TCU decide: presentes personalíssimos pertencem ao presidente
12 de agosto de 2024, 12h23
Presentes de uso pessoal integram acervo privado
No já famoso affair “Bolsonaro e seus presentes”, há algumas premissas que ajudam a entender porque tais bens são de sua propriedade e não da União: (1) não existe nenhuma lei ou regulamento dizendo que presentes de uso pessoal doados a presidentes da República pertençam à União; (2) na ausência dessas regras, não cabe ao poder público suprir a lacuna com interpretações genéricas, diante do princípio da estrita legalidade, ao qual se submete a administração pública; (3) segundo o regulamento em vigor, só não pertencem ao presidente da República os presentes trocados em cerimônias oficiais; (4) segundo o TCU, os presentes de caráter personalíssimo pertencem ao presidente da República; (5) o TCU acaba de decidir que o presidente Lula pode manter em sua propriedade um valioso relógio ganho em 2005; (6) o fundamento da decisão do TCU não foi o fato de o relógio ter sido doado a Lula em 2005, mas a ausência de lei e regulamento disciplinando a matéria; (7) o julgamento se aplica também a Dilma e Bolsonaro, pois o fator temporal é irrelevante neste caso, ou seja, não importa se os presentes foram doados há 20 ou há 3 anos, eles são de propriedade do presidente que os recebeu; (8) não cabe ao Poder Judiciário afirmar a existência do crime de peculato, com base no princípio da moralidade administrativa, pois, segundo a legislação em vigor, os presentes não integram o patrimônio da União; (9) se os bens não são da União, não há que se falar em apropriação de bens públicos; (10) de acordo com a CF, artigo 5º, XXXIX, só a lei pode criar crimes, pois não há crime sem lei que o defina (princípio da reserva legal), logo, interpretações judiciais não fabricam delitos.
Delito putativo: desnecessária ocultação da venda legal de bem privado
A partir dessas premissas, a conclusão jurídica é a de que os relógios e joias recebidos por Jair Bolsonaro são de sua propriedade, e não da União. Sendo assim, toda a questão relacionada à tentativa de venda desses bens torna-se irrelevante. Os bens integravam o acervo privado de Bolsonaro e, nessa qualidade, poderiam ter sido licitamente vendidos ou mantidos em seu poder.
A ação subsequente de alienação não altera o fato em sua origem: o bem era de propriedade privada. Se porventura alguém pensava estar agindo ilegalmente, esse equivocado juízo pessoal diz respeito a ele, não ao ex-presidente. Não basta a intenção de cometer um ilícito penal, é necessário que objetivamente haja uma ação definida pela legislação como crime.
O CP pune fatos, não intenções (pensiero non paga gabella; cogitationis poena nemo patitur). Independentemente do que o assessor pensava estar fazendo, não houve crime algum. Trata-se do chamado delito putativo por erro de tipo. O agente imagina estar praticando um crime, mas realiza um fato irrelevante do ponto de vista criminal. É o delito imaginário, previsto em nosso CP no artigo 17 como crime impossível pela impropriedade absoluta do objeto.
O sujeito pensa estar praticando crime, quando, na verdade, realiza um irrelevante penal. É o caso do tolo que vende talco, imaginando ser cocaína. Subjetivamente, o fato é censurável, mas objetivamente não há crime por total ausência de perigo ao bem jurídico. Os exemplos se seguem: tentar assassinar um cadáver; praticar ato obsceno, tirando a roupa numa praia de nudismo etc. No caso em tela, para que houvesse peculato, seria necessário tratar-se de coisa alheia, pois ninguém se apropria do que já lhe pertence. O que sujeito achou que fazia não importa para o Direito Penal.
Nosso artigo anterior publicado nesta ConJur
Em 11 de julho, aqui em Controvérsias Jurídicas, publicamos um artigo no qual já havíamos tratado da questão, ao afirmar que Bolsonaro não havia cometido crime porque os presentes recebidos integravam seu patrimônio privado.
