ATAQUE À IMPRENSA

Especialistas criticam decisão de juíza do TO que tirou site DCM do ar

 

7 de agosto de 2024, 16h30

O site de notícias Diário do Centro do Mundo foi retirado do ar nesta quarta-feira (7/8) por decisão liminar da Justiça do Tocantins. A medida foi tomada em processo movido pela deputada estadual Janad Valcari (PL-TO) após o veículo ter revelado, em reportagem de novembro de 2023, que ela faturou R$ 23 milhões em contratos com prefeituras para a realização de shows da dupla “Barões da Pisadinha”, da qual foi sócia-majoritária.

janad valcari

Deputada Janad Valcari move processo por conta de reportagem do DCM

A decisão foi tomada em primeiro grau, em processo que corre sob segredo de Justiça. A defesa do DCM não havia tido acesso aos autos até então, uma vez que o site também não havia sequer sido citado formalmente sobre o andamento da ação.

A juíza Edssandra Barbosa da Silva Lourenço, da 4ª Vara Cível da Comarca de Palmas, havia determinado já em novembro a retirada da reportagem do ar, ao acolher pedido de tutela antecipada da deputada.

No entanto, devido às tentativas frustradas de citação do portal, ela determinou agora ao Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), gestor dos domínios de internet brasileiros, a derrubada de todo o site.

De acordo com o advogado Francisco Ramos, à frente da defesa do portal de notícias, será feito um pedido de reconsideração ao juízo de primeiro grau. Também será distribuído um agravo de instrumento ao segundo grau e uma reclamação ao Supremo Tribunal Federal, devido ao entendimento de que a decisão viola julgamentos da Corte.

“É uma decisão política e um atentado grave à liberdade de expressão”, diz o jornalista Kiko Nogueira, diretor do Diário do Centro do Mundo. Ele recebeu manifestações de solidariedade de juristas e figuras da imprensa.

Ataque à liberdade de imprensa

“A decisão que levou o site inteiro do DCM a sair do ar expõe a situação precária de segurança jurídica a que estão submetidos jornalistas e meios de imprensa. A decisão tem também um efeito intimidatório e inibe o trabalho da imprensa em todo o país”, escreveu, em nota, a Coalizão em Defesa do Jornalismo, que reúne a aAssociação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), o Instituto Tornavoz, a Associação de Jornalismo Digital (Ajor), a Repórteres Sem Fronteiras (RSF), o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).

“Tirar do ar um site é a potência máxima da censura, o ápice do arbítrio, do exercício exagerado do poder. O comedimento, a proporcionalidade e a legalidade devem pautar as medidas judiciais. O excesso desgasta as instituições, mina sua credibilidade e afeta o funcionamento do próprio sistema de Justiça”, diz Pierpaolo Bottini, advogado e coordenador da Comissão de Liberdade de Expressão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

“A ABMD considera a decisão uma afronta à liberdade de imprensa e ao jornalismo. A medida é ainda mais grave porque o veículo sequer foi notificado e teve acesso à decisão. Trata-se de uma censura ao veículo, utilizando-se do sistema de Justiça. Não podemos tolerar que o Judiciário seja utilizado para calar o jornalismo como em períodos sombrios da nossa história”, afirma Dri Delorenzo, presidente da Associação Brasileira de Mídia Digital.

O constitucionalista e advogado Lenio Streck também afirmou que a medida alude a tempos sombrios contra a imprensa: “Logo a Justiça proibirá o galo de cantar. Velhos tempos, velhos dias”.

“Interessante nisso é que a deputada é do PL, partido que chega a dizer, por vezes caricatamente, que, entre a liberdade e a vida, prefere a primeira. Se não fosse trágico, seria cômico. Chamemos a ministra Cármen Lúcia, quando disse: ‘cala a boca já morreu’. Decisão inconstitucional e ilegal. Mas, mais do que isso, bizarra”, disse Lenio.

O advogado Lucas Mourão, sócio da banca Flora, Matheus & Mangabeira Sociedade de Advogados, afirmou que o caso caracteriza censura prévia, por se tratar de medida radical e desproporcional.

Segundo ele, na hipótese de se considerar determinada publicação ilegal, o que exige elevado ônus argumentativo e uma sequência de critérios, a jurisprudência determina uma gradação da intervenção judicial, que deve passar por retificação da informação infringente, direito de resposta, exclusão do conteúdo e, por fim, indenização.

“Cada item com requisitos próprios, que são rigorosos e progressivamente restritivos e sempre garantindo o direito de ampla defesa e contraditório. Mas a censura prévia simplesmente não é admitida, muito menos quando o direito contraposto é o direito à honra de um agente político, que, por sua vez, tem o dever de estar submetido ao intenso escrutínio da imprensa e da sociedade, devendo suportar denúncias e críticas, ainda que duras ou cáusticas”, diz Mourão, que costuma atuar em defesa de jornalistas vítimas de assédio judicial.

Já o advogado Francisco de Assis e Silva recorreu ao poema “No caminho, com Maiakóvski, de Eduardo Alves da Costa, para comentar o caso. “Nos dias que correm a ninguém é dado repousar a cabeça alheia ao terror. Os humildes baixam a cerviz: e nós, que não temos pacto algum com os senhores do mundo, por temor nos calamos. No silêncio de meu quarto a ousadia me afogueia as faces e eu fantasio um levante; mas amanhã, diante do juiz, talvez meus lábios calem a verdade como um foco de germes capaz de me destruir”, diz trecho da obra.

