Opinião

Impossibilidade de cobrança retroativa de ICMS nas transferências de mercadorias

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7 de agosto de 2024, 15h20

No julgamento da ADC 49, o Supremo Tribunal Federal reiterou sua jurisprudência de décadas no sentido da inconstitucionalidade da cobrança de ICMS nas transferências entre estabelecimentos da mesma empresa.

O plenário ressaltou, por unanimidade de votos, que a incidência do ICMS pressupõe operações de circulação de mercadorias, assim entendidas aquelas que em que há transferência da propriedade da mercadoria, o que não ocorre com a simples remessa física dos bens entre estabelecimentos da mesma empresa.

Diversos ministros sinalizaram que essa posição era chancelada não por um precedente da corte, mas por diversos deles e por nada menos do que três  mecanismos distintos de uniformização de jurisprudência: Súmula 166 do STJ, Tema 259 do STJ e Tema 1.099 do STF. Um verdadeiro recorde em matéria de estabilidade jurisprudencial em um país marcado por fortes oscilações nas decisões judiciais.

No entanto, na mesma ADC 49, levando em conta peculiaridades bem específicas do tratamento tributário dessas transferências interestaduais, o STF modulou os efeitos da decisão de uma forma igualmente sui generis.

Contudo, vários contribuintes que, há anos, confiaram na jurisprudência e deixaram de destacar e recolher o ICMS estão sendo, agora, assombrados com a possibilidade de cobranças retroativas do ICMS nessas transferências.

O tema é bastante sensível e pode gerar uma das maiores quebras de confiança na jurisprudência já vistas.

A situação é bastante singular. Da mesma forma que houve contribuintes que destacaram e recolheram ICMS sobre essas transferências por diversos motivos plausíveis abordados na ADC 49 (e.g. pretendiam transferir os créditos de um estabelecimento para outro, possuíam incentivos fiscais com base nessa tributação da transferência, entre outros motivos), inúmeros contribuintes não destacaram nem recolheram o ICMS, nessas transferências, confiando em décadas de jurisprudência estável, inclusive no Tema 1099 do próprio STF.

Nesse último caso, muitos contribuintes não foram autuados por isso, não ajuizaram qualquer medida judicial ou só ajuizaram mais recentemente, quando o tema voltou à tona com o julgamento da ADC 49.

Spacca

Apesar de esse comportamento estar absolutamente alinhado com a jurisprudência, esses contribuintes têm sido surpreendidos com decisões judiciais que têm aplicado de forma bastante automática e irrefletida a modulação de efeitos determinada na ADC 49, sem atentar para todas as nuances da decisão em um tema aparentemente simples, mas bastante complexo no que tange à técnica decisória.

Na prática, a modulação da ADC 49 para esses contribuintes que deixaram de recolher o ICMS seguindo a jurisprudência tem sido aplicada da seguinte forma: se não há processo administrativo ou medida judicial questionando cobranças antes de 19 de abril de 2021 (ata de julgamento da decisão de mérito do STF), a cobrança do imposto, em princípio, seria válida até 31 de dezembro de 2023.

Saída de mercadoria a outro estabelecimento de mesma titularidade

Com todo respeito, decisões judiciais nesse sentido estão em completo desacordo com o que foi decidido pelo STF não só na ADC 49, mas ao longo das últimas cinco décadas.

Para se entender o problema dessas decisões recentes que aplicam a modulação de forma inadequada, é preciso examinar em detalhes as razões de decidir e o âmbito da modulação determinada pelo plenário do STF na ADC 49.

Um rápido retrospecto do processo. Em linhas gerais, a ADC 49 foi ajuizada pelo estado do Rio Grande do Norte visando a declarar a constitucionalidade do artigo 12, inciso I, da LC 87/1996, que previa como fato gerador a saída de mercadoria, inclusive destinada a outro estabelecimento de mesma titularidade.

No julgamento de mérito, a ação foi julgada improcedente, isto é, declarou-se a inconstitucionalidade desse dispositivo. Nos embargos de declaração, a modulação de efeitos foi decidida da seguinte forma:

“3. Em presentes razões de segurança jurídica e interesse social (art.27, da Lei 9868/1999) justificável a modulação dos efeitos temporais da decisão para o exercício financeiro de 2024 ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito. Exaurido o prazo, fica reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos.”

Não há dúvidas de que houve modulação de efeitos da decisão. Tampouco há dúvidas de que se ressalvaram da modulação os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão.

