Opinião

O regime societário da SAF para os clubes de futebol (parte 1)

Autores

  • é professor emérito das universidades Mackenzie Unip Unifieo UniFMU do Ciee/O Estado de S. Paulo das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor honorário das Universidades Austral (Argentina) San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia) doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS catedrático da Universidade do Minho (Portugal) presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

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  • é ex-árbitro da Fifa e comentarista dos canais ESPN.

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16 de agosto de 2024, 13h22

É histórico no Brasil o problema da relação econômica dos clubes de futebol com a sociedade no que tange a pagamento de impostos, responsabilidade dos administradores e gestão profissional.

Sempre foi desejo da sociedade e das autoridades transformar os clubes de futebol em empresas. Atualmente, a maior parte dos clubes de futebol profissionais é associação, organizada na forma de pessoa jurídica sem fins lucrativos.

Contexto legal histórico

A Constituição, no seu artigo 217, regulamentou o desporto como promoção social e também atribuiu autonomia às entidades desportivas. O Brasil tinha saído do regime autoritário, em que o Estado tinha interferência total nas entidades e o Constituinte optou pelo regime da independência, gerando uma ruptura ao modelo de sistema desportivo que vigorou por décadas. Antes desta ruptura, o CND (Conselho Nacional de Desporto) exercia a máxima intervenção estatal no desporto.

Com o princípio da autonomia das entidades e a prerrogativa jurídica previstos na Constituição, estas puderam organizar suas regras, sua forma de funcionamento, seus campeonatos e modelo de gestão, mas lógico, sempre fundadas na legislação do Estado e tratando o esporte como direito fundamental.

O Constituinte deixou um grande marco, rompendo a interferência estatal que teve por anos. Hoje temos um Campeonato Brasileiro organizado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), com 20 equipes participando, já consolidado com suas regras e regulamentos contra um campeonato criado na década de 1970, que chegou a ter 94 equipes, no ano de 1979, em um processo de ampliação dos participantes, incrementado a partir da chegada do almirante-dirigente Heleno Nunes ao comando da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) após a saída de João Havelange.

Sálvio Spínola, ex-árbitro de futebol, comentarista de arbitragem e advogado

A chamada Lei Pelé (nº 9.615/98), promulgada no governo de Fernando Henrique Cardoso pelo então ministro extraordinário dos Esportes, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, balançou o futebol nacional e os clubes profissionais, além de alterar a relação entre atleta e clube, com a extinção do “passe”, iniciando assim, um novo relacionamento de relações de trabalho e negociações entre os clubes, além de tantas outras alterações significativas ao sistema vigente naquele momento.

De todas as alterações, a de maior relevância, era a prevista no artigo 27 do texto original da Lei Pelé, que assustou futebol nacional ao estabelecer a obrigatoriedade de os clubes de futebol participantes de competições profissionais adotarem uma das formas empresariais estabelecidas no Código Civil, abandonando o modelo associativo, utilizado pela grande maioria dos clubes. Para tanto, seria concedido prazo de dois anos contados da entrada em vigor da norma para constituir o chamado clube-empresa.

O futebol brasileiro, através dos seus dirigentes, resistiu como pôde às mudanças propostas pela Lei Pelé. No caso da obrigatoriedade de criação do clube-empresa, o enfrentamento à norma se deu com a alegação da interferência do Estado nas organizações, fundamentado no argumento da inconstitucionalidade, em face da disposição contida no artigo 217, I, da Constituição, que confere autonomia de organização e funcionamento às entendidas esportivas, como tratado no início.

Muitos atribuem à Lei Pelé os clubes terem perdido o benefício da geração dos atletas para os intermediários, hoje os maiores beneficiários da lei. Segundo estes críticos, a Lei Pelé teria sido responsável pelo empobrecimento da qualidade do futebol, por desestimular nos clubes, mesmo os pequenos, o investimento na formação de atletas.

