Opinião

Crimes de pornografia infantil: a quem compete processar e julgar?

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  • é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco cofundador e diretor de ensino da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da UFPE (UFPECrim) e assessor do Ministério Público Federal.

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26 de abril de 2024, 14h15

No mundo cada vez mais digital, a prática de crimes por meio da internet é algo bastante corriqueiro.

Aqui, pode-se citar os delitos de vender, disponibilizar e/ou adquirir material pornográfico envolvendo criança ou adolescente, tipificados nos artigos 241, 241-A e 241-B, todos da Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

São vários os casos relatados sobre comercialização de fotografias e/ou vídeos contendo cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente em redes sociais como Instagram, Facebook, X, bem como em aplicativos de mensagens (WhatsApp e Telegram).

Como já ressaltado nesta Conjur em outra oportunidade, [1] no julgamento do Recurso Extraordinário nº 628.624/MG, com repercussão geral reconhecida (Tema nº 393), analisando os crimes mencionados acima, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu três requisitos cumulativos necessários para atrair a competência da Justiça Federal para processamento e julgamento dessas infrações penais:

  • a) o fato esteja previsto como crime no Brasil e no estrangeiro;
  • b) o Brasil seja signatário de convenção ou tratado internacional por meio do qual assume o compromisso de reprimir criminalmente aquela espécie delitiva;
  • c) a conduta tenha ao menos se iniciado no Brasil e o resultado tenha ocorrido, ou devesse ter ocorrido no exterior, ou reciprocamente.” [2]

Quanto aos requisitos ‘a)’ e ‘b)’, a repressão a crimes dessa natureza está prevista em tratado internacional, mais especificamente nos artigos 19 [3] e 34 [4] da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por força do Decreto nº 99.170/1990.

Posteriormente, em nova pactuação internacional, por meio do protocolo facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil, adotado em Nova York em 25 de maio de 2000, e aqui promulgado pelo Decreto nº 5.007/2004, obrigou-se o Estado brasileiro a reprimir tais condutas criminosas, o que se deu com a promulgação da Lei nº 11.829/2008, que alterou a redação do artigo 241 e incluiu os artigos 241-A, 241-B, 241-C, 241-D e 241-E ao ECA.

Reprodução

Mais recentemente, em abril de 2023, o Brasil, mediante o Decreto nº 11.491/2023, passou a ser um dos países que aderiram à Convenção sobre o Crime Cibernético, firmada em Budapeste em 23 de novembro de 2001, instrumento internacional multilateral que fortalece os laços de cooperação com parceiros estratégicos no enfrentamento a ilícitos cibernéticos, dispondo, em seu artigo 9, acerca dos delitos de pornografia infantil.

Já quanto ao item ‘c)’, são necessárias evidências de transnacionalidade da conduta, nos moldes do artigo 109, inciso V, da Constituição, razão pela qual o simples fato de a conduta criminosa ter sido praticada na internet não é fundamento suficiente, por si só, para atrair a competência da Justiça Federal. [5]

Potencial transnacionalidade

Noutras palavras, para atrair a competência federal, é imprescindível que o material pornográfico tenha sido disponibilizado em ambiente virtual propício ao livre acesso, apto a revelar não a ocorrência efetiva, mas a potencial transnacionalidade do delito perpetrado por meio da rede mundial de computadores, permitindo, assim, o acesso aos conteúdos criminosos por qualquer pessoa conectada e em qualquer lugar do mundo.

Quando essa disponibilização e/ou venda de material pornográfico envolvendo criança ou adolescente ocorre em chat das redes sociais Facebook ou Instagram, em e-mails ou em um grupo privado/fechado dos aplicativos de mensagens Telegram ou WhatsApp, por exemplo, tem-se ambientes onde a comunicação se dá entre destinatários escolhidos pelo emissor da mensagem, não sendo acessível a qualquer pessoa, de modo que não há como apontar, a princípio, elementos que evidenciem a transnacionalidade do crime.

Nessa toada, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

[…] 2. As instâncias ordinárias enfatizaram a inexistência de indícios de transnacionalidade do delito, com fulcro no laudo da Polícia Federal, frisando que a conduta limitou-se à troca de imagens entre pessoas residentes no Brasil por meio de conversa privada via e-mail. Assim, não há como acolher a tese de incompetência da Justiça Estadual. […]

(RHC n. 125.440/SE, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 9/6/2020, DJe de 15/6/2020).

[…] 3. Situação em que os indícios coletados até o momento revelam que as imagens da vítima foram trocadas por particulares via Whatsapp e por meio de chat na rede social Facebook.

  1. Tanto no aplicativo WhatsApp quanto nos diálogos (chat) estabelecido na rede social Facebook, a comunicação se dá entre destinatários escolhidos pelo emissor da mensagem. Trata-se de troca de informação privada que não está acessível a qualquer pessoa.
  2. Diante de tal contexto, no caso concreto, não foi preenchido o requisito estabelecido pela Corte Suprema de que a postagem de conteúdo pedófilo-pornográfico tenha sido feita em cenário propício ao livre acesso. […]

(CC n. 150.564/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 26/4/2017, DJe de 2/5/2017).

