Opinião

Caso julgado pelo TJ-SP suscita debate sobre herança de bens digitais

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  • é advogado do escritório Frullani Lopes Advogados especialista em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da USP e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.

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19 de agosto de 2024, 17h18

Conflitos entre herdeiros não são uma novidade, mas, até alguns anos atrás, limitavam-se a casas, prédios, móveis, joias, valores em contas bancárias ou investimentos. Nos últimos anos, porém, novos bens passaram a ser objeto de disputas: os chamados “bens digitais”. Essas disputas, aliás, não se dão apenas entre herdeiros, mas também envolvem redes sociais e empresas que administram ativos digitais.

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Nosso Código Civil, que foi escrito ao longo do século 20 e sancionado em 2002, não prevê regras específicas para a herança de bens intangíveis armazenados em ambiente digital, como senhas, perfis de redes sociais, criptomoedas, NFTs, dentre outros. Por isso, o Judiciário vem sendo provocado, nos últimos anos, para decidir questões relacionadas a esses ativos intangíveis.

A questão não envolve apenas bens de valor economicamente apreciável, mas também direitos da personalidade dos falecidos e de terceiros, como a privacidade e a intimidade. Afinal, compõem esse patrimônio digital mensagens privadas trocadas pelo falecido com outras pessoas, além de vídeos e fotos.

A solução não pode ser a mesma para todos os bens. Como destacaram Ana Cecília Frota de Paula e Jéssica Guedes Santos, no relatório de pesquisa “Herança Digital: atualizações necessárias no Código Civil de 2002” [1], divulgado pelo ITS-Rio, há uma classificação tripartite dos bens digitais: (i) bens digitais patrimoniais, que são aqueles que possuem conteúdo econômico; (ii) bens digitais existenciais, que não apresentam qualquer conteúdo econômico; (iii) bens digitais que apresentam tanto aspectos patrimoniais quanto existenciais.

Às vezes, um bem pode ter diferentes caracterizações a depender da forma como ele é utilizado. Um perfil de rede social de um indivíduo comum, que o utiliza para se conectar com amigos e parentes, por exemplo, tem um nítido caráter existencial. Já o perfil de rede social de uma empresa, por exemplo, tem caráter patrimonial, tanto que o Enunciado nº 95 do Conselho da Justiça Federal, aprovado em 2019, prevê que “os perfis em redes sociais, quando explorados com finalidade empresarial, podem se caracterizar como elemento imaterial do estabelecimento empresarial”.

Em alguns casos, perfis de indivíduos podem ter finalidade tanto patrimonial quanto existencial, como aqueles utilizados pelos chamados “influenciadores”, que costumam arrecadar valores através da monetização de seus posts ou de publicidade. Ou seja, a classificação exata de um perfil de rede social sempre depende da análise casuística.

Um perfil de rede social ou a senha de acesso a um celular, além de serem, por si só, bens digitais, também garantem o acesso a outros bens digitais, como fotos, vídeos, arquivos, mensagens privadas, criptomoedas, NFTs e até mesmo créditos decorrentes de monetizações, por exemplo. Cada um desses bens pode ocupar uma classificação diferente dentre as três mencionadas anteriormente.

O que fazer com patrimônio digital?

Como a legislação atual brasileira não trata especificamente da transmissão desses bens por herança, o Poder Judiciário foi convocado, em diversas ocasiões, a decidir o que deve ser feito com o patrimônio digital. No final de abril, o Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu uma decisão favorável a uma mãe que pretendia ter acesso ao celular de sua filha, falecida em 2021, que estava protegido por senha. O acórdão reverteu uma sentença proferida em primeira instância, que havia negado o pedido com base no fundamento de que o acesso aos arquivos armazenados no aparelho violaria os direitos fundamentais à intimidade e à privacidade [2].

Spacca

Em seu voto proferido no âmbito de recurso de apelação, que foi seguido por unanimidade pelos demais julgadores, o desembargador relator Carlos Alberto de Salles considerou que os bens digitais fazem parte do espólio, a despeito de não haver regulamentação específica na lei. O relator também destacou que não haveria desrespeito aos direitos fundamentais da falecida, pois ela não teria se manifestado, em vida, contrariamente à sucessão desses bens.

