finanças e tecnologia

'Há um mito de que fintechs não são supervisionadas', diz diretora executiva da Zetta

Autor

4 de agosto de 2024, 9h51

A alegação de que fintechs não são reguladas ou supervisionadas é uma falácia. Elas se sujeitam a diversas regulamentações infralegais sobre segurança cibernética, prevenção à lavagem de dinheiro, proteção de dados etc. Mesmo aquelas não supervisionadas de forma direta pelo Banco Central estão vinculadas a uma instituição maior — que é fiscalizada — e ainda seguem uma regulação com relação a suas parceiras.

Spacca
Fernanda Garibaldi

É o que aponta a advogada Fernanda Garibaldi, diretora executiva da Zetta, associação que representa quase 30 fintechs. Por sua atuação semelhante à Federação Brasileira de Bancos (Febraban), entidade patronal que representa os bancos, a própria advogada descreve a Zetta como a “Febraban das fintechs”.

Garibaldi construiu a carreira como advogada em diferentes vertentes do Direito Econômico. Atuou, por exemplo, com Direito Concorrencial e Direito Bancário — neste último, especialmente na parte de regulação financeira. Como o tema está na fronteira entre Direito e Economia, ela foi convidada pelas fintechs para o cargo na Zetta.

A associação representa empresas que entraram no setor financeiro nos últimos dez anos. Embora as fintechs tenham modelos de negócios diferentes, as associadas da Zetta atuam principalmente com serviços de pagamento.

A diretora executiva da associação explica que o setor cresceu na esteira da Lei dos Meios de Pagamento, sancionada em 2013. Os conceitos e princípios trazidos pela norma permitiram que diversas empresas — não necessariamente já atuantes no setor financeiro — passassem a oferecer cartões, contas e carteiras digitais.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur O que caracteriza uma fintech?
Fernanda Garibaldi  Fintech é um termo jornalístico — não um termo jurídico — que abrange uma série de novos modelos de negócios do setor financeiro. É o acrônimo de finanças e tecnologia. Esta expressão remonta a um relatório da década de 1990 de um banco, que já falava de empresas que não eram propriamente do setor financeiro, mas que atuavam na área: desde empresas que fazem prevenção a fraude e oferecem esses serviços para as instituições financeiras até empresas que estão em alguma etapa da cadeia dos serviços financeiros, principalmente da cadeia de serviços de pagamento. Em suma, são empresas de tecnologia que atuam no setor financeiro.

ConJur Como as fintechs cresceram tanto no Brasil nos últimos anos?
Fernanda Garibaldi — É uma área que ganhou mais preeminência nos últimos dez anos, por causa da Lei 12.865/2013, a Lei dos Meios de Pagamento, que é conhecida como a “lei-mãe” das fintechs.

Esta lei trouxe alguns conceitos que pavimentaram o surgimento das empresas: o que é um arranjo de pagamento, o que é uma instituição de pagamento, moeda eletrônica, etc. Mas o que ela traz de importante são alguns princípios que deveriam nortear a regulamentação desse mercado, que ficou a cargo do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional (CMN).

A lei estabeleceu alguns núcleos importantes, como interoperabilidade, acesso não discriminatório a esses arranjos e a promoção da inovação e da competição nesse mercado.

Até mais ou menos 2009, no Brasil, poucos varejistas aceitavam mais de um cartão de crédito em seus estabelecimentos. Não existia, praticamente o comércio on line. Era uma estrutura muito cara de se ter. Até 2009/2010, um cartão de uma determinada bandeira só era lido em uma determinada maquininha (point of sale), com quem já havia um relacionamento comercial.

Em pouco mais de dez anos, houve o surgimento dessas empresas, na esteira dessa legislação. Empresas que não necessariamente atuavam no setor financeiro criaram suas carteiras digitais, ofertando cartão ou uma conta para o seu cliente. A lei de 2013 incentivou a competição nesse mercado.

ConJur O que faz a Zetta?
Fernanda Garibaldi — A Zetta é uma associação sem fins lucrativos, fundada pelo Nubank e pelo MercadoPago, que é o braço financeiro do Mercado Livre.

É uma entidade de classe que representa as fintechs — essas empresas que entraram no setor financeiro nos últimos dez anos, sobretudo por conta da Lei dos Meios de Pagamento. A missão é justamente dar representatividade institucional para elas.

A Zetta representa quase 30 empresas que atuam no setor financeiro, desde bancos digitais — como é o caso do Nubank — até varejistas — por exemplo, a Fintech Magalu, braço de meios de pagamento da Magazine Luiza. Há uma série de modelos de negócios diferentes, com a unicidade de serem empresas que atuam no setor financeiro, que querem se ver representadas em uma associação cuja missão é promover a discussão sobre competição no setor financeiro.

A Zetta promove uma agenda de políticas públicas: representa o interesse dessas empresas e faz engajamento junto aos agentes públicos que tomam decisões diariamente sobre as normas regulatórias do país, como o Ministério da Fazenda e o Congresso.

ConJur Por que uma advogada foi escolhida para comandar a Zetta?
Fernanda Garibaldi — Muito pela minha conexão profissional e acadêmica com o assunto. Eu já atuava com Direito Econômico e Bancário. Minha tese de doutorado é sobre competição no setor financeiro, especialmente no setor de meios de pagamento.

