Escuridão total

MPs descumprem prazos da LAI, impedem recursos e têm sistemas eletrônicos inoperantes

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19 de agosto de 2024, 8h52

Os Ministérios Públicos brasileiros falham em cumprir previsões básicas da Lei de Acesso à Informação (LAI). De acordo com um levantamento feito pela revista eletrônica Consultor Jurídico no Ministério Público Federal, nos 26 MPs estaduais e no MP do Distrito Federal, 46% deles não seguem os prazos da LAI, 68% não possibilitam recursos e 21% sequer têm sistemas eletrônicos de informações ao cidadão (e-SICs) plenamente operantes.

Entre 28 MPs, 46% não cumprem prazos, 77% não permitem recursos e 21% têm e-SICs inoperantes

O cenário é ainda pior do que o do Poder Judiciário. Outro levantamento feito pela ConJur nos 27 Tribunais de Justiça, nos seis Tribunais Regionais Federais, no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal já havia mostrado o descumprimento reiterado da LAI por parte das cortes.

A impossibilidade de recurso foi constatada em uma taxa até maior nos tribunais (77,1% deles), mas os MPs descumpriram prazos em um índice bem superior aos 25,7% das cortes. Além disso, no levantamento do Judiciário, todos os e-SICs testados funcionaram, o que não ocorreu com os MPs.

Conforme determina o artigo 11 da LAI, um pedido de informação deve ser respondido pelo órgão público em, no máximo, 30 dias. Já o artigo 15 prevê que o cidadão tem o direito de interpor recurso, cujo prazo para nova resposta é de cinco dias. Por fim, o artigo 10º exige que os órgãos permitam o encaminhamento dos pedidos de acesso à informação em seus sites oficiais.

Mesmo assim, entre os 28 MPs testados pela ConJur, seis deles (21,4% do total) apresentaram erros que impediram o registro dos pedidos nos respectivos e-SICs.

Outros sete MPs não responderam dentro do prazo de 30 dias. Se considerados também os MPs sem e-SICs operantes (nos quais os prazos sequer foram iniciados), verifica-se o descumprimento dos prazos da LAI em 46,4% dos casos.

Já a possibilidade de recurso é ignorada por 13 MPs com sistemas operantes — que, somados àqueles com sistemas inoperantes (nos quais sequer havia algo do que recorrer), representam 67,9% dos órgãos testados. Essa conta inclui tanto os MPs que seguiram os prazos quanto aqueles que os descumpriram.

Clareza do pedido

A ConJur testou o acesso à informação nos e-SICs dos 28 MPs por meio de pedidos (ou tentativas) disparados na primeira quinzena de junho. Foram solicitados dados sobre o volume de ações ajuizadas por cada MP entre 2018 e 2023 conforme o ramo do Direito (entre 13 áreas), com especificação do total a cada ano

Caso o MP não tivesse ajuizado nenhuma ação em determinado ramo nesse período, foi solicitado que o órgão indicasse apenas o número “zero”.

A ConJur pediu que as informações fossem detalhadas obedecendo a seguinte divisão: Direitos Penal, Administrativo, Civil, Processual, Ambiental, Tributário, Empresarial, Previdenciário, Família e Sucessões, Propriedade Intelectual, Digital, Consumidor e Constitucional. 

Também foi pedido que as respostas viessem em formato aberto, ou seja, em planilhas (o formato PDF não é aberto). Apesar da recomendação, nenhum documento foi enviado em formato aberto — com exceção do MP da Paraíba, que somente enviou um link para que o solicitante fizesse sua própria pesquisa no banco de dados da instituição.

Ao menos 15 MPs responderam dentro do prazo, mas apenas os Ministérios Públicos do Maranhão e do Rio Grande do Sul efetivamente forneceram os dados solicitados, o que corresponde a apenas 7,1% do total.

A maioria das respostas negativas alegou a necessidade de trabalho adicional para compilação ou análise de dados e impossibilidade técnica.

Nelas, não foram informados detalhes como a quantidade de servidores que seria necessário alocar para responder o pedido, o total de horas de trabalho necessárias para a resposta ou o volume aproximado de informações, muito menos a possibilidade de recorrer da negativa.

O MP de Mato Grosso do Sul afirmou que o requerimento não identificou os critérios de busca das informações solicitadas — em referência aos ramos do Direito em que as ações se enquadrariam.

“Os sistemas de processamento eletrônico desta instituição ministerial utilizam a taxonomia prevista no Sistema de Gestão de Tabelas Processuais Unificadas do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), cujas pesquisas quantitativas nos bancos de dados devem observar a referida taxonomia como filtro dos campos necessários para a obtenção das informações solicitadas”, diz trecho do documento enviado à ConJur

O MP-MS também alegou que o pedido demandaria um extenso volume de trabalho por parte da equipe técnica da Secretaria de Tecnologia da Informação, o que impossibilitaria o atendimento ao pedido. Não havia possibilidade de recurso.

