Opinião

Arrematação de imóvel é forma derivada de aquisição da propriedade

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  • é advogado de negócios imobiliários especialista em Direito Imobiliário e em Direito dos Contratos ambos os títulos pela FGV Direito SP e graduado em Direito e em Administração de Empresas pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

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15 de abril de 2024, 20h59

Existe uma corrente no direito que defende que a arrematação de imóvel em leilão judicial seria uma forma originária de aquisição da propriedade. As justificativas utilizadas pelos que se filiam a esta corrente giram, primordialmente, em torno de dois argumentos: a inexistência de relação entre o adquirente (arrematante) e o devedor executado (titular da propriedade do imóvel arrematado); e a inexistência de transmissão voluntária da propriedade do imóvel ao arrematante.

Com todas as vênias aos que entendem diferente, e sempre com muito respeito às visões divergentes (que, a bem da verdade, só enriquecem o debate jurídico), esta conclusão não poderia estar mais equivocada.

Vamos recordar brevemente questões conceituais acerca do modo originário e derivado de aquisição da propriedade, bem como acerca da arrematação.

Modo derivado de aquisição da propriedade

O modo derivado de aquisição da propriedade pode decorrer da relação negocial e obrigacional havida entre o proprietário do imóvel e o adquirente, sendo a transmissão da propriedade resultante da contratualidade e do registro do título aquisitivo no Oficio de Registro de Imóveis ou da transmissão causa mortis, cuja circulação patrimonial decorre do fato jurídico stricto sensu da “morte” do titular da propriedade — hipótese na qual o da “sucessão” possui natureza declaratória de domínio, com a importante função de gerar titularidade e trânsito jurídico em prol do herdeiro, sem se olvidar da necessária publicidade, capaz de produzir oponibilidade erga omnes a respeito da alteração subjetiva do direito de propriedade [1].

Nesses casos de aquisição da propriedade pelo modo derivado — ou seja, pelo registro no ofício imobiliário do título representativo de negócio jurídico ou sucessão — transfere-se a coisa com os mesmos atributos e restrições (ônus reais e gravames) que possuía no patrimônio do transmitente.

Modo originário de aquisição da propriedade

Já a aquisição da propriedade imobiliária pelo modo originário é, nas palavras de Josué Modesto Passos, “a aquisição que, em seu suporte fático, é independente da existência de um outro direito”.

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Importante perceber a sutileza da conceituação. Isso porque não se trata de inexistir relação jurídica ou negocial entre o antigo proprietário e o adquirente (arrematante), mas sim o suporte fático da aquisição não pressupor a existência de um direito a ser adquirido, o suporte fático não guardar qualquer dependência com outro direito qualquer.

Portanto, vejamos as palavras completas de Josué Modesto Passos — citada em diversas decisões do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo (CSMSP) — ao conceituar a aquisição originária e a derivada:

“diz-se originária a aquisição que, em seu suporte fático, é independente da existência de um outro direito; derivada, a que pressupõe, em seu suporte fático, a existência do direito por adquirir. A inexistência de relação entre titulares, a distinção entre o conteúdo do direito anterior e o do direito adquirido originariamente, a extinção de restrições e limitações, tudo isso pode se passar, mas nada disso é da essência da aquisição originária” [2].

O modo originário de aquisição de propriedade, portanto, implica na incorporação do bem ao patrimônio do adquirente livre de todos os vícios que a relação jurídica anterior apresentada. Assim, o imóvel passa a ser do novo proprietário totalmente limpo, sem quaisquer ônus ou gravames.

Devidamente conceituados os modos derivado e originário de aquisição da propriedade, é preciso compreender o que se entende por arrematação e em que modo de aquisição ela se enquadraria.

Arrematação em leilão judicial

A arrematação é um ato de expropriação que constitui uma forma de alienação forçada do bem, de acordo com a conceituação de Araken de Assis [3]. “É ato expropriatório por meio do qual ‘o órgão judiciário transfere coativamente os bens penhorados do patrimônio do executado para o credor ou para outra pessoa'” [4].

Dessa forma, fica claro que há um negócio jurídico realizado entre o devedor, cuja vontade é substituída pelo Estado-Juiz, e o arrematante.

Josué Modesto Passos enfatiza o seguinte:

“A arrematação não pode ser considerada um fundamento autônomo do direito que o arrematante adquire. A arrematação é ato que se dá entre o Estado (o juízo) e o maior lançador (arrematante), e não entre o maior lançador (arrematante) e o executado; isso, porém, não exclui que se exija – como de fato se exige -, no suporte fático da arrematação (e, logo, no suporte fático da aquisição imobiliária fundada na arrematação), a existência do direito que, perdido para o executado, é então objeto de disposição em favor do arrematante. Ora, se essa existência do direito anterior está pressuposta e é exigida, então — quod erat demonstrandum — a aquisição é derivada (e não originária)” [5].

Tanto é verdade que a carta de arrematação — título judicial — é objeto de qualificação registral e deve observar, entre outros, o princípio da continuidade registral [6] [7], previsto no artigo 195 [8] e 237 [9] da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos).