Com essa pressão da “sociedade do futebol” em 2000, com mais de dois anos após a entrada em vigor da Lei Pelé, diversos dos seus dispositivos originais foram modificados pela Lei 9.981/2000.

No caso específico do artigo 27, a Lei 9.981/2000 revogou a obrigatoriedade de constituição do clube-empresa, tornando-a facultativa.

Alguns clubes do futebol nacional, concordando com a adoção do clube-empresa, alteraram sua forma de constituição. São os casos do Vitória, Paulista de Jundiaí, São Caetano FC, e outros.

Ives Gandra da Silva Martins

Mesmo tornando facultativa, o §2º do artigo 27 da Lei 9.981/2000, trouxe um grande complicador para transformação das associações em clube-empresa: a obrigatoriedade de realizar assembleia dos sócios, com concordância da maioria absoluta do quadro associativo, o que tornava muito difícil se realizar, principalmente nos grandes clubes com quadro associativo elevado.

O outro grande complicador era o regime de tributação. Quem sairia de um regime isento, tratamento dado para as associações civis, para um regime de tributação adotado para as empresas, lucro real ou lucro presumido?

Alguns clubes, como o Vitória, que tinha se transformado em clube empresa, reverteu a transformação pela questão tributária. Não era possível disputar campeonatos contra equipes que não eram tributadas pelo seu regime societário, e continuar desembolsando grandes valores com impostos e tributos. Tratar-se-ia, pois, de uma disputa desleal, um desequilíbrio na competição.

Crise nos clubes e entidades no Brasil

É histórica no Brasil a crise econômica dos clubes de futebol tendo em vista o não pagamento de verbas trabalhistas, com inúmeros processos e acordos; não pagamento de impostos, inclusive os de retenção na fonte, o que configura crime de apropriação indébita; dívidas financeiras com instituições públicas e antecipações futuras de venda de direitos. Como o futebol é uma paixão nacional, também é histórico o auxílio do Estado aos clubes, haja vista os inúmeros benefícios que já foram criados; vantagens que o setor privado não tem.

Nesta esteira, a Lei 10.671/2002 instituiu o Estatuto do Torcedor, que prevê várias exigências para as organizações de campeonatos e relacionamento com o torcedor, bem como estabelece alguns incentivos para adoção destas práticas.

A Lei 11.345/2006 instituiu a Timemania, que é uma loteria organizada pela Caixa Econômica Federal para arrecadar valores e quitar os débitos tributários dos times de futebol. Assim, valores que não passavam pelo caixa dos clubes eram abatidos diretamente do débito.

A Lei 12663/12, por sua vez, ficou conhecida como a “Lei Geral da Copa”, que previa inúmeras anistias e renúncia fiscal com o objetivo de organização da Copa das Confederações de 2013 e Copa do Mundo de 2014. Fora aprovada sob o argumento de sanear o futebol brasileiro no seu passado, através de recursos e legado que a Fifa deixaria no país.

Por fim, a Lei 13.155/2015 instituiu o Profut, que é o programa de regularização do futebol brasileiro, com princípios e práticas de responsabilidade financeira, fiscal e governança dos clubes de futebol.

Como se vê, mesmo com inúmeras soluções e benefícios, os clubes de futebol não organizaram suas finanças e continuam endividados.

Autorregulamentação

O melhor caminho para não ter intervenção estatal nas entidades é a sua regulamentação própria, sem necessidade de leis que as disciplinem.

Na Europa, a Uefa, entidade que organiza os campeonatos europeus, implantou em 2009, às suas normas de licença de clubes, o chamado “fair play financeiro”, que são critérios que estabelecem padrões mínimos de infraestrutura, capacitação, certificados e gestão a serem seguidos pelos clubes filiados. Com o não cumprimento destas normas o clube é proibido de participar das competições.

Este é um ótimo caminho, mas no Brasil não há normas de licenciamento pelas entidades, e o Estado sempre termina intervindo no futebol para amenizar os erros na gestão.

