Sub-rogação legal prevista no artigo 786 do Código Civil
1 de agosto de 2024, 8h00
1. A delimitação do problema [1]
O presente texto tem como objetivo enfrentar o seguinte problema: em caso de contrato de seguro celebrado como garantia de eventual descumprimento contratual, o artigo 786 do Código Civil [2] implica, por si, a eficácia direta de convenção de arbitragem relativa ao contrato segurado perante o segurador que, dela, não participou?
A resposta, parece-nos, é negativa.
São três os principais pontos que destacaremos: (1) a natureza, o fenômeno e o regime da sub-rogação legal, que não se confunde com a cessão de crédito; (2) a distinção entre essas duas operações contratuais; (3) a relatividade dos efeitos da convenção de arbitragem.
2. Sobre o pagamento com sub-rogação
Em nosso sistema jurídico, a sub-rogação tem natureza mista: é meio de satisfação do crédito e é forma de transmissão de situação jurídica ativa, a título singular ou particular. Tem, portanto, simultaneamente, eficácias extintiva e translativa. Satisfeito o crédito, em razão do adimplemento feito pelo terceiro interessado, a relação originária extingue-se (total ou parcialmente); nada obstante, o crédito remanesce, deslocando-se, em seu polo ativo, para o terceiro que adimpliu [3].
A ratio da norma é a garantia da operação subjacente ao pagamento pelo terceiro: é um reforço de reembolso, uma garantia de restituição para o terceiro que adimple [4]. A sub-rogação serve para substituir a posição de credor, do originário para aquele que pagou a dívida, justamente para impedir o enriquecimento ilícito do devedor, com o consequente empobrecimento de quem realmente adimpliu [5].
Por esse motivo, a sub-rogação é meio de proteção ao terceiro, o novo credor.
Em nosso sistema, a sub-rogação pode ser legal ou convencional.
É legal a sub-rogação que decorre da incidência do artigo 346 do Código Civil ou de outra previsão normativa específica, como no caso do artigo 786 do Código Civil, quando verificada uma das hipóteses fáticas previstas.
Nesses casos, a sub-rogação tem como causa o pagamento, um ato-fato jurídico, aquele cujo suporte fático “prevê uma situação de fato a qual, no entanto, somente pode materializar-se como resultante de uma conduta humana” [6]. O conteúdo da vontade é irrelevante nesse caso, já que não é ele que é apreendido pela norma [7].
O pagamento, como causa da sub-rogação, não é ato jurídico negocial; a vontade, aqui, é irrelevante para a apreensão do fato jurídico. E essa é uma das principais diferenças entre a sub-rogação e a cessão de crédito.
A sub-rogação legal não decorre de exteriorização de vontade das partes, não tem fonte negocial. Trata-se de efeito jurídico previsto na norma que incide com o pagamento. É nesse sentido que o artigo 346 do Código Civil diz que se opera a sub-rogação “de pleno direito”.
É convencional a sub-rogação quando a eficácia translativa do pagamento de terceiro é decorrente do exercício do autorregramento (artigo 347 do Código Civil [8]). O artigo 348 do Código Civil dispõe que, “na hipótese do inciso I do artigo antecedente, vigorará o disposto quanto à cessão do crédito”. Cuida-se de disposição restrita à sub-rogação convencional; ela não se refere à sub-rogação legal.
A sub-rogação não se confunde com a cessão de crédito. Na cessão de crédito, o polo ativo altera-se em razão da exteriorização de vontade do credor originário (fonte negocial, portanto). Por outro lado, não há satisfação do credor originário (não há eficácia satisfativa/extintiva). Há apenas transmissão da titularidade da situação ativa, que se desloca de um patrimônio para outro, sem que se satisfaça o crédito.
A cessão de crédito tem como ratio possibilitar a circulação do crédito, como operação econômica própria e diversa daquela que originou o crédito cedido. A circulação do crédito em si não é finalidade imediata da sub-rogação, que, como visto, é meio de proteção do terceiro que paga. Por isso mesmo, ao sub-rogado só é devido o pagamento até a quantia desembolsada (artigo 350 do Código Civil [9]). A cessão de crédito, por seu turno, possui caráter especulativo; pode o cessionário cobrar a totalidade do crédito cedido (se cedido totalmente), ainda que o valor pago ao cedente tenha sido inferior ao valor total do crédito.
