Crimes contra a honra cometidos contra agentes políticos
17 de abril de 2024, 19h27
Desde o início da vigência do Código Penal, o inciso II do artigo 141 já estabelecia uma causa de aumento de pena de um terço relativa aos crimes contra a honra, cujas as vítimas eram funcionários públicos e as ofensas ocorriam propter officium.
O alcance da regra era claro, considerando o conceito amplo de funcionário público [1] para fins penais descrito no artigo 327 e parágrafos, abrangendo desde o mais simples servidor público até os agentes políticos.
Nesses casos, doutrina e jurisprudência eram unânimes em considerar que, em virtude do parágrafo único do Artigo 145 combinado com o inciso II do artigo 141 do estatuto em epígrafe, a ação teria como titular exclusivamente o Ministério Público [2].
Súmula 714 e a Lei 14.192/21
Em 2003, no entanto, o Supremo Tribunal Federal firmou um entendimento diferente editando a Súmula 714 [3], ampliando a legitimidade ativa nos casos de difamação, calúnia ou injúria envolvendo funcionários públicos. Neste contexto, criava-se um dos raríssimos casos de legitimidade concorrente no Processo Penal [4].
A publicação da Lei 14.192/21, no entanto, promoveu modificações significativas em relação aos crimes contra a honra relacionados aos agentes políticos.
Com efeito, o novo texto acrescentou o presidente do Senado, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal, representando, assim, a mais alta hierarquia no âmbito do Poder Legislativo e Judiciário, e estabelecendo uma clara distinção entre esses agentes políticos e o “funcionário público” do início do inciso.
“II – Contra funcionário público, em razão de suas funções, ou contra os presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal;”
Linha de raciocínio
Por tais razões, entendemos não haver mais motivos, nessa situação, para continuar sustentando uma causa de aumento de pena e tampouco a legitimidade concorrente com o Ministério Público que abranja outros agentes políticos indistintamente, além dos elencados na norma em comento.
Desde já, cumpre ressaltar que a hipótese não se trata nem de longe de interpretação analógica, pois que, se a intenção da lei fosse esta, teria incluído os agentes políticos antes do funcionário público seguido de expressões como “qualquer outro”, “ou outro”. Ou seja, primeiro uma fórmula casuística e depois uma fórmula genérica, como entende a doutrina.
Igualmente, nos parece equivocado supor que os demais agentes políticos estariam inseridos na expressão “funcionário público” do início do inciso II e por força do artigo 327 do Código Penal.
Ora, se “funcionário público”, para a doutrina e jurisprudência, já compreendia todos os agentes políticos, não haveria sentido especificá-los novamente de forma redundante. Não podemos esquecer o princípio latino “ubi lex non distinguit, nemo distinguere potest”, ou seja, onde o legislador não faz distinções, não é permitido ao intérprete fazê-las. Neste caso, o inverso também é válido, ou seja, onde ele distinguiu, não cabe ao intérprete não distinguir.
Outrossim, o princípio básico de hermenêutica “verba effectu sunt accipienda” [5], que significa “As palavras devem ser entendidas com algum efeito” reforça a ideia de que não há palavras inúteis na lei. Isso nos orienta a interpretar as palavras da lei sem presumir que sejam tautológicas ou desnecessárias.
Ademais, esta linha de raciocínio nos levaria a uma forçosa interpretação ampliativa in malam partem da majorante, o que é bastante criticável em um Estado Democrático de Direito no qual o cidadão não pode ter dúvidas e insegurança acerca das condutas puníveis e sobretudo do alcance da punição.
Mesmo que não haja consenso na doutrina e na jurisprudência das cortes superiores acerca da possibilidade de sua utilização no Direito Penal e de suas implicações com o Princípio da Legalidade [6], certo é que a interpretação extensiva é vedada quando cause um verdadeiro desvirtuamento na mens legis.
Isto porque, interpretar, mesmo que de forma extensiva, nada mais é que revelar o verdadeiro espírito da lei, esclarecer o conteúdo de significação da norma e, portanto, este método encontra barreiras nos limites semânticos do próprio texto [7].
Entendimento dos tribunais superiores
Neste sentido, STF e STJ já decidiram que a causa de aumento de pena prevista no artigo 327, §2º, do Código Penal não se aplica aos agentes políticos, salvo se cumularem funções administrativas [8]ou quando possuírem imposição hierárquica ou de direção.
Tirante esses casos, o §2º não se aplica nem a agentes políticos e tampouco a funcionários públicos pertencentes a autarquias [9], porquanto não haja espaço semântico para qualquer interpretação.
Registre-se ainda que, segundo a boa doutrina, entre duas interpretações possíveis, deve se optar pela que beneficie o réu [10], pelo critério do favor rei, o que se deflui por via de consequência necessária da função garantista do Direito Penal.
Conclusão
Por essas razões, ao nosso sentir, a constatação irrefutável é que a Lei 14.192/21 trouxe uma derrogação do inciso II do artigo 141 do Código Penal, alterando a majoração de 1/3 da pena em relação a crimes cometidos contra certos agentes políticos.
Assim sendo, a causa de aumento de pena se aplica apenas às condutas ofensivas dirigidas ao presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal e somente nestes casos, por força do artigo 145, haverá a legitimidade concorrente do Ministério Público.
[1] A definição de Funcionário Público do Código Penal Brasileiro acaba por englobar tanto a Teoria Subjetiva quanto a Teoria Objetiva do Direito Italiano. DA COSTA JR, Paulo José. Comentários ao Código Penal, Paulo José Editora Saraiva, 1997, Pg 908)
[2] FABBRINI MIRABETE, Júlio. Código Penal Interpretado. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2001, p. 939
[3] “É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções”.
[4] Segundo a melhor doutrina, entretanto, a rigor estamos diante de uma legitimidade alternativa e não, propriamente, “concorrente”
[5] “dá-se valor a todos os vocábulos e, principalmente, a todas as frases, para achar o verdadeiro sentido de um texto; porque este deve ser entendido de modo que tenham efeito todas as suas provisões, nenhuma parte resulte inoperativa ou supérflua, nula ou sem significação alguma”, MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: GEN, 2011, p. 204.
[6] Há precedentes no sentido da sua vedação (RHC 85.217-3/SP, Relator(a): Min EROS GRAU., 1.ª Turma, j. 02.08.2005, EDcl no AgRg no HC 651.765/SP, Relator(a): Min JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUINTA TURMA, j. 07/12/2021,) tanto quanto da possibilidade (RHC 106481- MS, Relator(a): Min CÁREM LÚCIA, j 08/02/2011).
[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 177.
[8] RHC 110513, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, j. 29/05/2012
9 Inq 3983, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 03/03/2016.
10 Neste sentido:
- CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal, Parte Geral. ed. Curitiba: Lúmen Júris – ICPC, 2008, p. 65.
- ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p.177
- ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos. La estrutura de la teoria del delito. Trad y notas: Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledo, Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, tomo I, 1997, p. 154 e 155.
Aliás, esta regra inclusive está expressa no Art. 22, § 2º do Estatuto de Roma (Decreto nº 4.388/2002): “A previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambiguidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada”
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