O preparo recursal nos Juizados e a interpretação extensiva do Fonaje
15 de agosto de 2024, 13h24
Nos últimos anos, incansável tem sido a luta da advocacia contra a alcunhada jurisprudência defensiva, termo utilizado para definir um conjunto de entendimentos que dificultam ou obstam o exame de mérito de recursos em reverência a um formalismo exacerbado e, muitas vezes, inócuo. As decisões que ainda trazem essa lamentável prática jurisdicional, em sua maioria, apresentam uma interpretação extensiva da legislação em vigor, negando até mesmo a vigência de princípios processuais constitucionais básicos, como devido processo legal, contraditório, inafastabilidade da tutela jurisdicional, duplo grau de jurisdição, entre outros.
O Código de Processo Civil em vigor, importante lembrar, contribuiu significativamente no combate a esse formalismo excessivo, para não dizer pernicioso, especialmente porque prestigia o julgamento do mérito. Na sistemática recursal, alguns dispositivos demonstram a preocupação do legislador na redação originária do diploma processual, como o artigo 1.007, §7º, 1.024, §5º e 1.032.
Recentemente, uma nova alteração no diploma processual civil renovou a esperança da comunidade jurídica, demonstrando a preocupação do Legislativo federal com a segurança jurídica. Com redação dada pela Lei nº 14.939/2024, o § 6º, do artigo 1.003, do CPC, deixa claro a partir de então a possibilidade de correção do vício formal correspondente à comprovação de feriado local quando da interposição de recurso, mitigando assim o risco de seu prematuro não conhecimento.
No âmbito das ações propostas com fundamento na Lei nº 9.099/95, diariamente, nos deparamos com decisões de primeiro e segundo grau em que juízes negam o recebimento de recurso inominado diante de recolhimento de preparo insuficiente, ao arrepio da sistemática estruturada no Código de Processo Civil, especialmente o artigo 1.007, § 2º, o qual dispõe:
“Art. 1.007. No ato de interposição do recurso, o recorrente comprovará, quando exigido pela legislação pertinente, o respectivo preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, sob pena de deserção.
§ 2º A insuficiência no valor do preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, implicará deserção se o recorrente, intimado na pessoa de seu advogado, não vier a supri-lo no prazo de 5 (cinco) dias.”
Nas decisões que têm predominado, na esfera dos Juizados, ao negar a oportunidade de complementação do preparo, a grande maioria dos magistrados utilizam como argumento os Enunciados de nº 80 e 168 do Fonaje (Fórum Nacional de Juizados Especiais).
O que diz o Fonaje?
Em indubitável excesso, afastando-se de seus objetivos e funções, assim dispõe a instituição:
“ENUNCIADO 80 – O recurso Inominado será julgado deserto quando não houver o recolhimento integral do preparo e sua respectiva comprovação pela parte, no prazo de 48 horas, não admitida a complementação intempestiva (art. 42, § 1º, da Lei 9.099/1995) (nova redação – XII Encontro Maceió-AL).”
“ENUNCIADO 168 – Não se aplica aos recursos dos Juizados Especiais o disposto no artigo 1.007 do CPC 2015 (XL Encontro – Brasília-DF).”
Da leitura dos enunciados, observamos que o Fórum aplica uma interpretação extensiva ao artigo 42, § 1º, da Lei n. 9.099/95, em indubitável atividade legislativa que não lhe compete, ao arrepio da legislação processual e princípios processuais constitucionais de grande envergadura (devido processo legal, contraditório, inafastabilidade da tutela jurisdicional, duplo grau de jurisdição), o que dá ensejo a inúmeras decisões de deserção do recurso interposto, por vezes, diante de valores ínfimos. Vejamos, a título de exemplo a ser seguido, acórdão que, contrariamente à grande maioria dos juízes, reconhece o equívoco da aplicação da pena de deserção, assinalando que o formalismo excessivo é a negação do próprio Estado de direito:
“Agravo de instrumento. Insuficiência de preparo – Deserção de recurso inominado. Ausência de recolhimento de singela despesa postal – Preponderância do princípio constitucional do amplo acesso à Justiça sobre a jurisprudência representada por Enunciado do Fonaje. Possibilidade de ser dada uma oportunidade de complementação do valor. Ausência de prejuízo ao contraditório. Preponderância da instrumentalidade das formas. Recurso provido” (TJSP – Agravo de Instrumento nº 0102368-53.2023.8.26.9000 – 8ª Turma Cível – Rel. Juiz Antonio Augusto Galvão de França – j. 09/01/2024)
A despeito do assertivo julgado acima destacado, sabemos que tal posição é isolada no Tribunal de Justiça de São Paulo, sendo diária a afronta ao nosso ordenamento jurídico, com decisões que, supostamente, em nome dos critérios da celeridade e especialidade da Lei nº 9.099/95, atribuem aos Enunciados do Fonaje status de norma positivada, algo semelhante à discussão sobre a contagem de dias corridos versus dias úteis, após a entrada em vigor do Código de Processo Civil, em 2016, haja vista a omissão da lei especial.
