Opinião

Da inconstitucionalidade da exclusão dos créditos da recuperação do produtor rural

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  • é advogado e administrador judicial mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) especialista em Direito Empresarial com ênfase em reestruturação de empresas e sócio Lara Martins Advogados.

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27 de abril de 2024, 9h17

Após alguns anos de construção jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça, em 2019, pacificou o entendimento de que o produtor rural pessoa física poderia pedir recuperação judicial. Para isso, bastaria estar registrado na junta comercial antes do pedido de recuperação judicial e comprovar o exercício da atividade empresarial pelo prazo superior a dois anos por meio de documentos contábeis, incluindo a declaração de Imposto de Renda de Pessoa Física ou livro-caixa.

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A razão é simples: de acordo com o Código Civil, o produtor rural exerce atividade regular mesmo que não esteja registrado, porém, é facultado a ele, quando desejar ser equiparado a empresário, formalizar seu registro. Isso decorre da proteção e do tratamento diferenciado pela Constituição aos produtores rurais que desempenham um papel fundamental na economia brasileira.

Por outro lado, a Lei nº 11.101/2005, nossa lei de recuperação de empresas e falência, preconiza que ela é destinada ao empresário e à sociedade empresária, motivo pelo qual é necessário estar regularmente registrado. Ademais, um dos requisitos para a propositura do pedido de recuperação judicial ou extrajudicial é o exercício de atividade regular pelo prazo superior a dois anos.

Entretanto, estavam em tramitação no Congresso Nacional projetos de lei com o objetivo de reformar nossa lei recuperacional, inicialmente pelo PL nº 6.229/2005 na Câmara e PL nº 4.458/2019 no Senado, que culminaram na promulgação da Lei nº 14.112/2020, reformando substancialmente a Lei nº 11.101/2005.

Antes, o que era entendimento jurisprudencial de que o produtor rural pessoa física poderia pedir recuperação judicial, com o advento da supracitada norma, passou a ser lei.

Grande revés para o produtor rural: exclusão de créditos

Todavia, a recuperação judicial do produtor rural sofreu um grande revés, que por pouquíssimo tempo pode usufruir de uma lei que tem como objetivo o soerguimento de negócios viáveis, porém, em crise financeira que pode ser provocada por motivos endógenos ou exógenos. Digo um breve período porque desde a última decisão do STJ de possibilitar a recuperação judicial até a entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020, transcorreram apenas 14 meses.

O revés se deu em razão da exclusão de diversos créditos que até então seriam sujeitos à recuperação judicial, quais sejam: crédito renegociado (artigo 49, §§ 7º e 8º), débito dos últimos três anos para a aquisição de propriedade rural (artigo 49, § 9º), créditos controlados (artigo 49, § 7º), crédito oriundo de atos cooperados (artigo 6º, § 13), CPR física ou barter (artigo 11 da Lei nº 8.929/94) e só inclui crédito exclusivamente rural.

Lobby em prol de interesses minoritários

Por que isso ocorreu? A resposta é simples: em decorrência do lobby feito por instituições financeiras, cooperativas de crédito e, destacadamente, grandes trading companies junto ao nosso Congresso, que durante a tramitação dos aludidos projetos de leis conseguiram excluir diversas operações de crédito comumente utilizadas nos negócios rurais em um claro movimento para tentar impedir o produtor rural empresário de ter acesso a um legítimo instrumento de reestruturação empresarial, assim como fizeram durante a tramitação dos projetos de lei que resultaram na Lei nº 11.101/2005 (Lei de Falência e Recuperação de Empresas).

Infelizmente, quem acompanha de perto o processo legislativo brasileiro e a elaboração de leis sabe que muitas delas são criadas única e exclusivamente para proteger grupos de interesses minoritários, mas com grande poderio financeiro que têm condições de “bancar” através de forte lobby projetos de leis muitas vezes com interesses escusos e em detrimento do interesse coletivo social.

Exclusão das CPRs

Como exemplo disso trago o caso da exclusão das CPRs (cédulas de produto rural) físicas da recuperação judicial. Durante a tramitação do PL 6.229/2020 na Câmara dos Deputados, o texto original não as excluía do processo recuperacional, e somente em 13/8/2020, após a apresentação da Emenda nº 11 pelo deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), foi alterada a redação do artigo 11 da Lei nº 8.929/94 para afastar a CPR física da recuperação judicial.