São institutos jurídicos distintos, que traduzem fatos jurídicos distintos, que irradiam ou abrangem efeitos próprios. Possuem, por isso, regimes jurídicos distintos.
A sub-rogação também não se confunde com a cessão de posição contratual (que também é negócio jurídico). O sub-rogado não se torna parte no contrato ou na relação contratual celebrado entre o credor originário e o devedor.
Em síntese, a hipótese do artigo 786 do Código Civil é de sub-rogação legal. Não há cessão de posição contratual: o segurador não passa a ser parte no contrato segurado. Em princípio, também não há cessão de crédito, nem sub-rogação convencional. O efeito da sub-rogação decorre da lei, em razão do pagamento, e não de vontade das partes.
3. A sub-rogação da seguradora que faz o pagamento em razão de contrato de seguro de dano
Aqui, há duas as operações contratuais: o contrato segurado e o contrato de seguro. O segurador não é, nem se torna, parte na operação contratual segurada. O segurador não é titular da obrigação decorrente do contrato segurado; ele obrigou-se a, garantindo o interesse contratual do beneficiário, arcar com os riscos e consequências do descumprimento do contrato segurado. Ao pagar, o segurador está cumprindo obrigação decorrente do contrato de seguro, e não do contrato segurado.
A sub-rogação irradiada tem como causa o pagamento (ato-fato jurídico). O pagamento é apreendido juridicamente pelas normas decorrentes dos artigos 786 e 346 do Código Civil, apreensão que, em princípio, não decorre de ato negocial, expresso ou concludente. Não se trata, assim, de sub-rogação convencional, mas, sim, de sub-rogação legal.
De outra parte, o contrato de seguro, em si, não pode ser qualificado como ato negocial suficiente para que a sub-rogação seja qualificada como convencional, nos termos do artigo 347, I, do Código Civil. O ato negocial referido no artigo 347, I, do Código Civil é aquele que tem como objeto em si o direito à sub-rogação. O contrato de seguro, em si, não significa o exercício do autorregramento sobre a sub-rogação.
4. O segurador é terceiro com relação à convenção de arbitragem
Dessa forma, o segurador não é nem se torna parte do contrato segurado, muito menos da convenção de arbitragem que lhe é relativa. Caracteriza-se, assim, como terceiro em relação à convenção de arbitragem, não titularizando o efeito próprio que lhe é decorrente.
A circunstância de ser terceiro interessado no cumprimento de uma das relações eficaciais decorrentes do contrato não o torna parte do contrato, nem da convenção de arbitragem. Terceiro interessado não é parte contratual; continua sendo qualificado como terceiro.
Por outro lado, inexiste norma do sistema que excepcione o princípio da relatividade dos efeitos contratuais (que se aplica, logicamente, e ainda com mais força, em razão das peculiaridades da jurisdição arbitral, às convenções de arbitragem). Ao contrário, o artigo 3o da Lei nº 9.307/1996 estabelece que as “partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral”. Como bem se sabe, a autonomia da vontade é a fonte da jurisdição arbitral; aqui, com ainda maior razão, a convenção de arbitragem deve ser eficaz apenas em relação aos seus signatários ou a terceiros que tenham a ela aderido, expressamente ou por meio de comportamento concludente.
5. Conclusão: a ineficácia da cláusula compromissória perante o segurador que dela não é parte
Do teor do artigo 786 do Código Civil, não se faz possível extrair norma que vincule o segurador ao efeito direto da convenção arbitral, com a qual não concordou, expressa ou tacitamente.
Também do artigo 349 do Código Civil não se depreende tal regra. Ao contrário, o dispositivo prevê que a sub-rogação transfere, ao novo credor, juntamente com o crédito, todos os “direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores” (a ratio, vale lembrar, é justamente proteger o terceiro que paga a dívida). Não se fala em transmissão de cláusula compromissória, nem de negócios processuais celebrados pelo credor originário, o que seria incompatível com a ratio normativa.
Não nos parece possível considerar uma transmissão automática do efeito direto da cláusula compromissória, que, inclusive, é autônoma das demais disposições contratuais (artigo 8o, Lei nº 9.307/1996), em razão de uma sub-rogação legal, sem que tenha ocorrido qualquer exteriorização de vontade do segurador-terceiro, ainda que tácita.
Não bastasse tudo isso, e especificamente no que concerne ao regime jurídico da sub-rogação legal no âmbito do contrato de seguro de dano, o § 2o do artigo 786 do Código Civil assim prevê: “É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo”.
