Senso Incomum

E o professor encenou Harry Potter para ensinar usucapião!

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18 de abril de 2024, 8h00

1. A tempestade perfeita

As redes sociais são o repositório final do caos. O lugar. Vivemos o refluxo comunicativo, que se pode chamar de shitstorm (não farei a tradução, mas é a composição das palavras shit e storm – o estagiário levanta a placa “ironia”).

Originalmente o conceito serve para uma porção de coisas. Byung-Chul Han trabalha bem o tema no livro No Enxame. Faço aqui uma adaptação, porque o modo como alguns influencers lidam com alguns temas e o efeito que isso causa tem muito a ver com o refluxo e com uma tempestade… Porque o Instagram faz um shitstorm geral.

2. E fizeram usucapião da obra Harry Potter

As redes sociais, por não terem filtros, recepcionam qualquer coisa. Sobre qualquer coisa. Terraplanismos mil.

Vi agora que um professor de Minas Gerais encenou Harry Potter para ensinar o conceito de usucapião (ver aqui). Poxa. Usucapião é uma das coisas mais simples do direito. Fosse na medicina, seria um exame de urina. Ou uma unha encravada.

Pergunto: se para “ensinar” usucapião usa toda essa parafernália harrypottiana, o que o professor usaria para explicar uma interpretação conforme ou a norma fundamental kelseniana?

Definitivamente, as redes sociais acaba(ra)m com o que resta(va) do direito. Bom, em um país em que se ensina ECA cantando funk (sim, isso existe) e tem até sushi jurídico, o que dizer de Harry Potter e a usucapião? [1]

3. E degeneraram o direito…!  

Permito-me dizer: ainda há tempo.  Como escrevi aqui dia desses, temos de desabituar.

O direito está sendo degenerado dia a dia. O que estão fazendo com o direito? No que transformaram o ensino jurídico? E os concursos?

 

Achei que já tinha visto muita coisa – e olha que estou no ramo há décadas, criticando o ensino estandardizado-prêt-à-porter. Em breve nas bancas o meu Ensino Jurídico e(m) Crise – Ensaio contra a Simplificação. Mientras, há outros já na praça, como Ensino Jurídico, Dogmática e Negacionismo Epistêmico. Meninos e meninas, eu já e passei

  • pelos manuais tipo Caio e Tício,
  • por personagens se vestindo de cervo e levar tiro no traseiro para explicar erro de tipo,
  • por concursos perguntando sobre direito fundamental de o sujeito ficar parecido com lagarto (ver aqui),
  • pela teoria da graxa e testículos despedaçados (ver aqui)
  • por petições usando bayesianismo para suprir ausência de prova, (ver aqui)
  • por livros de direito simplificado, facilitado, seja F… em direito,
  • pelo direito sem as partes chatas,
  • por panfletos plastificados para ler na piscina…etc., etc.,

…, mas essa do Harry Potter para explicar usucapião me atordoou. Tonteei. Se os alunos só entendem usucapião assim, não é melhor mandá-los de volta ao ensino secundário?

4. E o menino de 10 anos passou a ensinar usucapião…

Bem, o professor explicou, em um site, que o método é tão eficiente que o filho da registradora de imóveis da cidade, com a idade de 10 anos, entendeu e até explicou para os coleguinhas o que é usucapião. Ah, bom. Está tudo “explicado…”.

Spacca

Tenho uma observação: o menino de 10 anos entendeu “o que é isto – o/a usucapião” não por causa do seu “método” (sic) ou da encenação, professor. Ele entendeu por que usucapião é uma coisa tão fácil que até um menino de 10 anos entende. E seus coleguinhas também. O problema, talvez, sejam os seus alunos que necessitaram do Harry Potter para compreender a “complexidade” do conceito…! Ou é o professor que só consegue explicar usucapião com Harry Potter. Ou algo assim.

De todo modo, esse episódio de Minas Gerais serve como amostragem. Ou uma alegoria do estado da arte atual do concurseirismo. O caso, portanto, possui transcendência. Cabe repercussão geral…!

Mundo, mundo, vasto mundo… Esse é o ensino do direito? Cantar? Dançar? Fazer memes? Tiktokear? Pegar resuminho do resumo feito por ChatGPT por meio de dicas de Instagram (sim, tem gente no “insta” que “ensina isso”)?  É isso?

Isso tudo dá um Globo Repórter: do que vive essa gente? O que leem? Quem lhes inspira? Como se reproduzem?

 


[1] Registro que, no meu tempo, chamávamos de “o usucapião”.

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