Vale lembrar, por oportuno, que a celeuma correspondente à contagem de prazo (dias corridos versus dias úteis) só foi resolvida após a promulgação da Lei nº 13.728/2018, chegando o Tribunal de Justiça de São Paulo a fixar tese de que nos Juizados Especiais Cíveis os prazos deveriam ser contados em dias corridos, conforme Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei nº 0000002-60.2017.8.26.9059, posição indubitavelmente retrógrada à luz do Código de Processo Civil de 2015, como se a contagem em dias úteis fosse a grande causa da crônica morosidade do Poder Judiciário.
As características essenciais da Lei nº 9.099/95
Uma das características da Lei nº 9.099/95, cumpre destacar, é a simplificação e desburocratização das causas de menor complexidade, particularidade que contraria a jurisprudência defensiva hoje predominante em diversos tribunais estaduais, os quais negam o básico direito constitucional de acesso à justiça de qualquer cidadão brasileiro ao aplicar a deserção ao recurso interposto sem antes facultar a complementação do respectivo preparo que se constata incompleto ou insuficiente, seja ele por erro de cálculo ou erro material, afinal, todos somos humanos e sujeitos a falhas.
Mas não para por aí, esse comportamento dos julgadores transfere ao advogado contratado todo e qualquer risco correspondente ao erro em questão, ainda que o profissional não haja de má-fé no insuficiente recolhimento, criando uma barreira quase intransponível a muitos cidadãos.
Diante dos reiterados pronunciamentos do TJ-SP, através da Turma de Uniformização, por exemplo, considerando os autos (PUIL) nº 0000043-07.2017.8.26.9001 e 0000001-25.2023.8.269040, defendemos a urgência de alteração legislativa pelo Congresso Nacional, semelhantemente ao antigo e arquivado Projeto de Lei da Câmara dos Deputados autuado sob nº 79/2015, que acertadamente propôs a seguinte redação ao artigo 42 da Lei nº 9.099/95:
“Art. 42.
§ 1º O preparo será comprovado no ato de interposição do recurso e, sendo insuficiente, acarretará deserção se, intimado, o recorrente não o complementar em cinco dias.”
Na prática, a alteração proposta colocaria fim à controvérsia e às inúmeras decisões de deserção proferidas pelos tribunais estaduais, bem como atenderia, especialmente, toda sistemática do atual Código de Processo Civil, este, como se bem se sabe, inspirado nos preceitos da Constituição, sem qualquer prejuízo ao andamento dos processos em curso.
Sobre o tema, oportuno registrar que grandes juristas defendem a referida alteração[1], sendo possível encontrar até mesmo enunciado do FPPC (Fórum Permanente de Processualistas Civis) defendendo a aplicação do artigo 1.007 nas ações que tramitam pelo procedimento da Lei n. 9.099/95, vejamos:
Enunciado 98: (art. 1.007, §§ 2º e 4º) O disposto nestes dispositivos aplica-se aos Juizados Especiais.
Conclusão
Em suma, a alteração proposta apenas reforça a garantia de acesso à Justiça e ao duplo grau de jurisdição nos Juizados Especiais, evitando assim que recursos não tenham seu mérito apreciado em virtude de meros equívocos consistentes no recolhimento incompleto de preparo, o que certamente valoriza a prestação da tutela jurisdicional, harmoniza as relações e aumenta a credibilidade da população no Poder Judiciário, permitindo a regularização do recolhimento pertinente ao preparo recursal.
Em nossa opinião, portanto, temos a possibilidade de corrigir o erro histórico de uma jurisprudência defensiva apoiada nos Enunciados nº 80 e 168 do Fonaje, ao arrepio das funções e objetivos da instituição, retomando assim a lógica sistemática da primazia do mérito prevista no Código de Processo Civil de 2015.
[1] CÂMARA. Alexandre Freitas. Juizados especiais cíveis estaduais, federais e da fazenda pública: uma abordagem crítica. 7. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 145.
CHINI, Alexandre [et. al.]. Juizados especiais cíveis e criminais – Lei 9.099/95 comentada. 6. ed., São Paulo: JusPodivm, 2024, p. 235.
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