Em síntese, não se pode extrair, dos textos normativos citados, qualquer norma que excepcione o princípio da relatividade dos efeitos negociais no caso de sub-rogação legal de segurador no âmbito de contrato de seguro de dano. É possível que, no caso concreto, o segurador tenha concordado ou aderido à convenção de arbitragem, mas aí a sua vinculação decorre do autorregramento, e não do efeito legal da sub-rogação.
Essa ratio, inclusive, é verificada em precedentes do Superior Tribunal de Justiça, ao enfrentar a questão da eficácia da cláusula de eleição de foro constante no contrato segurado com relação ao segurador sub-rogado. No julgamento do Recurso Especial nº 1.962.113/RJ, decidiu-se que “o instituto da sub-rogação transmite apenas a titularidade do direito material, isto é, a qualidade de credor da dívida, de modo que a cláusula de eleição de foro firmada apenas pela autora do dano e o segurado (credor originário) não é oponível à seguradora sub-rogada” (REsp nº 1.962.113/RJ, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 22/3/2022, DJe de 25/3/2022) [10].
Com relação à eficácia da cláusula compromissória perante o segurador, a questão foi enfrentada no julgamento do Recurso Especial nº 1.988.894/SP (REsp nº 1.988.894/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, julgado em 9/5/2023, DJe de 15/5/2023). Em um primeiro momento, a construção da fundamentação do acórdão foi no sentido ora defendido, de não transmissibilidade automática da cláusula compromissória, inclusive com citações ao artigo de nossa autoria publicado na Revista de Direito Civil Contemporâneo.
Sucede que, na sequência, o acórdão considera que a ciência prévia da cláusula compromissória pelo segurador bastaria para a sua vinculação. A questão é analisada não sob a perspectiva de possível anuência tácita do segurador, mas como se, com a ciência da cláusula, ela passasse a ser objeto do risco segurado, o que, com todo respeito, não nos parece ser o caso. O risco segurado é o inadimplemento contratual; é sobre ele que se negocia no âmbito do contrato de seguro, abstratamente considerado.
De outra parte, não nos parece que apenas a ciência da cláusula compromissória, por si, seria suficiente para a configuração de uma exteriorização tácita de vontade. Sendo esse o raciocínio, haveria sempre a transferência automática da cláusula compromissória constante em contrato de seguro garantia – e, como demonstrado, não há tal regra em nosso sistema jurídico. Por meio do contrato de seguro em si, não se negocia sobre o conteúdo da sub-rogação.
[1] Escrevemos mais longamente sobre o tema em DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela Santos. A sub-rogação prevista no art. 786 do Código Civil e a convenção de arbitragem celebrada pelo segurado. Revista de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: RT, 2020, v. 24, p. 95 e segs.
[2] “Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.” Cuida-se de previsão normativa específica da sub-rogação legal, que está em consonância com a regra decorrente do art. 346, III, do Código Civil, segundo a qual “a sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: III – do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte.”
[3] Cf. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, parte especial, Tomo XXIV. Editor Borsoi: Rio de Janeiro, 1971, p. 283; CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português. Direito das Obrigações. Tomo IV: cumprimento e não cumprimento, transmissão, modificação e extinção, garantias, cit., p. 233.
[4] Nesse sentido, também SIMÕES, Marcel Edvar. Transmissão em direito das obrigações: cessão de crédito, assunção de dívida e sub-rogação pessoal. Dissertação de Mestrado em Direito Civil apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2011, p. 121.
[5] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil, volume V, tomo I: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações / Judith Martins-Costa; Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 432; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, parte especial. Tomo XXIV, cit., p. 285.
[6] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 130.
[7] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo I. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 83.
[8] “Art. 347. A sub-rogação é convencional: I – quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos os seus direitos; II – quando terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para solver a dívida, sob a condição expressa de ficar o mutuante sub-rogado nos direitos do credor satisfeito.
[9] “Art. 350. Na sub-rogação legal o sub-rogado não poderá exercer os direitos e as ações do credor, senão até à soma que tiver desembolsado para desobrigar o devedor.”
[10] No mesmo sentido, STJ, 3ª T., REsp n. 1.038.607/SP, rela. min. Massami Uyeda, j. em 20.5.2008, DJe de 5.8.2008.
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