Opinião

Alterações controversas no regime jurídico dos juros na Lei de Usura

Autor

  • é assistente judiciário do Tribunal de Justiça de São Paulo graduado em Direito pela Universidade Nove de Julho (2017) pós-graduado em Direito Constitucional pela Damásio de Jesus (2021) e pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Metropolitanas Unidas (2019).

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10 de agosto de 2024, 9h21

A publicação da Lei nº 14.905/2024 trouxe mudanças significativas ao Código Civil, especialmente nos dispositivos que regulamentam a correção monetária e os juros moratórios nas relações cíveis. Esta nova legislação introduz uma padronização na utilização de índices específicos para a atualização monetária e para os juros moratórios, além de redefinir a aplicação da Lei de Usura (Decreto nº 22.626/1933). Este artigo busca analisar as principais alterações trazidas pela nova lei, seus impactos práticos e as controvérsias que podem surgir em sua aplicação.

Contexto histórico e legal

A Lei de Usura, instituída pelo Decreto nº 22.626/1933, surgiu em um contexto econômico específico, visando a regular e limitar a cobrança de juros abusivos nas transações financeiras. Com o passar do tempo, a evolução do mercado financeiro e as novas necessidades econômicas exigiram adaptações no ordenamento jurídico brasileiro. A Lei nº 14.905/2024 é uma resposta a essas necessidades, buscando atualizar e flexibilizar as normas sobre correção monetária e juros moratórios.

Principais alterações da Lei 14.905/2024

Inadimplemento das obrigações

A redação do artigo 389 do Código Civil foi alterada significativamente:

  • Redação antiga: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.”
  • Nova redação: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros, atualização monetária e honorários de advogado. Na hipótese de o índice de atualização monetária não ter sido convencionado ou não estar previsto em lei específica, será aplicada a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), apurado e divulgado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou do índice que vier a substituí-lo.”

Essa mudança visa a simplificar e padronizar o índice de correção monetária, utilizando o IPCA como referência em casos de ausência de convenção entre as partes.

Alterações nos juros moratórios:

  • Redação antiga: Juros moratórios eram fixados segundo a taxa em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.
  • Nova redação: Os juros serão fixados de acordo com a taxa legal, que corresponde à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária (IPCA). A introdução da Selic como referência para os juros moratórios traz uma maior precisão e adequação à realidade econômica atual.

Alterações no mútuo para fins econômicos:

  • Redação antiga: Juros não poderiam exceder a taxa referida no artigo 406, permitida a capitalização anual.
  • Nova redação: Presumem-se devidos juros, e na ausência de taxa pactuada, aplica-se a taxa legal prevista no artigo 406 (Selic-IPCA). A flexibilização das normas sobre mútuo para fins econômicos visa a estimular a concessão de crédito e investimentos, ao mesmo tempo em que assegura a proteção contra juros abusivos.

Atualização monetária e juros moratórios

Introdução à atualização monetária

Gesrey/Freepik

A atualização monetária é um mecanismo essencial para preservar o valor real das dívidas ao longo do tempo, ajustando o montante devido de acordo com a inflação. Com a publicação da Lei nº 14.905/2024, houve uma padronização dos índices utilizados para essa atualização, buscando eliminar ambiguidades e proporcionar maior segurança jurídica nas relações contratuais.

Índice de atualização monetária

O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), apurado e divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi definido como o índice oficial para a atualização monetária nos casos em que não haja convenção entre as partes ou previsão legal específica.

  • IPCA como índice padrão: A utilização do IPCA como padrão traz mais uniformidade e previsibilidade para as partes envolvidas em uma relação contratual. Em situações onde o contrato não estipula um índice de correção específico, a aplicação do IPCA garante que o valor da dívida seja atualizado de acordo com a inflação oficial, protegendo o credor contra a desvalorização da moeda.

Taxa legal de juros moratórios

A nova redação do artigo 406 do Código Civil introduzida pela Lei nº 14.905/2024 define que, na ausência de convenção sobre a taxa de juros moratórios, ou quando estipulados sem taxa específica, os juros serão fixados de acordo com a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o IPCA.

  • Composição da Selic: A taxa Selic já incorpora uma componente de correção monetária em sua estrutura, o que justifica a dedução do IPCA ao calcular os juros moratórios. Esta abordagem evita a dupla contagem da inflação, proporcionando um cálculo mais justo e preciso dos juros devidos.

Justificativa da dedução

A dedução do IPCA da Selic para o cálculo dos juros moratórios é justificada pelo fato de que a Selic já contém em sua composição tanto os juros quanto a correção monetária. Assim, a dedução evita que a correção monetária seja contabilizada duas vezes, resultando em um valor mais equitativo e refletindo de forma mais precisa a obrigação financeira das partes.