SAF (Sociedade Anônima de Futebol)

“O futebol não pode ficar só nas páginas do esporte, precisa ir para as páginas da economia também.”

Assim falou o senador Carlos Portinho, que foi o relator do PL 5.516/19, que institui a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) no ordenamento jurídico brasileiro através da Lei 14.193/2021.

Incluiríamos que o futebol precisava sair das páginas policiais, haja vista matéria sobre o Cruzeiro de MG, que foi divulgada no Fantástico, da TV Globo, em que mostrava a Polícia Federal concluindo a investigação por suspeita de crimes praticados pelos gestores da associação civil.

Desenvolver um novo modelo societário e organizacional dos clubes de futebol brasileira é um sonho antigo, pois transformá-los em clube-empresa era uma necessidade e pedido da sociedade brasileira, que tem a maioria dos clubes organizados como associações sem fins lucrativos.

A Lei da SAF prevê uma forma específica de sociedade anônima exclusivamente para o futebol, complementando a lei geral das sociedades anônimas de 1976, lei 6.404/76.

Sendo assim, as SAFs estão sujeitas à Lei 14.193 aprovada em 2021 e, automaticamente, à lei geral de sociedades anônimas, às normas gerais do desporto e, respeitando a hierarquia das normas do direito brasileiro, ao Código Civil e à Constituição.

Em outras palavras, além da lei regulamentar a gestão de clubes de futebol, ela cria um modelo jurídico específico para esta atividade, que difere das atividades comerciais, industriais e de serviços abrangidas pela lei das sociedades anônimas.

A nova lei é organizada em três capítulos: o primeiro trata da sua constituição, regime de execução e recuperação judicial e extrajudicial, modelo de governança, obrigações e quitação dessas obrigações; o capítulo segundo trata das disposições especiais como programa de desenvolvimento educacional e regime específico de tributação, e o terceiro elenca as disposições finais.

Assim, Llei da SAF teve como objetivo tornar os clubes de futebol economicamente interessantes, cativando investidores, tendo no seu objeto social específico a prática de futebol profissional masculino e feminino, nos termos do artigo 1º, §2º:

§ 2º O objeto social da Sociedade Anônima do Futebol poderá compreender as seguintes atividades:

I – o fomento e o desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática do futebol, obrigatoriamente nas suas modalidades feminino e masculino;

II – a formação de atleta profissional de futebol, nas modalidades feminino e masculino, e a obtenção de receitas decorrentes da transação dos seus direitos desportivos;

III – a exploração, sob qualquer forma, dos direitos de propriedade intelectual de sua titularidade ou dos quais seja cessionária, incluídos os cedidos pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu;

IV – a exploração de direitos de propriedade intelectual de terceiros, relacionados ao futebol;

V – a exploração econômica de ativos, inclusive imobiliários, sobre os quais detenha direitos;

VI – quaisquer outras atividades conexas ao futebol e ao patrimônio da Sociedade Anônima do Futebol, incluída a organização de espetáculos esportivos, sociais ou culturais;

VII – a participação em outra sociedade, como sócio ou acionista, no território nacional, cujo objeto seja uma ou mais das atividades mencionadas nos incisos deste parágrafo, com exceção do inciso II.

Portanto, com a Lei da SAF passamos a ter no nosso ordenamento jurídico uma modalidade societária com o fim específico de atender as demandas do futebol profissional competitivo, não podendo ser utilizado para outro ramo da economia.

Constituição da sociedade

A Lei da SAF não obriga a transformação de associação civil em SAF, sendo este um dos principais pontos da lei que deixou a escolha para o quadro associativo e possíveis investidores.

Aliás, pela legislação brasileira, o clube de futebol pode ser sociedade anônima ou limitada, como previsto na lei 6.404/76, pode ser associação civil, e agora pode ser SAF, sendo livre a escolha do modelo societário para o investidor ou sócios.

A SAF passa a ser um novo ordenamento jurídico na constituição de novas empresas para o futebol, transformação por completo ou cisão de associações já existentes.

