Valor da causa x valor da execução nos Juizados de Fazenda Pública
2 de agosto de 2024, 18h19
Os Juizados Especiais da Fazenda Pública, instituídos pela Lei nº 12.153/2009, representam um importante avanço no acesso à Justiça, oferecendo uma via mais célere e simplificada para demandas contra o poder público. No entanto, a aplicação prática dessa legislação tem suscitado questões complexas, especialmente no que tange à relação entre o valor da causa e o valor da execução.
O artigo 2º da Lei 12.153/2009 estabelece a competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública para causas cujo valor não ultrapasse 60 salários-mínimos. Essa limitação, inicialmente concebida como critério de fixação de competência, tem sido interpretada por alguns como uma espécie de teto para o valor da execução, gerando controvérsias significativas na fase de cumprimento de sentença.
Dois problemas práticos decorrentes dessa questão têm surgido com frequência: (1) o autor indica valor de causa equivocado abaixo de 60 salários-mínimos, fazendo com que a causa tramite no juizado quando deveria tramitar na Vara. No entanto, nem o juiz determina, de ofício, a correção do valor, nem o réu (Fazenda Pública) impugna o valor da causa, e o processo segue seu trâmite e transita em julgado com sentença de procedência.
Nesses casos, discute-se se o valor da execução deve se limitar ao teto dos juizados com base em uma suposta “renúncia tácita” ao valor excedente a 60 salários-mínimos, como uma espécie de sanção ao autor pelo equívoco na indicação do valor de causa; (2) o autor propõe ação meramente declaratória perante os juizados, com valor de causa irrisório, e após obter a procedência da demanda e o trânsito em julgado ingressa com nova ação perante a Vara cobrando a totalidade dos valores devidos.
Tais discussões e seus desdobramentos levaram o Tribunal de Justiça de Goiás a admitir recentemente o IRDR (Tema 41) com a seguinte questão: “(In)competência da Vara das Fazendas Públicas para processar e julgar ação de cobrança subsidiada em título judicial meramente declaratório, formado em demanda anterior que tramitou perante os Juizados Especiais das Fazendas Públicas, quando o valor pleiteado ultrapassa o montante de 60 (sessenta) salários-mínimos (artigo 2º, Lei 12.153/2009)”. Esse incidente evidencia a relevância e atualidade da discussão, bem como seu impacto na prática forense.
Este artigo propõe-se a analisar a distinção fundamental entre o valor da causa e o valor da execução no contexto dos Juizados Especiais da Fazenda Pública. Busca-se elucidar as implicações processuais dessa distinção, explorando temas como a questão da renúncia tácita, os efeitos da coisa julgada e as consequências de eventuais erros na fixação do valor da causa.
Valor da causa e valor da execução: uma análise comparativa
A distinção entre o valor da causa e o valor da execução é fundamental para a compreensão dos limites e possibilidades nos Juizados Especiais da Fazenda Pública. Embora relacionados, esses dois conceitos têm propósitos e implicações processuais distintas.
O valor da causa, conforme estabelecido no artigo 291 do Código de Processo Civil, é um requisito da petição inicial e serve a diversos propósitos processuais, incluindo a determinação de competência, o cálculo de custas e a fixação de honorários advocatícios. No contexto dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, o valor da causa é particularmente relevante para a determinação da competência, conforme o artigo 2º da Lei 12.153/2009, e em especial porque essa competência é absoluta por expressa disposição legal (artigo 2º, §4º, Lei 12.153/2009).
Ou seja, não cabe ao autor da demanda optar por demandar perante os Juizados de Fazenda Pública. Se o objeto da demanda não estiver dentro das hipóteses de exclusão da competência dos Juizados de Fazenda Pública (artigo 2º, §1º, Lei 12.153/2009), e o valor da causa atribuído não ultrapassar os 60 salários-mínimos, é imperativo que a demanda tramite perante os juizados.
Por outro lado, o valor da execução refere-se ao montante efetivamente devido ao final do processo, após a prolação da sentença e seu trânsito em julgado, que se converte em título executivo judicial. Esse valor pode diferir significativamente do valor da causa inicialmente atribuído, devido a diversos fatores, como a inclusão de juros, correção monetária, a procedência parcial dos pedidos, ou mesmo a prolação de sentença ilíquida.
Limite para a execução
A questão que se coloca é se o limite de 60 salários-mínimos, estabelecido como critério de competência, deve também ser aplicado como um teto para o valor da execução. A princípio essa interpretação não encontra respaldo expresso na legislação processual civil como um todo, e nem na Lei 12.153/2009, que trata o limite de valor como critério de competência, e não como um limite para a execução.
