Opinião

Remessa do Habeas Corpus concedido de ofício: alterações da Lei 14.836/24

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18 de abril de 2024, 20h52

Antes de ingressar nas alterações promovidas pela Lei 14.836/2024 no tocante aos institutos da concessão da ordem de Habeas Corpus de ofício por juiz ou tribunal e do possível esquecimento do legislador quanto à figura da remessa necessária, caso a ordem seja concedida por juiz de primeiro grau, instituto, aliás, ultrapassado e que considero não recepcionada pela Constituição de 1988, é importante lembrar um ponto que se revela elementar na teoria da decisão judicial, o fato de que a jurisdição é inerte (ne procedat iudex ex officio).

Significa dizer que a jurisdição se movimenta, em regra, somente quando provocada pelo cidadão ou por autoridade pública jungida do “poder de demandar”, como os membros do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Polícia Judiciária (Civil e da União) etc. Daí que decorre a advertência dos processualistas: agir de ofício não significa agir sem provocação da parte.

Tanto isso é verdade que o Código de Processo Civil da nossa geração acabou por positivar a regra da “não surpresa” (artigo 9º, CPC). Assim, há hipóteses em que o magistrado poderá agir de ofício, mas não dispensará a oitiva da parte contrária, ou seja, da parte que suportará a decisão “ex officio”. Neste compasso, fácil é perceber que a ideia do “agir de ofício” se adere propriamente à “iniciativa” que não dispensaria a oitiva da parte adversa.

Dentro da especial perspectiva do processo penal, enquanto sistema de proteção do cidadão, do brasileiro, da pessoa humana sujeita ao sistema subjetivo de responsabilização criminal, a ordem não se apresenta assim tão simplória, máxima porque o bem jurídico tutelado, aqui, assume o alto rigor da expressão “bem da vida”, não se sujeitando aos limites da “lógica formal do processo civil”. Processo Penal é mais. Ao lado do direito penal, define o limite da violência estatal oficial, funcionando como proteção do cidadão.

Desse modo, fácil é concluir que a jurisdição, uma vez provocada mediante um pedido deduzido por quem quer que seja (no caso, a impetração da ordem de habeas corpus), está não só autorizada a intervir, senão obrigada a fazer cessar imediatamente o constrangimento ilegal, passando, assim, ao largo de — v.g. — eventuais deficiências na condução do processo (má redação da petição inicial de habeas corpus, impropriedade da via eleita ou outros problemas de ordem similar.

Habeas Corpus de ofício

Spacca

Já estava consagrado, portanto, que o habeas corpus pode ser concedido de ofício, sem se cogitar a necessidade de ouvir a própria parte ou o órgão da acusação oficial, podendo ser expedida a concessão da ordem por juiz ou tribunal em favor do paciente [1].

Sobre o tema, observe o dispositivo legal do Código de Processo Penal que previa esse tipo de decisão:

Art. 654. […] […] § 2º Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.

Faz poucos dias que a Lei Federal 14.836/2024, dentre outras coisas, acrescentou no Código de Processo Penal o artigo 647-A, buscando detalhar não só o próprio artigo 647, mas também o mencionado artigo 654, §2º, aperfeiçoando um pouco mais a já existente previsão legal de possibilidade da concessão da ordem de habeas corpus de ofício pelo juiz ou tribunal:

Art. 647-A. No âmbito de sua competência jurisdicional, qualquer autoridade judicial poderá expedir de ofício ordem de habeas corpus, individual ou coletivo, quando, no curso de qualquer processo judicial, verificar que, por violação ao ordenamento jurídico, alguém sofre ou se acha ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção.

Parágrafo único. A ordem de habeas corpus poderá ser concedida de ofício pelo juiz ou pelo tribunal em processo de competência originária ou recursal, ainda que não conhecidos a ação ou o recurso em que veiculado o pedido de cessação de coação ilegal. [2]

Dentro dessa mesma perspectiva de jurisdição inerte, ao editar a Lei nº 14.836/2024 o legislador perdeu uma boa oportunidade de eliminar definitivamente do Código de Processo Penal a figura da remessa necessária da sentença concessiva de Habeas Corpus [3].

Para o Código de Processo Penal, nos casos da concessão da ordem de HC emanar de decisão de juiz de primeiro grau, caso não interposto recurso voluntário contra a decisão, deve-se constar expressamente a determinação de remessa dos autos à segunda instância para reexame da decisão, “recorrendo de ofício” (sic), nos termos do artigo 574, I do CPP:

Art. 574. Os recursos serão voluntários, excetuando-se os seguintes casos, em que deverão ser interpostos, de ofício, pelo juiz:

I – da sentença que conceder habeas corpus;

Daí entra-se em outro ponto, que não pode ser confundido com a concessão da ordem de HC de ofício, que é o recurso de ofício do juiz, no sentido da remessa necessária à corte superior quando a ordem de HC é concedida pelo juízo singular.

Nesse passo, paira certa controvérsia acerca da não-recepção do recurso de ofício pelo sistema constitucional vigente [4][5], ante o fato de que recurso só pode ser interposto pela parte prejudicada, despiciendo dizer que ele não mais subsiste no sistema jurídico brasileiro desde a promulgação da Constituição de 1988 [6]. Isso equivale a dizer que juiz não se insurge contra a sua própria decisão, sob pena de subversão do sistema acusatório, reinante em nosso ordenamento jurídico [7].

Dessa forma, ainda que se admita a incidência da norma arcaica que prevê a remessa necessária da decisão que concede o HC em primeira instância — problema este não corrigido pela 14.836/2024, diga-se —,  essa hipótese deve ser evitada quando a decisão, de ofício, for proferida por tribunal, porque ausente norma legal nesse sentido. Assim, pela falta de previsão legal, quando o tribunal conceder o habeas corpus de ofício, não precisará remeter o processo ao tribunal superior.

 


[1] Explico com mais assiduidade em

[2] Cabe aqui ressaltar a crítica feita por Gustavo Henrique Badaró acerca do excesso de formalismo dos tribunais que, apesar de não conhecerem do habeas corpus impetrado, conhecem da ordem de ofício, sob a alegação de que se trata de um HC substitutivo de recurso ordinário (RHC) “mas, como teria restado evidenciado o constrangimento ilegal, concede-se de ofício a ordem! BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos Recursos Penais [livro eletrônico]. 2. Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2017.

[3] Também conhecido por reexame necessário”, a “remessa obrigatória” ou o “duplo grau de jurisdição obrigatório”.

[4] Explico: como à época da edição do Código de Processo Penal não existia previsão de recurso por parte do Ministério Público e mister era respeitar o duplo grau jurisdicional, o juiz, ao conceder a ordem ex officio ou mediante provocação, deveria remeter necessariamente o processo ao tribunal (hierarquicamente superior) como uma espécie de duplo grau de jurisdição obrigatório. A nomenclatura é deveras equivocada, visto que, recurso é instrumento daquele que está inconformado (ou prejudicado) com o que foi decidido, o que soa absurdo sustentar que o juiz ao proferir decisão concessiva na ação de habeas corpus, recorreria de seu próprio julgado à superior instância. Atualmente, pelo fato do Ministério Público poder recorrer da concessão de habeas corpus (art. 581, X do CPP) e do art. 129, I da CF, essa hipótese deve ser abandonada ao ostracismo.

[5] O Projeto de Reforma do Novo CPP que está em debate há prevê expressamente a extinção do recurso de ofício no Processo Penal.

[6] Cfr. POLASTRI LIMA, Marcellus. Curso de processo penal, ob. cit., p. 1.145.

[7] Abordado com mais profundidade em:

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