Essa contraposição entre os entendimentos da primeira e da segunda instância reflete uma divisão na doutrina a respeito da transmissibilidade dos bens digitais por herança. De um lado, há quem defenda a transmissibilidade de todos os bens digitais, tenham eles conteúdo patrimonial ou não; de outro, encontram-se aqueles que entendem que apenas os bens com conteúdo patrimonial devem ser objeto de herança.

A questão é extremamente complexa, já que, como visto acima, a diferenciação dos bens digitais entre as três categorias não é tão simples. Atualmente, mesmo pessoas que não são consideradas influenciadoras digitais podem receber quantias através de mecanismos de monetização, por exemplo. Em tese, isso tornaria a rede social um bem com aspectos tanto existenciais quanto patrimoniais. No entanto, as fotos, vídeos, arquivos e mensagens vinculadas ao perfil continuariam sendo bens estritamente existenciais.

Para tentar solucionar, ao menos em parte, a insegurança jurídica causada pela ausência de lei específica que trate do tema, a Comissão de Juristas responsável pela revisão de atualização do Código Civil tratou da herança de bens digitais em seu relatório final [3].

Autorização para acesso a bens existenciais

O relatório propõe que os bens digitais do falecido, de valor economicamente apreciável, integrem a sua herança. Já os bens existenciais, como mensagens privadas, em regra não poderiam ser acessados pelos herdeiros, a não ser que haja expressa disposição de última vontade que o autorize.

Ainda segundo a proposta da Comissão, se o falecido tiver compartilhado senhas ou outras formas de acesso a suas contas pessoais com os herdeiros, esse ato será equiparado a uma autorização expressa para acessar essas contas. O projeto também prevê que, excepcionalmente, o herdeiro poderá ter acesso às mensagens privadas do autor da herança quando demonstrar que tem interesse próprio, pessoal ou econômico, de conhecê-las.

Ou seja, o relatório final da Comissão de Juristas soluciona parcialmente o problema da herança digital, mas ainda há muitas questões a serem discutidas, especialmente em relação aos bens digitais que apresentam aspectos tanto patrimoniais quanto existenciais.

Se uma rede social de um influenciador, por exemplo, também era usada por ele para fins pessoais (troca de mensagens privadas, por exemplo), como garantir aos herdeiros o acesso a esse perfil sem disponibilizar as mensagens privadas armazenadas? O que seriam os interesses “pessoais e econômicos” que poderiam levar a uma autorização do acesso às mensagens privadas? Em caso de autorização, esse acesso deve ser restrito apenas a determinadas mensagens trocadas com uma pessoa em específico, ou a todas as mensagens vinculadas àquele perfil?

Outras dificuldades podem ser enfrentadas em plataformas de armazenamento em nuvem, por exemplo, onde os usuários costumam armazenar tanto informações e arquivos pessoais quanto profissionais. Como garantir o acesso apenas aos bens que teriam valor economicamente apreciável?

Portanto, a regulamentação da herança digital é necessária para diminuir a insegurança jurídica a respeito do tema, mas ainda há algumas questões que precisam ser discutidas, especialmente em relação aos bens que possuem aspectos tanto existenciais quanto patrimoniais.

 


[1] Disponível em: <https://itsrio.org/wp-content/uploads/2016/12/HerancaDigital.pdf>. Acesso em 15 de agosto de 2024.

[2] TJ-SP – Apelação Cível: 1017379-58.2022.8.26.0068 Barueri, Relator: Carlos Alberto de Salles, Data de Julgamento: 26/04/2024, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/04/2024.

[3] Disponível em: < https://www12.senado.leg.br/assessoria-de-imprensa/arquivos/anteprojeto-codigo-civil-comissao-de-juristas-2023_2024.pdf>. Acesso em 15 de agosto de 2024.

Autores

  • é advogado do escritório Frullani Lopes Advogados, especialista em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da USP, graduado pela Faculdade de Direito da USP, além de mestre e doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela mesma instituição.

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