Mas uma leitura apressada da ementa pode dar a impressão de que, assim como ocorreu em outros precedentes do STF em matéria tributária, se estaria tratando de uma modulação pura e simples, em que a lei é considerada constitucional e eficaz para o passado e sua pronúncia de invalidade só produz efeitos prospectivos.

Contudo, esse não foi, absolutamente, o recorte de modulação que fez a corte quando se analisam os fundamentos da decisão.

A principal preocupação que motivou a modulação de efeitos, muito bem sinalizada no relatório do acórdão, pelo relator e prolator do voto-vencedor ministro Edson Fachin foi a seguinte:

“No que diz respeito ao primeiro tópico, o Embargante alega que os impactos econômicos da decisão implicam em sensível perda de arrecadação para as Unidades Federadas, afetando de igual modo os contribuintes, uma vez sendo, em seus termos, necessário o estorno do crédito por esses adquiridos. Em sua perspectiva, a ausência da pretendida modulação dos efeitos promoveria insegurança jurídica devido a revisão de operações de transferências realizadas e não contestadas no quinquênio que antecede a decisão embargada (…)”

 Como se verifica do enfoque bem dado no relatório, o que se pretendeu com a modulação foi evitar que contribuintes que houvessem destacado o ICMS no estado de origem e creditado o imposto no estado de destino, pudessem agora, com base na ADC 49, requerer a  repetição do indébito de ICMS, gerando autuações de glosas de crédito por parte dos Estados, ocasionando o que o ministro Edson Fachin bem definiu como “indesejável cenário de macrolitigância fiscal”.

Ora, uma coisa é impedir que não haja revisão de destaque e pagamentos já feitos. Outra, completamente distinta, é autorizar uma cobrança retroativa contra aqueles contribuintes que não recolheram o ICMS confiando na jurisprudência absolutamente pacífica sobre o tema.

Esse recorte bem preciso da modulação é corroborado pelos demais ministros que se manifestaram com relação ao tema. O ministro Roberto Barroso, por exemplo, define com precisão o alcance da modulação ao pontuar que ela visa a preservar situações de pagamentos e creditamentos já feitos:

“A despeito da firme jurisprudência desta Corte e do STJ quanto à impossibilidade de tributação de tal operação, diversos Estados continuaram cobrando o ICMS e muitos contribuintes fizeram os pagamentos, com o aproveitamento dos créditos. Circunstâncias excepcionais que justificam que se mantenham intactas algumas situações já consolidadas, em atenção ao princípio da segurança jurídica.”

O que se nota é que a principal preocupação dos ministros com relação à modulação era evitar tanto uma situação em que houvesse repetição de indébitos de pagamentos já feitos quanto impossibilidade de transferência de créditos, com um inusitado acúmulo de créditos nos estados de origem e de débitos, no estado de destino, em ofensa ao princípio da não cumulatividade do imposto.

A possibilidade de uma modulação que admitisse a validade de cobranças retroativas nos cinco anos anteriores a 2024 jamais foi sequer cogitada. Pelo contrário, foi expressamente rejeitada pelo STF, em especial no voto do ministro Nunes Marques, na parte em que concorda com o entendimento do ministro Edson Fachin. Confira-se as palavras duras e precisas de S. Ex.ª, combatendo firmemente qualquer cobrança retroativa:

Ora, examinado o mérito da ação, não cabe alternativa: há que dar efetivo e imediato cumprimento ao que a Corte assentou. As decisões proferidas em controle concentrado produzem eficácia desde a publicação da ata de seu julgamento, independentemente de trânsito em julgado. Eventual oposição de embargos de declaração não obsta a aplicação das teses jurídicas firmadas no precedente (…). Não há espaço para cobranças, retroativas ou prospectivas, desde a publicação da ata do julgamento em que este Tribunal se pronunciou sobre o mérito da ação, porque a inconstitucionalidade declarada retira qualquer carga de eficácia jurídica aos atos tendentes a exigir o tributo. Eventual modulação de efeitos não autoriza o Fisco a autuar contribuintes ou a cobrar o tributo de quem não o recolheu por observância à jurisprudência consolidada nos Tribunais. Em suma: se não houve autuação até o instante do julgamento de mérito, não é após a declaração de inconstitucionalidade do tributo que se fará a exigência.”