Os argumentos foram os seguintes: (a) não há nenhuma lei que diga o contrário; a Portaria nº 59/2018 definia joias e relógios como bens personalíssimos; o TCU decidiu que presentes dessa natureza não integram o patrimônio da União, mas pertencem ao presidente que os recebeu; o Departamento de Documentação Histórica da Presidência da República, ao ser consultado afirmou que os presentes recebidos por Bolsonaro integravam seu acervo privado; o Decreto federal 4.344/2002, em seu artigo 3º, dispõe que só presentes trocados em cerimônias oficiais, pertencem à União; o mesmo Decreto, em seu artigo 6º, II, estabelece direito de preferência à União para a aquisição dos presentes doados ao presidente (obviamente, se a União tem direito de preferência para adquirir os presentes recebidos pelo presidente, é porque tais bens a ele pertencem, já que a União não iria comprar algo que já é seu.
Decisão do TCU em 2016 manteve esse entendimento
Em agosto de 2016, o TCU, embora tenha afastado o critério das cerimônias oficiais, manteve o fundamento do caráter personalíssimo, entendendo que tais presentes pertencem ao Presidente, e não o acervo público da União (Acórdão 2255/2016 — Pleno TCU, relator ministro Walton Alencar Rodrigues). Os presentes doados intuito personae, isto é, motivados por relações pessoais entre líderes de governo, para manifestar simpatia, admiração ou afeto pessoal, pertencem ao homenageado. Lula, Dilma e Bolsonaro estão rigorosamente na mesma situação: relógios, joias ou quaisquer outros bens personalíssimos que porventura tenham recebido, por absoluta ausência de lei a respeito, a eles pertencem.
Não houve crime de peculato
Esse crime está previsto no artigo 312, caput, do CP, e consiste em o funcionário público apropriar-se de dinheiro, bem móvel ou valor que não lhe pertencem. O pressuposto lógico é o de que o sujeito se aproprie do que não é seu. Ninguém se apropria daquilo que já lhe pertence. Em nosso sistema constitucional, não há crime sem lei que o defina (CF, artigo 5º, XXXIX), e não existe nenhuma lei que afirme que presentes de cunho pessoal recebidos por presidentes da República, pertençam à União.
Se não pertencem à União, não há que se falar em apropriação de coisa alheia, logo não existe peculato. O fato é atípico, isto é, irrelevante, por ausência do verbo “apropriar-se”. A tentativa de suprir essa lacuna mediante emprego de retórica jurídica configuraria ataque direto ao princípio da reserva legal. Somente a lei define e descreve delitos. O emprego de princípios constitucionais vagos e imprecisos para justificar a fabricação mental de delitos só existe em regimes absolutistas, nos quais, a vontade unipessoal do ditador suplanta a vontade objetiva da lei. Sem a ciência jurídica, o que resta é o arbítrio e a insegurança.
Nova decisão do TCU: não há sequer ilícito administrativo
No último dia 7 de agosto, menos de um mês após a publicação de nosso artigo, o pleno do TCU decidiu que não existe sequer infração administrativa, ao declarar o caráter personalíssimo de um relógio de alto valor recebido pelo presidente Lula em 2005.
No julgamento do TC 032.365/2023-3, relator Ministro Jorge Oliveira, o TCU reconheceu não haver lei regulando presentes recebidos por presidentes da República. É importante destacar que a decisão do TCU não limitou seus fundamentos ao caso específico do presidente Lula, mas concluiu que qualquer presente de caráter personalíssimo pertence ao presidente da República que o recebeu, diante da absoluta lacuna legislativa acerca do tema.
A lei, como corretamente entendeu o TCU, enquanto regra geral, abstrata, e impessoal, não pode ser substituída por uma interpretação subjetiva. A decisão do TCU lembrou ainda que o presidente Lula moveu a ação nº 5001104-15.2017.4.03.61140, que tramitou no TRF da 3ª Região, com a finalidade de defender seu direito de ficar com o bem, dado seu caráter personalíssimo.
Os argumentos da ação movida por Lula para ficar com o relógio, são exatamente os mesmos: ausência de regra legal regulando a questão, lacuna que persiste até os dias de hoje. Em seu voto, o eminente ministro relator aborda com incrível precisão exatamente este ponto: “Ocorre que a materialização do princípio da moralidade, em especial com fins potencialmente sancionatórios, só é isenta de dúvidas ou interpretações destoantes diante do estabelecimento de normas positivadas, já que é a clareza da regra que proporciona efetividade ao princípio, por natureza vago e abstrato. O direito sancionatório exige a anterioridade de lei específica. Portanto, expresso minha convicção de que, na ausência de norma geral e abstrata sobre o tema, não há base suficiente para exigir que os presente recebidos pelo Presidente da República devam ser incorporados ao patrimônio público. Enquanto não for editada lei específica, não consigo vislumbrar fundamento jurídico para que o Tribunal de Contas crie obrigações aos Presidentes e ex-Presidentes da República para incorporação ao patrimônio público de itens que possam ser enquadrados como bens personalíssimos”.