Exemplos de aplicação prática

Para ilustrar a aplicação prática dessas novas regras, consideremos dois cenários:

Dívidas sem pacto de juros moratórios:

  • Nestes casos, após a atualização monetária pelo IPCA, aplicam-se os juros moratórios legais, calculados pela fórmula (Selic – IPCA). Se o resultado for negativo, os juros serão considerados zero.
  • Exemplo: Suponha uma dívida de R$ 10.000,00, atualizada pelo IPCA em 5% ao ano, e uma Selic de 8% ao ano. Os juros moratórios seriam 8% – 5% = 3%.

Dívidas com pacto de juros moratórios:

  • Se as partes estipularem uma taxa de juros moratórios convencional, esta deve respeitar o limite estabelecido pela Lei de Usura, não podendo exceder o dobro da taxa legal.
  • Exemplo: Se a taxa legal (Selic – IPCA) for de 3%, a taxa máxima de juros convencionada não pode ultrapassar 6%.

A Lei nº 14.905/2024 trouxe avanços significativos na padronização dos índices de atualização monetária e no cálculo dos juros moratórios. A aplicação do IPCA e a dedução deste da Selic para os juros moratórios estabelecem uma metodologia mais clara e justa, evitando a sobreposição de correção monetária e juros. Estas alterações visam proporcionar maior segurança jurídica e previsibilidade nas relações contratuais, além de incentivar práticas financeiras mais transparentes e equitativas.

Não aplicação da Lei de Usura

A Lei nº 14.905/2024 também definiu novas exceções à aplicação da Lei de Usura, refletindo as mudanças e necessidades do mercado financeiro moderno:

  1. Contratos entre pessoas jurídicas: A Lei de Usura não se aplica às obrigações contratadas entre pessoas jurídicas. Essa mudança visa facilitar as negociações comerciais, permitindo maior flexibilidade nas condições financeiras pactuadas.
  2. Títulos de crédito e valores mobiliários: Obrigações representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários estão isentas da aplicação da Lei de Usura. Entre esses títulos estão a letra de câmbio, nota promissória, cheque, duplicata, debêntures, cédula de crédito bancário, e letra de crédito do desenvolvimento.
  3. Instituições financeiras e afins: Obrigações contraídas perante instituições financeiras, fundos de investimento, sociedades de arrendamento mercantil e outras entidades específicas não estão sujeitas à Lei de Usura. Essa exceção se justifica pela regulação específica e supervisão a que essas entidades estão submetidas.
  4. Mercado financeiro e de capitais: Operações realizadas nesses mercados não se submetem às restrições da Lei de Usura. Isso inclui operações no mercado de crédito, mercado de capitais, mercado cambial e mercado monetário, que possuem dinâmicas e regulamentações próprias.

Impacto das alterações

As mudanças legislativas introduzidas pela Lei nº 14.905/2024 têm o objetivo de proporcionar maior segurança jurídica e previsibilidade nas relações de direito privado. As novas disposições facilitam a padronização e clareza das regras sobre correção monetária e juros moratórios, mas também apresentam desafios e incertezas:

  1. Segurança jurídica: A padronização dos índices de correção monetária e juros moratórios, como o IPCA e a Selic, visa a eliminar ambiguidades e proporcionar maior previsibilidade nos contratos e nas decisões judiciais.
  2. Flexibilidade contratual: As exceções à aplicação da Lei de Usura permitem maior liberdade nas negociações entre as partes, especialmente em contratos entre pessoas jurídicas e em operações no mercado financeiro e de capitais.
  3. Desafios na aplicação: A implementação prática das novas regras ainda gera dúvidas, especialmente quanto à metodologia de cálculo da taxa legal e à aplicação imediata das disposições em processos judiciais e contratos existentes.

Conclusão

A Lei nº 14.905/2024 representa um avanço na atualização e flexibilização das normas sobre correção monetária e juros moratórios no Brasil. As novas disposições proporcionam maior segurança jurídica e liberdade contratual, atendendo às demandas do mercado financeiro moderno. No entanto, a aplicação prática dessas regras ainda exige uma adaptação cuidadosa por parte dos operadores do direito, para garantir a correta aplicação das normas e a segurança jurídica nas relações cíveis.

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Bibliografia

BRASIL. Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933. Dispõe sobre a Lei de Usura. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 abr. 1933.

BRASIL. Lei nº 14.905, de 28 de junho de 2024. Altera dispositivos do Código Civil relativos à correção monetária e juros moratórios. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 jun. 2024.

FERREIRA, Spencer Almeida. Alterações no Regime Jurídico dos Juros na Lei de Usura: Aspectos Controvertidos. Palestra apresentada em agosto de 2024.

GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Lei 14.905/2024: novas previsões sobre atualização monetária e juros. Consultor Jurídico, 4 jul. 2024.

MEYER, Machado. Correção monetária, juros e usura: o que muda com a Lei 14.905/24. Publicações Jurídicas, 25 jul. 2024.

Autores

  • é assistente judiciário do Tribunal de Justiça de São Paulo, graduado em Direito pela Universidade Nove de Julho (2017), pós-graduado em Direito Constitucional pela Damásio de Jesus (2021) e pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Metropolitanas Unidas (2019).

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