As justificativas de impossibilidade técnica, em geral, citaram a falta de correspondência entre os ramos do Direito compilados pela ConJur e a “tabela taxonômica” do CNMP. De acordo com o MPF, por exemplo, “não há dados estruturados que possibilitem a extração automatizada de informações sobre o ajuizamento de ações por ramo do Direito”.

Em certos casos, esses mesmos argumentos foram apresentados pelos MPs em pedidos de complemento à solicitação da reportagem, apesar da sua alta especificidade. O MP do Espírito Santo chegou a solicitar que a ConJur justificasse seu pedido.

Obstáculos da transparência

De modo geral, a ConJur esbarrou em algumas dificuldades primárias para solicitar informações, por causa de problemas técnicos, descumprimento de prazos ou alegações vagas sobre a necessidade do detalhamento dos pedidos.   

Os sistemas eletrônicos dos MPs de Acre, Alagoas, Goiás, Pará, Rio de Janeiro e Santa Catarina estavam fora do ar nas datas em que a ConJur tentou enviar formulários requisitando informações.

Já os Ministérios Públicos de Amapá, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Mato Grosso, Sergipe e Tocantins não cumpriram o prazo de 30 dias estipulado pela LAI.

O MP de Mato Grosso, por exemplo, respondeu somente em agosto, informando que o órgão não conseguiria levantar os dados pedidos. “Isso porque os filtros por área de atuação constantes em nosso sistema não coincidem com os ramos de Direito solicitados, o que exigiria análise adicional e consolidação de dados”, diz o documento enviado. Não havia como recorrer para contestar tal justificativa.

Já o Ministério Público do DF chegou a informar a prorrogação do prazo das informações requisitadas (por mais dez dias além dos 20 iniciais, como permite a LAI), mas não se manifestou posteriormente sobre o andamento do processo.

A opção de recurso aparecia apenas nos e-SICs do MPF e dos MPs de Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Maranhão, Paraíba, Rondônia e São Paulo.

Lei mal aplicada

O advogado Bruno Morassutti — diretor de advocacy da Fiquem Sabendo (organização sem fins lucrativos especializada em transparência e acesso à informação) e membro do Conselho de Transparência da Controladoria-Geral da União — aponta que os órgãos do sistema de Justiça brasileiro têm “problemas bem semelhantes” de transparência pública.

Os tribunais e os MPs, segundo ele, não estão acostumados a receber demandas relacionadas à LAI ou mesmo a considerar que precisam prestar o serviço público de fornecimento de acesso à informação. Devido ao “pouco controle” sobre suas atividades, esses órgãos “se sentem menos pressionados a atender à LAI”.

Também não há ainda no Brasil “uma reflexão muito grande sobre a necessidade de uniformizar entendimentos no que diz respeito ao tratamento de demandas de acesso à informação judicial”.

Para o advogado, o descumprimento da LAI é maior no MP porque o sistema de controle é pior. De acordo com ele, o CNMP é “uma instituição menos efetiva” do que o Conselho Nacional de Justiça para fiscalizar o cumprimento da lei — embora o CNJ também deixe a desejar nesse quesito.

Morassutti defende o investimento na “adoção de procedimentos mais uniformes, sistematizados e periódicos de acompanhamento da execução da LAI”.

Assim como os tribunais, cada MP tem uma autoridade interna de monitoramento da LAI, que “deveria questionar as autoridades responsáveis quando verificasse respostas atrasadas, por exemplo”. Mas isso “ainda não é uma prática”.

Outra área importante que carece de investimento é a de tecnologia. Os MPs não têm “sistemas bons para protocolo de demandas de acesso à informação”. Em alguns casos, os protocolos dos sites “nada mais são do que um um sistema de disparo de e-mails”, sem um “controle centralizado sobre prazos”.

O advogado lembra que o Executivo federal, o Congresso e o Tribunal de Contas da União melhoraram muito sua transparência e seu atendimento de demandas quando aprimoraram seus sistemas.

Os investimentos também precisam ser voltados à formação dos servidores. Morassutti indica que muitos deles não conhecem bem o processo e o sistema de atendimento de acesso à informação, não sabem qual é a autoridade responsável por analisar recursos e não informam o cidadão sobre seu direito de recorrer.

Por fim, ele ressalta a necessidade de revisão de “alguns entendimentos que infelizmente são muito equivocados em matéria de transparência, como a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) pelo MP para restringir acesso a informações sobre remuneração dos agentes”.

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