O valor da causa, aliás, jamais foi considerado como critério para limitar-se o valor da execução. Pode e deve ser critério para limitar o pedido, mas não o valor da execução, pois este é fundado no título executivo judicial transitado em julgado, que se desvincula totalmente do pedido inicial. A título de exemplo, se o autor pede R$ 10 mil e transita em julgado sentença ultra petita que o concede R$ 20 mil, não pode o executado pretender limitar a execução a R$ 10 mil, pois o título transitado em julgado efetivamente fixou a condenação em R$ 20 mil (daí se há algum instrumento processual que impugne a sentença com esse tipo de vício é uma questão que será abordado em outro tópico).
Ademais, é importante considerar que muitas ações nos Juizados Especiais da Fazenda Pública envolvem prestações periódicas ou vencimentos futuros, cujo valor total pode não ser precisamente determinável no momento da propositura da ação. Nestes casos, o valor da causa é fixado com base no valor devido até a propositura da demanda, com o acréscimo de 12 parcelas vincendas, podendo divergir substancialmente do valor final da execução.
A jurisprudência nacional, em especial no âmbito dos Juizados Federais, já é pacífica no sentido de que a execução não se limita ao teto de 60 salários-mínimos, em especial em razão das prestações vencidas durante o trâmite da ação, pois caso não fosse assim o demandante seria penalizado pela demora do Poder Judiciário, lembrando que a competência é absoluta e, por consequência, não há a possibilidade de não demandar perante o Juizado se o valor da causa for menor que 60 salários-mínimos.
Portanto, é relevante aqui estabelecer como premissa que o valor da causa, de acordo com a legislação processual, nada mais é que um critério de fixação de competência dos Juizados de Fazenda Pública, da mesma forma que o é para a fixação de competência dos Juizados Federais, mas o que determinará o valor da execução é o título executivo judicial transitado em julgado.
Coisa julgada e seus efeitos na execução
O que acontece, então, quando o autor indica valor de causa abaixo de 60 salários-mínimos, quando na verdade o valor da causa corretamente calculado ultrapassaria esse limite de alçada?
A legislação processual civil permite, em primeiro lugar, que o próprio juízo, de ofício, corrija o valor da causa ou determine ao autor que corrija o valor da causa (artigo 292, §3 do CPC). Caso o juízo não tome essa providência, o réu terá o ônus de apontar a incorreção do valor da causa em sua contestação (artigo 337, III, CPC).
Imaginemos, então, que nada disso foi feito, e foi prolatada sentença de procedência, que transita em julgado. Nesse caso, o que temos é uma sentença transitada em julgado prolatada por juízo incompetente, mas ainda assim um título executivo judicial exequível, protegido pelo manto da coisa julgada.
Diante disso, surge a questão: pode a parte executada, na fase de cumprimento de sentença, alegar excesso de execução com base no limite de competência dos Juizados, quando não impugnou o valor da causa durante a fase de conhecimento? O artigo 535 do CPC, que trata das matérias que podem ser alegadas na impugnação ao cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública, não inclui expressamente a discussão sobre o limite de competência dos Juizados. Essa alegação de excesso de execução, em verdade, acaba se tornando uma impugnação ao valor da causa por via transversa e após o trânsito em julgado da sentença, com fundamento na alegação de que o autor teria renunciado tacitamente a parcela do seu direito quando propôs a demanda perante o juizado.
Essa, no entanto, não parece ser a melhor solução. Como visto, a legislação processual civil oferece mecanismos para que seja possível fazer o controle do valor da causa, autorizando ao próprio juízo agir de ofício e também permitindo ao réu que aponte o equívoco. Além disso, a Súmula nº 17 da TNU dispõe que “não há renúncia tácita no Juizado Especial Federal, para fins de competência”, entendimento que deve, a princípio, ser aplicado aos Juizados de Fazenda Pública dada a semelhança (para não dizer equivalência) entre a Lei 10.259/2001 e 12.153/2009.
A incorreta indicação do valor da causa, no contexto analisado, faz com que o Juizado de Fazenda Pública seja incompetente, mas uma vez transitada em julgado sentença de mérito, ainda que prolatada por juízo incompetente, a doutrina e a jurisprudência invocam a impossibilidade de se alegar questões que poderiam/deveriam ter sido alegadas durante a fase de conhecimento (artigo 508, CPC), incluídas eventuais nulidades, o que se conhece por “efeito preclusivo da coisa julgada” e/ou “efeito sanatório geral da coisa julgada”.
Limitar o valor da execução ao teto dos Juizados, nessas circunstâncias, parece vulnerar o título executivo judicial e violar a coisa julgada formada no processo.
