LV, CR/88) jungidas sob a cláusula do due process of law (artigo 5º, LIV, CR/88), a pretensão à indenização desembocaria em duas instruções processuais: uma para apuração do quantum debeatur e outra para o deslinde do caso penal, pois só assim, garantir-se-ia ao menos à ampla defesa e o contraditório ao imputado, que doravante, como colocado pela doutrina mais crítica, além de repelir a carga acusatória, deverá repelir o pedido de indenização.
Trata-se, a nosso juízo de uma indevida patrimonialização do direito/processo penal, que aprioristicamente deveria ter por norte, a fragmentariedade. Não custa rememorar que o ordenamento jurídico pátrio, oferta um elenco considerável de mecanismos aptos a tutelar os direitos patrimoniais das vítimas de infrações penais, seja em âmbito privado (ação de reparação civil), seja em âmbito coletivo (ajuizamento de ação civil pública). Repisa-se, em remate, o que avivamos anteriormente: o processo penal não pode subverter-se, tampouco transformar-se em uma disputa civil. Salvo melhor juízo, seriam estas as nossas considerações.
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Referências
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação entre acusação e sentença. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed. – São Paulo: Saraiva, 2009.
DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 5. ed. rev., atual. e ampl. -São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas(?) do processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
JESUS, Damásio de. Código de processo penal anotado. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
MARCÃO, Renato. Curso de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
MENDONÇA, Andrey Borges. Nova reforma do código de processo penal. São Paulo: Método, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 15. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
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