Isso porque, quando a Lei nº 11.101/2005 (conhecida como Lei dos Bancos) foi promulgada, diversos créditos utilizados frequentemente no meio bancário foram excluídos da submissão à recuperação judicial (leasing, alienação fiduciária, cessão de crédito de recebíveis, adiantamento de contrato de câmbio, entre outros), na contramão das principais legislações falimentares do mundo, inclusive daquelas nas quais a própria lei brasileira foi inspirada, como as leis dos Estados Unidos, Itália, Alemanha e França. Talvez por isso, com o advento da Lei nº 14.112/2020, eu ousaria chamar a Lei nº 11.101/2005 de Lei dos Bancos e Trading.

Impactos na insolvência

Provavelmente, a exclusão de diversos créditos do regime recuperacional seja a maior causa da ineficiência do nosso sistema de insolvência, da insegurança jurídica, do criticado ativismo judicial e provedor de diversos embates jurídicos na tentativa de construir entendimento jurisprudencial e doutrinário que tenta corrigir a maior anomalia da lei de recuperação de empresas.

Sempre é importante reforçar a importância do empresário e das sociedades empresárias para as economias globais; é o setor produtivo que gera riquezas para os países, que bancam as despesas do Estado e que desenvolvem a economia e, por esse motivo, precisa de incentivos e proteção para que possam estar em constante desenvolvimento e crescimento. Por esse motivo, a criação de um regime recuperacional foi e é de suma relevância para a preservação da atividade empresarial e seus reflexos, geração de riqueza, impostos e emprego para as pessoas.

Voltando ao tema central, a reforma da lei de recuperação judicial em relação ao produtor rural provocou muitos embates e teses desenvolvidos visando corrigir as anomalias mais uma vez causadas pela exclusão desarrazoada de diversos créditos. Digo desarrazoada porque não podemos pensar em um regime recuperacional eficiente ao qual a maioria dos créditos não são submetidos.

CPR física

Dentre os embates, talvez o maior seja em torno da CPR física, que é um título de crédito que permite ao produtor rural antecipar a venda de sua produção antes mesmo da colheita, podendo ocorrer a antecipação parcial ou integral do preço ou representativa de operação de troca por insumos (barter). Funciona como um contrato de compra e venda, onde o produtor se compromete a entregar uma quantidade específica de um produto agrícola em um local e data determinados, com qualidade pré-definida.

Não é sem razão que a CPR física atualmente é o título mais utilizado nas operações de crédito rural e não submetê-la aos efeitos da recuperação judicial tem um motivo simples: tentar impedir que muitos produtores rurais em crise tenham acesso ao procedimento. Segundo o legislador, como nas operações garantidas por CPR física ocorre a antecipação do preço e da venda dos grãos, esta não pode ser sujeita à recuperação judicial, ou seja, sem razão alguma ou ao menos ilógica.

Hoje no Judiciário, algumas teses em torno das CPRs físicas são:

a) A essencialidade dos grãos, por ser de suma importância para fazer caixa (capital de giro), deveria ser liberada em favor do recuperando e a garantia ser postergada para safras futuras, entretanto, está havendo uma discussão se enquadraria a bens de capital essencial, eu entendo que não, assim como a 3ª Turma do STJ, portanto não é um entendimento consolidado, precisamos de pronunciamento da 4ª Turma do STJ que compõe a 2ª sessão, bens de capital são aqueles destinados à atividade produtiva, exemplos: terras, maquinário e ferramentas. A essencialidade está ligada à importância dos grãos para gerar recursos financeiros para a manutenção da atividade, visando o pagamento das despesas operacionais (mão de obra, compra de insumos, manutenção e aquisição de máquinas, arrendos, entre outras) que não pode parar até da própria parar.

b) CPRs físicas são sujeitas à recuperação judicial, sob a justificativa que a Lei nº 14.112/2020 alterou o artigo 11 da Lei nº 8.929/94 e não a Lei nº 11.101/2005, que excetua os créditos que não são sujeitos à RJ, destaque para o § 3º do artigo 49, além disso, afirmam que o dispositivo retro seria taxativo, tese que discordo veementemente.

c) CPRs física seria sujeita à recuperação judicial porque o grão dado em garantia é penhor e, segundo o Código Civil, trata-se de uma garantia real que, por sua vez, é sujeita à recuperação judicial, portanto, estamos diante de um conflito de normas, devendo prevalecer o pró recuperando, tese bem razoável.

