Senso Incomum

Por que os concursos e o ensino jurídico são os mesmos desde 1988?

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11 de abril de 2024, 8h00

1. Passados 35 anos… os concursos ainda são os mesmos…

Poderia começar com os versos da música composta por Belchior e eternizada na voz de Elis Regina: ainda somos os mesmos…

O primeiro concurso público realizado no Brasil ocorreu em 1937, conduzido pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI). No entanto, a sua obrigatoriedade stricto sensu como forma de ingresso no serviço público só ocorreu a partir da Constituição de 1988.

A ideia do constituinte era clara e estava em sintonia com o conceito que permeava aquela nova Constituição: uma democratização completa do acesso aos cargos públicos que não se daria mais através de indicações e trocas de favores. Tratava-se, portanto, da busca de um rompimento com legado de nossa Grande Tradição, enquanto uma herança lusa reforçada pelo peculiar processo de (in)dependência brasileiro – o patrimonialismo, o clientelismo e a apropriação do público como se privado fosse.

Passados 35 anos os resultados práticos dessa regra são questionáveis. Porque delegaram o conteúdo dos concursos para empresas privadas e bancas nomeadas por vezes por critérios questionáveis. E o ensino jurídico? Continuou com os mesmos cacoetes e simplificações. O que há em comum? A velha dogmática jurídica. Criterialista.

Por que a dogmática é criterialista? Porque assume critérios prontos, fixados acriticamente (muitas vezes, como reprodução de preconceitos dominantes entre as elites), para depois aplicar o Direito a partir deles, confundindo-os com o próprio direito posto. Mais: o dogmatismo substitui o Direito. Em vez de explicar o fenômeno jurídico, troca de lugar com o legislador. A dogmática constrói conceitos criteriais, ad hoc, que são reproduzidos pelos tribunais, cujas decisões são reproduzidas pela dogmática… E tudo isso é material de cursinho para concurso.

A efetividade do modelo de concursos públicos que vigora no Brasil desde então transformou os certames em verdadeiros quiz shows nos quais os candidatos são obrigados a decorar dezenas de leis e memorizar as exceções das exceções das exceções. Na verdade, além de decorar leis, o candidato deve decorar os critérios e classificações artificiais criadas pela dogmática. Isso aliado às teses advindas dos tribunais.

Sigam “o fio” e explicarei.

2. Por que nada muda? Parece haver algo que “empedra o modelo”

A pergunta que se impõe é por que não se discutem alterações substanciais neste modelo de concursos que está muito longe de escolher os “mais capacitados pelo meio mais democrático”? Para respondermos essa questão, obrigatoriamente temos que realizar uma reflexão que envolve a construção do imaginário da ocupação de um cargo público no Brasil, a instituição desse meio de acesso pela via dos concursos públicos e os reflexos no ensino jurídico.

O primeiro fator é que a recepção dessa Grande Tradição com o qual o constituinte buscava romper (e parece ter fracassado), obviamente inclui o Direito e toda a institucionalidade que dele decorre – e que dia a dia nos molda –, permitindo uma peculiar interlocução entre essa mesma tradição e o modelo de ensino jurídico e modelo de concurso público, junto àquilo que denomino de estandardização do direito. Isso porque a própria história dos cursos jurídicos no Brasil demonstrou que os professores, formados na Universidade de Coimbra, eram reprodutores do texto normativo e das doutrinas consagradas e apostiladas. Essa metodologia presa a um pretenso purismo normativista (tradição textualista-exegética), possibilitou a construção de clichês que distanciavam os cursos jurídicos de todas as demais áreas da ciência.

Spacca

Em segundo lugar, porque foi construída uma próspera indústria que se beneficia desse modelo. Voltando no tempo é possível compreender as relações de causa e efeito e de como essa indústria se constituiu: com a entrada em vigor da nova previsão constitucional, uma série de cargos, que antes estavam à disposição na máquina pública, agora necessitavam de um certame para que fossem acessados; esses certames para os cargos foram organizados tendo por base o nível de escolaridade exigido, mas as provas invariavelmente questionavam acerca da legislação pertinente ao cargo que o candidato pretendia ocupar. Muitos cargos não exigiam graduação em Ciências Jurídicas e Sociais; não era possível questionar acerca da ciência do Direito e as provas se focavam em reprodução de legislação.

3. A migração econômica em direção à máquina pública

No início dos anos 90 o interesse nos concursos públicos não era tão grande. No entanto, a partir de 1994, com o governo FHC e as medidas econômicas, as mudanças ocorridas no mercado de trabalho geraram uma atenção especial aos cargos no serviço público. Onde havia uma insegurança crescente na iniciativa privada, além do achatamento de remuneração — elementos próprios da lógica neoliberal em relação ao trabalho — o serviço público oferecia segurança e boa remuneração. A consequência, por uma questão de sobrevivência, foi um interesse crescente nos cargos públicos e um aumento do número de candidatos participando dos processos seletivos.