Existem precedentes da Justiça Federal nessa exata situação que solucionam a questão da forma como aqui sugerido. A título de exemplo, há precedente já antigo da TNU:
“2 – Não suscitada a incompetência absoluta do JEF em decorrência do valor da causa no momento da propositura da ação exceder o limite de sessenta salários mínimos durante toda a fase de conhecimento consuma-se a preclusão. 3 – A limitação, após o trânsito em julgado, do valor do título executivo ao limite de sessenta salários mínimos à data do ajuizamento da ação, implica, por via oblíqua, o reconhecimento da possibilidade de renúncia tácita, por via direta, afronta à garantia constitucional da intocabilidade da coisa julgada.” (Acórdão 200733007130723, rel. juiz federal Alcides Saldanha Lima, j. 11/10/2011, DOU 25/11/2011)
No mesmo sentido, e mais recentemente:
“A redução do valor da condenação, após o trânsito em julgado da sentença, mediante sua limitação ao teto do Juizado no momento da propositura da ação, esbarra na garantia constitucional da coisa julgada.” (Recurso inominado RecInoCiv 0000098-86.2016.4.03.6310, juiz federal ISADORA SEGALLA AFANASIEFF, TRF3 – 13ª Turma Recursal da Seção Judiciária de São Paulo, Intimação via sistema Data: 23/04/2022)
Portanto, a melhor solução de direito é que uma vez formada a coisa julgada, não parece correto pretender a limitação do valor da execução ao teto dos Juizados, considerando que a incorreta indicação do valor da causa poderia e deveria ter sido discutida durante a fase de conhecimento do processo. Formado o título executivo, repita-se, o valor dado à causa pouco importa para fins de execução.
Aspectos processuais de eventual erro na fixação do valor da causa
Por fim, resta examinar qual a providência processual eventualmente cabível nos casos de trânsito em julgado de demanda que atribui valor incorreto à causa, gerando a incompetência absoluta dos Juizados Especiais de Fazenda Pública.
A resposta a essa questão é dada pela própria legislação processual civil, na medida em que a incompetência absoluta é considerada um vício rescisório, admitindo a rescisão da sentença transitada em julgado por meio da ação rescisória (artigo 966, II, CPC).
O Superior Tribunal de Justiça entende que “a incompetência absoluta do Juízo para o processo de conhecimento deve ser alegada em ação própria se a sentença já transitou em julgado” (AgInt no AREsp n. 1.832.782/ES, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, julgado em 29/11/2021, DJe de 1/12/2021.), o que significa, em outras palavras, que essa matéria não é arguível na fase de cumprimento de sentença.
No entanto, não se pode ignorar que a ação rescisória não é admitida perante os Juizados Especiais, conforme estabelecido no artigo 59 da Lei 9.099/95, aplicável subsidiariamente aos Juizados Especiais da Fazenda Pública.
A solução, então, talvez resida na possibilidade de ajuizamento da ação rescisória contra sentença transitada em julgado oriunda de Juizado de Fazenda Pública perante o Tribunal de Justiça, a exemplo do entendimento que se firmou acerca da competência do Tribunal de Justiça para processar e julgar mandado de segurança cujo objeto seja justamente a fixação da (in)competência de Juizado Especial.
Não se tem notícia de ação rescisória ajuizada nos termos propostos no parágrafo anterior, mas pelo menos parece ser essa a melhor solução de direito para o problema proposto, ao invés de se adotar a solução de limitar o valor da execução ao teto dos Juizados de Fazenda Pública.
Conclusão
A análise aprofundada da relação entre o valor da causa e o valor da execução nos Juizados Especiais da Fazenda Pública revela uma questão complexa e de grande relevância prática. A conclusão que se extrai deste estudo é clara: não é juridicamente adequado limitar o valor da execução ao teto de 60 salários-mínimos estabelecido para a competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública.
Esta posição fundamenta-se em três pilares principais: (1) a distinção fundamental entre valor da causa e valor da execução, sendo o primeiro um critério de fixação de competência, enquanto o segundo deriva do título executivo judicial transitado em julgado; (2) o respeito à coisa julgada e seus efeitos, que impedem a rediscussão de questões que poderiam ter sido levantadas durante a fase de conhecimento; (3) a existência de mecanismos processuais adequados para o controle do valor da causa durante a fase de conhecimento, tanto pelo juízo (de ofício) quanto pelo réu.
É crucial enfatizar que a responsabilidade pelo controle adequado do valor da causa recai sobre o juízo e o réu durante a fase de conhecimento. A tentativa de limitar o valor da execução após o trânsito em julgado da sentença representa uma violação à coisa julgada e uma forma inadequada de corrigir eventuais erros na fixação da competência.
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