Fisco poderia cobrar contra a jurisprudência

Como se vê, o julgamento da ADC 49, em especial dos EDs, tem nuances que devem ser consideradas, sob pena de não se compreender exatamente o alcance da modulação. Ocorre que, infelizmente, uma vez decidida a questão pelo plenário do Supremo, nem sempre a aplicação da modulação tem sido feita com toda essa riqueza de detalhes.

Mas, muito pelo contrário, há notícia de precedentes em diversos tribunais do País e de julgados do próprio STF, que estariam simplesmente julgando improcedentes ações ajuizadas após 19 de abril de 2021, pelo simples fato de serem posteriores à data de corte da modulação. Na prática, essas decisões estariam, por via transversa, entendendo que o Fisco poderia, sim, cobrar o ICMS em situação que, há décadas, tem sido repelida pela jurisprudência, inclusive pela própria ADC 49.

Não nos parece que esse tipo de aplicação automática e apressada da modulação seja possível à luz da decisão do Plenário do STF na ADC 49. Menos ainda quando se considera a própria força normativa dos precedentes que o STF tem reconhecido em sua jurisprudência.

Ora, não há sentido algum o STF, por décadas, considerar inconstitucional o recolhimento do ICMS nas transferências, sistematicamente negar provimento aos recursos manejados pelo Fisco estadual, mas, de uma hora para outra — após o julgamento do Tema 1099 da Repercussão Geral em 15 de agosto de 2020, com reafirmação da jurisprudência e após a própria decisão de mérito da ADC 49, em 2021, que tem efeitos erga omnes —, passar a julgar improcedentes ações dos contribuintes e considerar legítimas cobranças de ICMS oportunistas e em franco descompasso com a jurisprudência, apenas porque referentes ao período entre 19 de abril de 2021 e 31 de dezembro de 2023. Período esse em que indiscutivelmente a cobrança já era inválida pela improcedência da ADC 49 e pela força normativa do Tema 1099.

Esse tipo de conclusão contraria o próprio alcance e a extensão que a Corte tem dado a seus precedentes, em especial àqueles firmados em precedentes vinculantes, como ocorreu nesse caso, com o Tema 1099 e a ADC 49.

No julgamento dos Temas nos 881 e 885, o STF até mesmo considerou que, uma vez decidida uma matéria em repercussão geral, declarando-se a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de um tributo, cessa a eficácia da coisa julgada existente em sentido contrário.

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Diante desse cenário, é completamente contraditório que uma inconstitucionalidade reconhecida, por anos a fio, pelo STF e reiterada tanto no julgamento do Tema 1099 quanto da ADC 49 possa ser desconsiderada, criando-se uma espécie de limbo fiscal, em que aqueles contribuintes que deixaram de recolher o tributo nessas transferências, com base na jurisprudência pacífica, sejam compelidos ao recolhimento do ICMS agora. A prevalecer essa posição e se estará, inclusive, instigando os Fiscos estaduais a formalizarem exigências fiscais retroativas e oportunistas.

Em suma, está se criando precisamente o cenário de macrolitigância fiscal que a Corte quis evitar com a modulação na ADC 49. Assim, a melhor interpretação da modulação determinada na ADC 49 é a de que devem ser “preservadas” as situações consolidadas — tanto do contribuinte que destacou e recolheu o ICMS quanto do contribuinte que não destacou e não recolheu o ICMS.

Na prática, isso significa que ações que visam à preservação de situações consolidadas, simplesmente para afastar cobranças de ICMS, mesmo que ajuizadas após 19 de abril de 2021 devem ser julgadas procedentes, já que alinhadas à ADC 49.

Esse raciocínio de preservação de situações já consolidadas foi adotado na modulação de efeitos determinada na ADI 5659, quando se declarou a constitucionalidade da incidência de ISS sobre o software e se reconheceu a validade dos pagamentos feitos no passado, tanto a título de ISS quanto de ICMS. É bem verdade que o STF foi mais expresso naquele procedente sobre o conteúdo da modulação.

Contudo, não se pode usar a modulação de efeitos ADC 49, feita em prol da segurança jurídica, para gerar insegurança e prejuízo a contribuintes que confiaram em décadas de jurisprudência estável. Uma análise detida dos fundamentos da ADC 49 não deixa dúvidas: não é cabível qualquer cobrança retroativa de ICMS sobre transferências. É nesse sentido que a modulação deve ser modulada.

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