Ou seja, se o devedor executado não for o proprietário tabular do imóvel levado à hasta pública e devidamente arrematado, observando-se todos os requisitos processuais exigidos, o oficial de registro de imóveis negará o registro da carta de arrematação expedida pelo Juízo por afronta ao princípio da continuidade, revelando que há, sim, a necessidade de um suporte fático a um direito anterior, deixando claro o modo derivado da aquisição.

Mais um fator que corrobora com a conclusão de que se trata de uma aquisição derivada — e não originária — é o fato de ser cobrado Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) na arrematação, reforçando a ideia da transmissão da propriedade do bem imóvel cuja manifestação de vontade do devedor-proprietário é suprida pelo Estado-Juiz.

Aliás, diversos são os precedentes do CSMSP no sentido de que a arrematação se trata de um modo derivado de aquisição da propriedade. Entre eles, um bem recente (datado de 1º de março de 2024), da lavra do atual Corregedor Geral de Justiça de São Paulo, Francisco Eduardo Loureiro, assim ementado:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – CARTA DE ARREMATAÇÃO – MODO DERIVADO DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE – DESQUALIFICAÇÃO POR INOBSERVÂNCIA AO PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE – DOAÇÃO DE PARTE IDEAL DO IMÓVEL NÃO REGISTRADA – DECISÃO PROFERIDA NOS AUTOS DO PROCESSO JUDICIAL RECONHECENDO, EXPRESSAMENTE, A NATUREZA PROPTER REM DA DÍVIDA QUE DEU ENSEJO À PENHORA DA TOTALIDADE DO IMÓVEL – COMPROVAÇÃO DA INTIMAÇÃO DOS CONDÔMINOS PROMITENTES DOADORES E DA CO-TITULAR DO DOMÍNIO PARA CIÊNCIA DA EXECUÇÃO – APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 799, INCISO IV, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – CARTA DE ARREMATAÇÃO DEVIDAMENTE INSTRUÍDA COM AS PEÇAS DO PROCESSO JUDICIAL RELATIVAS A ESSES ATOS – PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO QUE JUSTIFICAM O AFASTAMENTO DO ÓBICE APRESENTADO AO REGISTRO DO TÍTULO – APELAÇÃO PROVIDA”[10].

Conclusão

Portanto, conclui-se que, apesar dos esforços no sentido de tentar atribuir à arrematação a natureza aquisição originária, a arrematação em leilão judicial — seja sob o ponto de vista doutrinário, seja do ponto de vista de precedentes da corregedoria, a exemplo das decisões do CSMSP — é uma forma derivada de aquisição da propriedade e que está sujeita aos efeitos dessa modalidade, como a manutenção dos mesmos atributos que o bem imóvel possuía quando integrava o patrimônio do devedor-executado (ônus, gravames, obrigações propter rem), exceto se em sentido diverso dispor o edital do leilão judicial.


[1] ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. CURSO DE DIREITO CIVIL. Vol. 5, 17ª ed. Salvador: Ed. JusPoivm, 2021, p.397.

[2] PASSOS, Josué Modesto. A ARREMATAÇÃO NO REGISTRO DE IMÓVEIS: continuidade do registro e natureza da aquisição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 111 e 112.

[3] ASSIS, Araken. MANUAL DA EXECUÇÃO. 14ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

  1. p. 819.

[4] CSMSP – Apelação Cível: 1061979-44.2017.8.26.0100

[5] PASSOS, Josué Modesto. A ARREMATAÇÃO NO REGISTRO DE IMÓVEIS: continuidade do registro e natureza da aquisição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 118.

[6] “O princípio da continuidade, que se apóia no de especialidade, quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam umas das outras, asseguram sempre a preexistência do imóvel no patrimônio do transferente. Ao exigir que cada inscrição encontre sua procedência em outra anterior, que assegure a legitimidade da transmissão ou da oneração do direito, acaba por transformá-la no elo de uma corrente ininterrupta de assentos, cada um dos quais se liga ao seu antecedente, como o seu subseqüente a ele se ligará posteriormente. Graças a isso o Registro de Imóveis inspira confiança ao público” (CARVALHO, Afrânio. REGISTRO DE IMÓVEIS, 4ª edição, Ed.Forense, 1998, pág. 253).

[7] “Existe uma inteiração dos princípios da especialidade e da continuidade na formação da corrente filiatória. Quando se exige a observância da continuidade dos registros, exige-se que ela diga respeito a um determinado imóvel. O titular inscrito, e só ele, transmite um direito sobre um bem específico, perfeitamente individualizado, inconfundível, sobre o qual, de acordo com o registro, exerce o direto transmitido. É por este corolário dos princípios da continuidade e da especialidade, reunidos, que o §2º do art. 225 da Lei n. 6.015/73 dispõe: ‘Consideram-se irregulares, para efeito de matrícula, os títulos nos quais a caracterização do imóvel não coincida com a que consta do registro anterior.” (ORLANDI NETO, Narciso. RETIFICAÇÃO DO REGISTRO DE IMÓVEIS, Ed. Juarez de Oliveira, 2ª ed., 1999, p. 67/68).

[8] “Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro.”

[9] “Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro.”

[10] APELAÇÃO CÍVEL nº 1006103-56.2023.8.26.0048

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  • é advogado de negócios imobiliários, especialista em Direito Imobiliário e em Direito dos Contratos, ambos os títulos pela FGV Direito SP e graduado em Direito e em Administração de Empresas pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

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