Créditos de atos cooperativos

Outro embate em torno de crédito excluído da recuperação judicial é o oriundo de atos cooperados (artigo 6º, § 13), cujos créditos surgem a partir das operações realizadas entre a cooperativa e seus associados. Esses atos são as atividades econômicas que a cooperativa realiza para beneficiar diretamente seus membros, diferenciando-se dos “atos não cooperados”, que são operações realizadas com terceiros. Como a diferenciação entre o conceito de ato cooperado e não cooperado é uma linha muito tênue, isso gera muita insegurança jurídica.

Os créditos de atos cooperativos (CACs) são valores que as cooperativas devolvem aos seus associados, geralmente na forma de dividendos ou juros sobre o capital aportado. Eles representam a distribuição dos excedentes gerados pelas atividades da cooperativa, de acordo com a participação individual de cada associado.

Os CACs originam-se das atividades da própria cooperativa, enquanto outros tipos de crédito (atos não cooperados) podem ter origem em bancos ou outras instituições financeiras. Os CACs são distribuídos aos associados proporcionalmente à sua participação na cooperativa, enquanto outros tipos de crédito (atos cooperados) podem ter critérios de distribuição diferentes, como renda ou score de crédito, ou seja, nem todo crédito concedido por uma cooperativa ao seu associado pode ser considerado ato cooperado, até porque é requisito para obtenção de crédito em cooperativas que você seja associado a ela.

Créditos de recursos controlados e renegociados

Outra discussão é a exclusão dos créditos de recursos controlados e renegociados (artigo 59, §§ 7º e 8º), esses são aqueles que possuem suas condições de contratação estabelecidas pelo governo federal (condições de contratação, como valores, taxas de juros, garantias e vencimentos), com o objetivo de direcionar recursos para o setor agropecuário e atender às necessidades específicas dos produtores rurais.

Exclusão é inconstitucional

Proibir que qualquer pessoa, seja natural ou jurídica, tenha acesso à justiça é ilegal e inconstitucional, inclusive aquele que tenha renegociado uma dívida, qualquer que seja sua característica e operação. Segundo o princípio da igualdade, previsto no Artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal Brasileira de 1988, é garantido que todos os cidadãos são iguais perante a lei, sem qualquer distinção, inclusive no acesso à justiça.

Negar o direito de ação judicial a produtores rurais que renegociaram suas dívidas cria uma situação de desigualdade e, além de contrariar o princípio da igualdade, viola outros princípios, como: princípio do acesso à justiça; princípio da ampla defesa e princípio da segurança jurídica.

O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a inconstitucionalidade de leis que restringem o acesso à justiça de devedores. Em um caso emblemático, o RE 524.909/RJ, o STF decidiu que é inconstitucional lei que proíbe a penhora de bens de empresas em recuperação judicial.

Portanto, é inconstitucional qualquer lei ou norma que proíba devedores que renegociaram suas dívidas de propor medidas judiciais, essa proibição viola diversos princípios fundamentais da Constituição citados acima.

Poderia trazer teses sobre todos os créditos excluídos da recuperação judicial de produtor rural, frutos da tentativa dos operadores do Direito, destacadamente os advogados, para corrigir mais uma anomalia de nossa lei recuperacional, mas todas elas são dispensáveis se considerarmos que todos os dispositivos que preveem essa exclusão na Lei nº 14.112/2020 são inconstitucionais.

Explico. A Constituição de 1988 proporciona um tratamento favorecido para os produtores rurais e a atividade agrícola, reconhecendo a importância estratégica da agricultura para o desenvolvimento socioeconômico e a soberania do país. Esse tratamento especial está refletido em várias disposições que buscam apoiar, incentivar e proteger o setor agrícola.

Aqui estão alguns dos aspectos mais relevantes:

– Função Social da Propriedade (Artigos 5º e 186): A Constituição estabelece que a propriedade deve cumprir uma função social. No caso de propriedades rurais, isso significa uma utilização eficiente que respeite as normas ambientais, aumente a produtividade e favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.

– Política Agrícola (Artigo 187): A Constituição determina que a política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, além do setor de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta especialmente: o crédito rural; a pesquisa e a tecnologia; a assistência técnica e extensão rural; o seguro agrícola; o cooperativismo; a eletrificação rural e irrigação; a habitação para o trabalhador rural.

