Opinião

A Lei Maria da Penha e a magistratura paulista

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  • Laura de Mattos Almeida

    é 2ª vice-presidente da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados) diretora do Fórum João Mendes professora da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado) e coordenadora do Curso de Formação Inicial da EPM (Escola Paulista da Magistratura).

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10 de agosto de 2024, 6h35

Há 18 anos, a violência doméstica — incluindo os homicídios — deixou de ser banalizada, vista como situação natural, briga de marido e mulher na qual não se deve meter a colher. Ao completar sua maioridade, a Lei 11.340/2006, que nos remete ao nome da farmacêutica cearense Maria da Penha, vítima de tentativas de homicídio pelo marido, tornou-se um marco na história da legislação brasileira. Prova de sua relevância, pelo fato de regulamentar casos específicos de violência contra a mulher, obteve reconhecimento mundial. É considerada pela ONU (Organização das Nações Unidas) uma das três mais avançadas leis do mundo.

Ministro Gilmar Mendes (STF) cumprimenta a farmacêutica Maria da Penha

Embora sobrem motivos de orgulho, as estatísticas preocupam. Persiste uma elevação do número de feminicídios — a maioria dentro do lar. Afora a constatação de avanços, há muito que refletir e fazer pela segurança da mulher, da família, e pela reintegração social do agressor. A magistratura brasileira e paulista continua, junto aos cidadãos, empenhada nesta tarefa.

Mais do que uma alteração da legislação penal, o sancionamento da Lei 11.340/2006 representou importante instrumento de proteção aos direitos humanos das mulheres visando a uma vida livre de violência. Em seu corpo, ela trouxe mudanças estruturais importantes na medida em que as mulheres conquistaram um instrumento que não apenas pune o criminoso, mas inclui medidas de prevenção e assistência. Frise-se ainda a adoção de inovações como o reconhecimento das diferentes formas de violência — física, moral, psicológica, patrimonial e sexual.

Entre suas contribuições, a Lei Maria da Penha introduziu importantes medidas protetivas, em regime de urgência, que podem ser demandadas pela mulher em situações de risco de morte. De caráter amplo, aplica-se a todas as pessoas que se identificam com o gênero feminino, independentemente do seu sexo biológico, e determina programas educacionais com a perspectiva de equidade de gênero, raça e etnia.

O impacto da lei não foi imediato. Fez-se sentir com o passar dos anos. Estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de 2015, revela que quase uma década após a lei entrar em vigor houve diminuição em cerca de 10% no número de homicídios de mulheres.

Feminicídio

Nem tudo, porém, são louros.  Estudo do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) indica que o Brasil contabilizou 1.467 feminicídios em 2023 — crescimento de 0,8% em relação a 2022. A maior parte dos crimes ocorreu dentro de casa (64,3%) e o responsável por 84,2% das mortes foi o ex ou atual companheiro da vítima. Trata-se do maior registro desde a publicação da lei que tipifica o feminicídio. Em São Paulo, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) registrou o maior número de casos de feminicídio desde 2018. Foram 221 homicídios contra 195 contabilizados em 2022.

Ainda assim, creio ser necessário valorizar os progressos que a Lei Maria da Penha trouxe em 18 anos — um curto período em termos históricos. Nossa legislação é uma das melhores do mundo. Veja-se a utilização, pelo Judiciário, de mecanismos como as medidas protetivas. O CNJ contabilizou, entre janeiro de 2020 e maio de 2022, que o Brasil registrou 572.159 medidas protetivas de urgência para meninas e mulheres em situação de violência doméstica. Ou seja, 9 em cada 10 pedidos foram deferidos. Isso é muito positivo. Prova, com fatos e números, a adesão do Judiciário à proteção da mulher.

Temos um modelo muito bom. Quem sabe ainda possamos necessitar de ampliações e aperfeiçoamentos, mas não tenho dúvidas: órgãos como as Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher (DDM) prestam atendimento de excelência. Isso se aplica, inclusive, à Polícia Civil. O FBSP mostra que ainda temos 11 das 140 DDM no Estado de São Paulo funcionando 24 horas. Entretanto, a partir de março todas as regiões do Estado de São Paulo passaram a contar com as salas de DDM com atendimento 24 horas online. É um avanço.

Há casos em que, eventualmente, a mulher ainda acaba sendo encaminhada para uma delegacia de polícia comum. Não é o atendimento que se espera. Talvez devamos discutir a necessidade de ampliar sua estrutura. Porém, não cabe colocar em xeque o bom funcionamento desses equipamentos.

Judiciário

A violência de gênero sempre sensibilizou o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo). Logo que a Lei 11.340/2006 entrou em vigor, o Tribunal instalou Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher — a primeira foi a do Fórum do Butantã. Outras se seguiram em todas as regiões da Capital. Tal especialização se demonstrou muito positiva no sentido de atrair juízes sensíveis ao tema.

Sempre me chamou a atenção positivamente a ação da Comesp (Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo), coordenada pela desembargadora Flora Maria Nesi Tossi Silva. Louvo ainda a criação dos grupos de reflexão do juiz Mário Rubens Assumpção Filho, da Vara de Violência Doméstica de São Bernardo, que desenvolve um trabalho contínuo no combate e prevenção da violência contra mulheres.

Uma questão fundamental, neste trabalho, relaciona-se ao fato de homens envolvidos em violência de gênero serem encaminhados para tratamentos específicos. Um olhar sobre o agressor também é importante. Não temos penas perpétuas. Por mais que sejam altas, um dia ele irá cumpri-las e voltará à sociedade e, quem sabe, à família. Cabe a todos propiciar seu bom retorno.

Como 2ª vice-presidente da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados), acompanho de perto o empenho da entidade frente à questão da violência contra a mulher. Prova disso é a criação da Secretaria Apamagis Mulher, que tem entre seus objetivos a defesa das mulheres em situação de extrema vulnerabilidade. Abraçamos ainda campanhas como a “Sinal Vermelho”, voltadas ao combate à violência de gênero.

Violência que as próprias magistradas — embora teoricamente protegidas por sua posição de autoridade — eventualmente sofrem em ambiente público ou durante o desempenho da função. Portanto, celebrar e refletir sobre a importância dos 18 anos da Lei Maria da Penha é um ato que nos congrega a todos e todas — como mulheres e juízas.

Autores

  • é 2ª vice-presidente da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados), diretora do Fórum João Mendes, professora da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado) e coordenadora do Curso de Formação Inicial da EPM (Escola Paulista da Magistratura).

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