As empresas precisavam de alguém “neutro”, que não fosse executivo de nenhuma das associadas. A ideia era ter um observador independente, que validasse e legitimasse os processos internos de governança e as discussões, sem se restringir à pauta de duas ou três empresas, como acontece em algumas associações. Obviamente, para isso, é preciso conhecimento técnico.

ConJur — Sua atuação exige conhecimento em Direito?
Fernanda Garibaldi — Exige, porque boa parte do trabalho é regulatório. A associação tem grupos de trabalho de Pix, prevenção à fraude, open finance, criptomoedas, mercado de benefícios, vale-alimentação, vale-refeição etc. Toda a discussão que acontece nesses grupos envolve uma avaliação técnica e jurídica. Mas é preciso de mais do que apenas o conhecimento jurídico, porque, obviamente, há uma parte de composição que é administrativa, de orçamento. Não é possível prescindir do conhecimento jurídico, mas ele precisa ser ampliado com outras competências, de gestão, governança, finanças.

ConJur As fintechs estão sujeitas ao mesmo regime de fiscalização e responsabilização que os bancos?
Fernanda Garibaldi — Depende da natureza jurídica do modelo. Fintech não é um termo jurídico. A maior parte delas é de instituições de pagamento, que são diferentes de instituições financeiras. Cada uma está sujeita a um regime regulatório.

Há instituições de pagamento que cresceram bastante e lideram um conglomerado financeiro. Essas instituições maiores hoje estão sujeitas aos mesmos regimes de risco — o que chamamos de harmonização prudencial — de um banco.

Ou seja, a depender do porte, a instituição de pagamento pode estar sujeita às mesmas regras de um banco. Mas isso não necessariamente vai ser sempre assim. Se a instituição é pequena, ela está sujeita às regras das instituições de pagamento menores.

O regime é diferente porque a discricionariedade que um banco tem para usar o dinheiro, aplicar e fazer investimentos é maior do que a de uma instituição de pagamento. As regras são diferentes porque a natureza jurídica regulatória dos modelos de negócio é diferente.

ConJur Quem responde por fraudes em sistemas das fintechs?
Fernanda Garibaldi A partir da lei de 2013, o BC determinou que a instituição de pagamento só passaria a ser uma instituição supervisionada e autorizada por ele a partir de determinado volume de transações de pagamento ou de recursos mantidos em conta.

Antes disso, não fica sob a supervisão do BC, por uma escolha regulatória, porque uma instituição muito pequena não tem capacidade de ofertar risco sistêmico. Então não há por que a autoridade monetária gastar esforços para supervisionar uma entidade pequena.

A regulamentação infralegal já permite que existam instituições que não estejam sob supervisão do BC e que estejam vinculadas a outra instituição maior. Por exemplo, um participante indireto pode estar vinculado a uma instituição financeira e não ser ainda uma instituição autorizada a atuar pelo BC. Mas existem uma série de regras para esse participante indireto, inclusive em relação a esse próprio parceiro, que é uma instituição regulada.

Assim, recai sobre essa instituição um pesado ônus regulatório, inclusive com relação aos seus parceiros. Há uma falácia de que essas empresas não estão sendo vistas pelo BC. Podem não estar sendo vistas de maneira direta, mas estão sendo vistas de maneira indireta, pois estão vinculadas a uma instituição supervisionada.

ConJur Independentemente do regime ao qual estejam sujeitas, as fintechs hoje estão preparadas para identificar fraudes digitais?
Fernanda Garibaldi Não há como falar em termos genéricos que todas as fintechs estão preparadas. Depende da instituição. Existem hoje fintechs extremamente robustas. Hoje na Zetta não temos fintechs pequenas. Então, a perspectiva que tenho é de empresas muito bem estruturadas.

ConJur Quais os debates jurídicos atuais na tentativa de promover a competitividade no setor financeiro?
Fernanda Garibaldi   Discute-se no Congresso o projeto de lei de regulamentação da inteligência artificial. A Zetta tem seu posicionamento: já existem normas setoriais bastante importantes no setor financeiro e de meios de pagamento, que devem ser levadas em consideração, para se ter uma abordagem integrativa das normas e não se criar uma sobreposição.

A reforma tributária prevê um mecanismo chamado split payment, que consiste em atrelar o recolhimento do tributo à transação de pagamento. Também colaboramos imensamente nesta discussão com a Fazenda e com o Congresso. Ainda buscamos melhorar alguns pontos, mas, de maneira geral, ficamos satisfeitos com o projeto de lei complementar, que acatou a isonomia entre os arranjos de pagamento e fez menção expressa à não responsabilização tributária das empresas de meios de pagamento.

Temos um projeto de open finance bastante importante. O open finance é um projeto bastante ambicioso de reduzir a assimetria de informação no setor financeiro e permitir o compartilhamento de dados entre as instituições financeiras e demais autorizadas pelo BC. Esse compartilhamento, mediante o consentimento do cidadão, visa a melhorar o serviço financeiro de pagamento e fazer uma oferta mais customizada de produtos e serviços.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!