– Isenção de tributos (Artigos 149 e 150): O produtor rural e as atividades agrícolas muitas vezes gozam de isenções tributárias ou de contribuições sociais menores, com o objetivo de incentivar a produção e garantir a segurança alimentar. Por exemplo, a contribuição para o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural) é adaptada às peculiaridades do setor agrícola.

– Reforma agrária (Artigos 184 a 191): A Constituição também aborda a política de reforma agrária como um meio de promover uma distribuição mais justa da terra e, por consequência, de seus benefícios sociais e econômicos. O governo tem o poder de desapropriar terras, por interesse social, para fins de reforma agrária, compensando os proprietários com títulos da dívida agrária.

Essas disposições refletem a intenção do constituinte de 1988 de apoiar o desenvolvimento rural sustentável e equitativo, considerando a grande importância da agricultura para a economia brasileira e para a sociedade como um todo.

Dessa forma, deveria ter sido criada pelo Congresso uma legislação própria e adequada ao produtor ou empresário rural para que, em caso de crise econômico-financeira, tivessem um instrumento para auxiliar no seu soerguimento e a manutenção da atividade produtiva. Porém, como nosso legislador optou por utilizar uma lei criada para, digamos, o “empresário não rural”, deveria ter ao menos tido um tratamento igualitário, o que não ocorreu, criando assim enorme quebra de isonomia jurídica com os demais empresários, ferindo de inconstitucionalidade o trato da matéria.

A exclusão injustificada e desarrazoada dos créditos, demonstrada alhures, da recuperação judicial fere a política agrícola nacional amparada por nossa Constituição e, além de não conferir o tratamento favorecido, visto que a recuperação judicial para o produtor rural é pior do que para o empresário não rural, ainda confere tratamento desigual em matéria de recuperação judicial, também inconstitucional.

O princípio da igualdade ou isonomia em matéria econômica, previsto no artigo 170 da Constituição de 1988, estabelece que todos os cidadãos e empresas têm o direito de participar livremente da atividade econômica, sem sofrer discriminações ou privilégios indevidos.

A aplicação do princípio da igualdade em matéria econômica pressupõe que o Estado não pode favorecer ou prejudicar nenhuma empresa ou setor específico da economia, exatamente o que aconteceu com o produtor rural em matéria de recuperação judicial com o advento da Lei nº 14.112/2020.

Trago como exemplo o debate em torno de um tema da própria recuperação judicial do produtor rural no Senado Federal, no qual foi proposta a Emenda 4 ao PL nº 4.458/2020 pelo senador Zequinha Marinho (PSC/PA), propondo a possibilidade deste optar pelo plano especial (artigo 70 e seguintes da LFRE) quando seu passivo não fosse superior a R$ 10 milhões e a elevação do prazo de pagamento de 36 meses para 60 meses e a carência de 180 dias para 360 dias, caso este opte pelo plano especial.

A referida emenda foi rejeitada porque “cria enorme quebra de isonomia jurídica com os demais empresários, dos demais setores, ferindo de inconstitucionalidade o trato da matéria, já que a Constituição prevê igualdade de tratamento em matéria econômica, independentemente do ramo de atividade econômica a que se dedica o empresário”.

Ou seja, o próprio legislador entende e coíbe qualquer proposta de alteração legislativa que quebre a isonomia jurídica com os demais setores, contrariando a Constituição.

Dessa forma, entendo que são inconstitucionais os seguintes dispositivos: artigo 49, § 6º (crédito exclusivamente rural); o artigo 49, §§ 7º e 8º (crédito renegociado); o artigo 6º, § 13 (crédito oriundo de atos cooperados), artigo 49, § 9º (débito dos últimos três anos para a aquisição de propriedade rural) todos da Lei nº 11.101/2005 e o artigo 11 da Lei nº 8.929/94 .

Autores

  • é advogado e administrador judicial, sócio do escritório Lara Martins Advogados, mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com formação executiva em Turnaround Management pela FGV-SP, especialista em Direito Empresarial pela Universidade Anhanguera, diretor da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência do Conselho Federal da OAB, membro associado da TMA Brasil, palestrante e escritor de artigos e livros sobre a área de insolvência.

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