O TCU lembrou que o Decreto 1.171/1994 e o Decreto 4.081/2002 não se aplicam a presidentes da República, assim como a Lei 8.394/1991 e o Decreto 4.344/2002, que a regulamenta. Nenhuma dessas normas trata de recebimento de presentes por presidentes. Desse modo, “a ausência de norma própria a definir objetivamente o que pode ser considerado item de natureza personalíssima impede que o TCU determine a incorporação desses bens ao patrimônio da União”.
Decisão se aplica a todos os presidentes: mesmos fundamentos
Os fundamentos apresentados pelo TCU são claros e não deixam dúvidas de que a decisão se aplica a qualquer outro presidente da República, dado seu caráter erga omnes e seus fundamentos objetivos. Não há regra destinando tais bens ao acervo da União. Essa decisão é de 7 de agosto deste ano, posterior a todas as datas em que os presentes de todos os presidentes foram recebidos.
Se não é nem ilícito administrativo, obviamente não pode ser crime
É até possível, pela independência das instâncias, que haja ilícito administrativo, sem que haja infração penal, mas o contrário é impossível. Eu posso ser multado por estacionar em local proibido (ilícito administrativo), mas isso não significa que cometi um crime (o fato não está previsto como crime).
Mas o que não chega a ser nem ilícito administrativo, jamais será infração penal. Por exemplo: se o Fisco diz que não devo imposto, não existe crime contra a ordem tributária; se não estacionei em local proibido, não existe infração administrativa, logo jamais poderá haver infração penal; se a não devolução de um bem não configura nem ato ilícito, é claro que não pode ser crime.
Ministério Púbico: fiscal da lei não pode oferecer denúncia sem crime
Essa decisão do TCU, pela força de seus fundamentos, e, principalmente, a ausência de lei ou regulamento afirmando que os presentes pertencem à União, não pode ser ignorada pelo Ministério Público, ao qual incumbe a missão constitucional de fiscalizar a lei e defender o regime democrático (CF, artigo 127), sem subordinar-se a nada além da ordem jurídica e o Estado de Direito.
Erro de tipo inevitável: desconhecimento da elementar ‘apropriar-se’
Eis o quadro geral da questão: (a) existe um decreto federal em vigor dizendo que só pertencem à União presentes trocados em cerimônias oficiais; (b) os presentes não foram doados em cerimônia oficial de troca de presentes; (c) esse mesmo decreto federal diz que a União tem apenas direito de preferência para adquiri-los, caso o presidente queira vendê-los; (d) o TCU diz que presentes personalíssimos pertencem ao Presidente e não à União; (e) o Departamento de Documentação Histórica, ao ser consultado pela assessoria de Bolsonaro, afirma que os presentes integravam seu acervo privado; (f) o TCU, em nova decisão, afirma que, diante da ausência de legislação a respeito, os bens pertencem ao Presidente; (g) Bolsonaro recebia informações desencontradas de sua assessoria, dizendo que os presentes poderiam ser vendidos.
Ora, diante de tal situação é impossível ao ex-presidente ter tomado conhecimento de que os presentes recebidos poderiam, em tese, ser tratados como bens da União. Tal desconhecimento exclui a vontade de se apropriar, pois ninguém tem intenção de se apropriar do que julga ser seu. Sem esse conhecimento da situação de fato descrita como elemento do crime, fica excluído o dolo, isto é, a intenção de praticar o crime de peculato. Não houve peculato doloso.
O erro foi inevitável, excluindo-se também a culpa, já que até hoje não existe regra definindo se tais bens são públicos ou privados. Com isso, não há crime. É o artigo 20 do CP. Entendimento contrário, implicaria em presumir o dolo e ressuscitar a responsabilidade objetiva do direito medieval para fins não jurídicos.
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