A advogada Vera Chemim, especialista em Direito Constitucional e mestre em Direito Público pela FGV, declarou que “nada justifica a derrubada de um site para impedir uma suposta afronta à honra da deputada, até porque, a representante política já usou do seu direito fundamental de defesa de sua honra e imagem, ao ajuizar uma ação em face do DCM“.

Segundo a advogada, a decisão judicial “carece totalmente de razoabilidade e de proporcionalidade”, princípios constitucionais que devem ser analisados em qualquer decisão que trate de ponderação dos direitos fundamentais individuais (da deputada) e coletivos (do DCM).

Grave ofensa

Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, afirmou que a decisão “é uma grave ofensa, no plano formal, ao direito de defesa, porque restringiu o direito fundamental de livre expressão e a liberdade de imprensa por meio de uma decisão provisória, por uma decisão de antecipação da lide, sem direito de defesa. É uma grave ofensa ao direito de livre expressão e liberdade de imprensa no país”.

“É da natureza dos órgãos noticiosos criticar ações políticas em que haja questionamento do seu conteúdo, da transparência etc. Então, na realidade, a liberdade de divulgar fatos de interesse público foi restringida inconstitucional e indevidamente pelo Judiciário. É um caso grave de censura e de ofensa à liberdade de imprensa. Não é apenas o DCM a vítima disso, eu diria que é a liberdade de imprensa no país”, avaliou.

Georges Abboud, professor de Direito Constitucional da PUC-SP e do IDP-DF, opinou que a decisão cometeu censura.

“Até é admissível, desde que haja o devido processo legal, que algum site que pregue o racismo, faça discurso de ódio, veicule fake news, seja alvo de uma medida extrema, como é a retirada do ar ou até a revogação da concessão — no caso de emissora de rádio ou TV. No caso do DCM, contudo, ao que tudo indica o site divulgou uma notícia desabonadora para uma determinada política e sob o pretexto de não se conseguir receber retorno desse portal eletrônico, a Justiça o retirou do ar, impedindo os jornalistas de trabalharem e gera vários problemas. Então, me parece que é uma decisão condenável e, provavelmente, quando for submetida ao Supremo Tribunal Federal, vai ser cassada, como o STF já fez em outras oportunidades nas quais se cometeu censura prévia.”

Fernando Hideo, advogado criminalista sócio do Warde Advogados, professor de Direito Penal na Escola Paulista de Direito, disse que “não se pode admitir que a Justiça tire do ar um site inteiro por conta de uma matéria jornalística”. “No caso concreto, sequer a matéria poderia ser removida, porque se trata de jornalismo reportando fatos, sem mentiras ou agressões a quem quer que seja. Tirar do ar, desta forma, um portal de jornalismo é um atentado inadmissível à liberdade de imprensa. Portanto, a decisão é inconstitucional e deve ser revertida imediatamente.”

O ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil José Roberto Batochio ressaltou o autoritarismo da decisão.

“Esse ato de violência contra tão fundamental direito, sempre assegurado nos regimes de liberdade, qual seja, a liberdade de imprensa, mostra que o autoritarismo insiste em ameaçar nossa democracia. E o faz sob a aparência da legalidade, a partir de setores do Poder Judiciário. Até quando?”, questionou.

Nota da ABI

Em nota, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) repudiou a decisão, a qual disse ser “inconstitucional” e “arbitrária”.

“É inconcebível que a reclamação da deputada estadual Janad Valcari (PL), insatisfeita com a reportagem publicada pelo DCM, em novembro de 2023, tenha resultado nessa violenta censura contra a publicação. Na ocasião, o DCM divulgou que a deputada faturou R$ 23 milhões com um esquema que envolvia prefeituras locais e a banda Barões da Pisadinha, empresariada por ela”, afirmou a entidade.

Leia a nota:

ABI REPUDIA DECISÃO QUE RETIRA DO AR O SITE DCM

A ABI – Associação Brasileira de Imprensa, por meio da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos, repudia com veemência a decisão inconstitucional do Tribunal de Justiça do Tocantins que, de forma arbitrária, retirou do ar o site do DCM – Diário do Centro do Mundo, que existe há mais de 13 anos.

A decisão torna-se ainda mais absurda quando se constata que o proprietário do DCM foi pego de surpresa, ao ver o site excluído da internet. Embora o Judiciário de Tocantins tenha afirmado que tentou contato com ele, no mínimo não o fez com o devido cuidado e imparcialidade.

É inconcebível que a reclamação da deputada estadual Janad Valcari (PL), insatisfeita com a reportagem publicada pelo DCM, em novembro de 2023, tenha resultado nessa violenta censura contra a publicação. Na ocasião, o DCM divulgou que a deputada faturou R$ 23 milhões com um esquema que envolvia prefeituras locais e a banda Barões da Pisadinha, empresariada por ela.

O Tribunal de Justiça de Tocantins, seus juízes e desembargadores ignoraram a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde o famoso julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 130), em novembro de 2009, de que a Constituição de 1988 não admite em qualquer hipótese qualquer tipo de censura.

A decisão tomada contra o site DCM, bem como o assédio judicial e a perseguição a jornalistas, é inconstitucional, fere a jurisprudência do STF e por isso deve ser repudiada e imediatamente revogada.

Rio de Janeiro, 08 de agosto de 2024

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

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