A sua constituição ou transformação foi regulamentada no artigo 2º:

A Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída:

I – pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em Sociedade Anônima do Futebol;

II – pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol;

III – pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.

Vejam que o inciso III permite que uma pessoa natural constitua sua sociedade de futebol, mas o mais importante no texto legal foi a regulamentação da transformação de um clube de futebol com regime de associação civil em sociedade do futebol, atendendo aos interesses dos sócios desta associação civil e de acordo com o estatuto que o rege. O inciso II permite a esta associação civil separar, cindir o futebol das demais atividades esportivas e transformar somente esta parcela em SAF, para atender à exigência de objeto social como previsto no artigo 1º da lei, cujo objetivo principal é fomentar o futebol.

Governança nas Sociedades Anônimas do Futebol

Comparando com o universo das gestões nas associações dos clubes de futebol, este é o item de maior avanço, com muito rigor nas práticas de governança. As regras de gestão e governança tornam mais rígidas na sociedade anônima do futebol, com a finalidade de evitar conflitos, assegurar uma maior transparência e regular a administração individual em face dos interesses coletivos para a empresa, havendo a obrigatoriedade de cumprimento de todo o ordenamento jurídico aplicado às sociedades do setor privado e com responsabilidade dos seus administradores na esfera cível, respondendo inclusive com seu patrimônio pessoal.

Evidentemente, há associações civis que são premiadas por sua gestão com alta performance e sistema de governança de excelência, mas tratam-se de exceções, principalmente porque há um sistema político por trás, com eleição de diretoria executiva para exercer os cargos de gestão.

Na SAF não há sistema político, pois o investidor-sócio passa a ser o responsável pelo gestor para profissionalização da governança visando maximização do seu lucro e retorno do capital investido nos moldes das demais empresas regulamentadas pela lei das sociedades anônimas.

Passa a ser importante ao sócio investidor, além da montagem de um time vencedor dentro do campo, aquele cuja torcida gosta e quer para fazer gols, ganhar jogos e campeonatos; um time de campeões em gestão, profissionais que trazem resultado, fazendo da governança um papel fundamental na estrutura da SAF, de modo que novos investidores integrem o grupo de acionistas não só pelo resultado dentro de campo, mas sim pelo resultado financeiro da empresa.

A lei é rígida: exige maior transparência e por este motivo possui regras específicas para a administração previstas do seu artigo 4º ao 8º.

O acionista controlador da Sociedade Anônima do Futebol não poderá deter participação, direta ou indireta, em outra SAF, inclusive para evitar conflito de interesses e combinação de resultados para benefício próprio. É um ponto muito importante: imaginem um time A com o dono X, jogando contra o time B do mesmo dono X. A lei se preocupou com isso e não permitiu a participação do mesmo acionista em equipes diferentes.

Na SAF é obrigatória a criação do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal com regras próprias e exigências rígidas como, por exemplo, atletas e árbitros em atividades ou pessoas que integram entidades de desporto não podem ser membros.

A lei diferenciou Sociedade Anônima de Futebol com receita anual de R$ 78 milhões, correspondendo a R$ 6,5 milhões por mês, prevendo alguns benefícios para atender as exigências da lei das sociedades anônimas (Lei 6.404/76). Distingue, portanto, empresa de pequeno porte da de grande porte, ou, no caso, clube pequeno e clube grande. Portanto, o clube grande que se transforma ou se constitui em SAF tem que cumprir todas as exigências previstas na lei das sociedades anônimas, como as publicações de demonstrações financeiras e outras.

Continua na parte 2

Autores

  • é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal), presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP e ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

  • é ex-árbitro de futebol credenciado pela Fifa, advogado com especializações em Direito Desportivo e em Direito Tributário, pós-graduado em gestão do Futebol pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), professor na ESA (Escola Superior da Advocacia) e conselheiro no Conselho Superior de Direito da Fecomércio–SP.

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