Contudo, se uma pessoa tiver posse de link de acesso a um determinado grupo de WhatsApp/Telegram — portanto, sem necessidade de autorização de eventuais criadores/administradores para ingressar ao grupo —, pode, consequentemente, ter acesso a todo o possível conteúdo ilícito de vídeos e imagens contendo cena de sexo explícito envolvendo criança e adolescente ali existente, restando configurada a potencial transnacionalidade do delito.

Isso mesmo que o link tenha perdido sua acessibilidade, pois, até então, o suposto crime havia sido cometido de forma online e pública.

Assim: “O uso de redes de mensagens como os programas Whatsapp e Telegram é apto a configurar a transnacionalidade, quando nos grupos de compartilhamento estiverem presentes usuários sediados no exterior (é dizer, em território estrangeiro)”. [6]

Desse modo, o fato de haver usuários detentores de linhas telefônicas estrangeiras nesses grupos revela-se como um elemento idôneo para caracterizar a transnacionalidade do delito, mesmo que não seja possível afirmar que houve visualização do conteúdo ilícito no exterior, tendo em conta que a jurisprudência do STJ e do STF não exige que a caracterização da transnacionalidade do crime esteja condicionada ao efetivo acesso:

[…] 1. Conforme a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal, em repercussão geral, no julgamento do RE n. 628.624/MG, a internacionalidade do delito exige, primeiro, que a publicação do material pornográfico tenha sido em “ambiência virtual de sítios de amplo e fácil acesso a qualquer sujeito, em qualquer parte do planeta, que esteja conectado à internet”. Mas não só isso; é preciso também que “o material pornográfico envolvendo crianças ou adolescentes tenha estado acessível por alguém no estrangeiro, ainda que não haja evidências de que esse acesso realmente ocorreu.” (RE 628.624, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 29/10/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-062 DIVULG 05-04-2016 PUBLIC 06-04-2016). […]

(AgRg no AREsp n. 2.009.824/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 17/5/2022, DJe de 20/5/2022).

[…] 3. A presunção da transnacionalidade de delito de publicação de material ilícito em sites nacionais e/ou estrangeiros ou em redes sociais abertas deriva de sua potencial visualização imediata por pessoas localizadas em qualquer parte do mundo. Desnecessidade, nessa específica hipótese, de demonstração de efetiva postagem e/ou visualização em território alienígena para fins de configuração da competência da Justiça Federal comum (orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal). […]

(CC n. 175.525/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Seção, julgado em 9/12/2020, DJe de 11/12/2020).

[…] 1. Fixou o Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, nos autos do RE 628.624/SP, Relator para acórdão Ministro Edson Fachin, que: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes consistentes em disponibilizar ou adquirir material pornográfico envolvendo criança ou adolescente (arts. 241, 241-A e 241-B da Lei nº 8.069/1990) quando praticados por meio da rede mundial de computadores”.

  1. No caso, a conduta foi praticada pela rede mundial de computadores, com utilização de programas de compartilhamento de arquivos, cujo acesso é franqueado a todos, em qualquer lugar, que fazem uso da ferramenta.
  2. Sendo o Brasil signatário de tratados internacionais objetivando a repressão criminal de condutas relacionadas à pornografia infantil, bem como verificada a disponibilidade do material pornográfico inclusive no exterior, de rigor o reconhecimento da competência da Justiça Federal para a causa, nos termos do art. 109, inciso V, da Carta Magna. […]

(HC nº 392.644/SP, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 6/6/2017, DJe de 13/6/2017).

 


[1] OLIVEIRA, Felipe. Competência para processar e julgar crimes de homofobia e transfobia. Revista Consultor Jurídico, out. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-out-24/felipe-oliveira-julgamento-crimes-homofobia-transfobia/. Acesso em: 14 abr. 2023.

[2] RE 628624, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 29/10/2015, DJe 06/04/2016.

[3] 1. Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.

  1. Essas medidas de proteção deveriam incluir, conforme apropriado, procedimentos eficazes para a elaboração de programas sociais capazes de proporcionar uma assistência adequada à criança e às pessoas encarregadas de seu cuidado, bem como para outras formas de prevenção, para a identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior dos casos acima mencionados de maus tratos à criança e, conforme o caso, para a intervenção judiciária.

[4] Os Estados Partes se comprometem a proteger a criança contra todas as formas de exploração e abuso sexual. Nesse sentido, os Estados Partes tomarão, em especial, todas as medidas de caráter nacional, bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir:

  1. a) o incentivo ou a coação para que uma criança se dedique a qualquer atividade sexual ilegal;
  2. b) a exploração da criança na prostituição ou outras práticas sexuais ilegais;
  3. c) a exploração da criança em espetáculos ou materiais pornográficos.

[5] Nesse sentido, o Enunciado nº 50 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, órgão incumbido da coordenação, da integração e da revisão do exercício funcional dos membros do MPF na área criminal: “O fato de a conduta ter ocorrido por meio da rede mundial de computadores não atrai, somente por este motivo, a atribuição do Ministério Público Federal para a persecução penal.”.

[6] TRF 3ª Região, APELAÇÃO CRIMINAL – 75016 – 0003709-70.2017.4.03.6000, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/05/2018, e-DJF3 Judicial 1 DATA: 14/05/2018.

Autores

  • é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, cofundador e diretor de ensino da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da UFPE (UFPECrim), assessor do Ministério Público Federal e bacharel em Direito pela UFPE.

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