Com o aumento do número de candidatos por vaga nos certames, a dificuldade de aprovação cresceu, o que levou aos interessados nos cargos a procurarem meios de obter uma vantagem na competição (já foi assim no vestibular, com a proliferação de cursinhos pré-vestibular). Como a maioria dos cargos burocráticos envolvia o conhecimento de legislação, um movimento natural ocorreu: uma corrida aos cursos de Direito. E, é claro, os próprios concursos foram se adaptando “darwinianamente”.

4. O boom dos cursos jurídicos

Cursar Direito, portanto, virou um meio para participar desses certames. Além disso, legislações incluíram exigências cada vez maior de formação jurídica – até para ser bombeiro se exige curso de Direito. Construiu-se, assim, um imaginário pelo qual entrar em uma faculdade de Direito era abrir um leque de possibilidades de trabalho com remuneração muito superior ao que era ofertado na iniciativa privada. Não há curso que oferece mais alternativas do que o de Direito. Esse imaginário se intensificou a partir do segundo mandato de FHC, quando o impacto das medidas neoliberais que vinham sendo aplicadas gerou grave crise econômica no país, com aumento do desemprego, desvalorização da moeda e perda do poder de compra.

A partir de 2003, com o primeiro governo Lula, iniciou-se um processo de intenso estímulo ao acesso aos cursos superiores no Brasil, por meio de políticas públicas que encorajavam o aumento do número de vagas em universidades. Essas políticas públicas incluíam o aumento de vagas (além do Fies) e construção de novas universidades federais. Houve também a facilitação de abertura de novas vagas e de universidades privadas. Por sua vez, a lei da oferta e da procura levou a uma proliferação de cursos de Direito no Brasil. Cidades com pouco mais de 5 mil habitantes possuem cursos de Direito.

Hoje, passados 35 anos dessa tentativa de democratização de acesso aos cargos públicos, é consenso que os concursos públicos têm sido a principal causa da procura pelo bacharelado em Direito. Tal circunstância, obviamente, gerou reflexos de ordem prática.

Para evoluir esse debate, é imprescindível que se inclua, nessa cartografia, o papel desenvolvido pelos “cursinhos preparatórios” para concursos públicos e “Exame da Ordem”, assim como os próprios concursos públicos, entendidos como instâncias de avaliação de conhecimento para ingresso nos cargos que compõe a estrutura político-administrativa do Estado.

5. Os cursinhos como uma vantagem na corrida

Como o conhecimento do Direito envolve muito mais que a simples memorização de leis, havia um descompasso entre o que as universidades ofertavam e o que era buscado. Da mesma forma, quando todos os participantes de um concurso já partem do mesmo ponto inicial que é a graduação em Direito, há a necessidade de uma nova vantagem. Foi por isso que, ao longo da segunda metade dos anos 2000, houve uma proliferação de cursos preparatórios para concursos públicos pelo Brasil afora. Houve um momento em que havia cursos de preparação para ingresso em cursinhos (por exemplo, cursos ministrados pelas corporações de escolas de juízes e membros do MP). Era a busca da vantagem em duas etapas.

De outra parte, o ensino jurídico nas universidades foi sendo substancialmente simplificado para se adequar à demanda dos que nele ingressavam que o tinham como meio para obter um fim específico: aprovação em concurso público. Seja ele qual fosse. Criou-se um meme de aluno perguntar: “cai na prova da Ordem? Cai no concurso? Não? Então esquece, professor”.

O resultado disso foi um substancial empobrecimento do ensino jurídico no país: além da simplificação dos currículos dos cursos de Direito, com a tentativa de encurtamento da duração do curso (veja-se que, seguindo a linha dos “atalhos em terrae brasilis”, o MEC encurta o caminho para ser doutor, fazendo simbiose com o mestrado – ver aqui), foi realizado um corte drástico nas disciplinas de propedêutica e filosofia, com a alocação do tempo disponível para maior ênfase em disciplinas dogmáticas (dogmática essa, insisto, dominada pelo criterialismo). Foi esse o processo que levou a “cursinização” do ensino jurídico no Brasil.

Afinal, a profissionalização dos estudos por meio de cursinhos preparatórios proporciona o conhecimento dos conteúdos exigidos no edital e, ainda, a compreensão do perfil das questões cobradas, reduzindo o conhecimento ao plano dogmático e reducionista. Se o bacharelado em Direito havia virado meio, a lógica de mercado impunha uma adequação a essas expectativas.

6. A eterna deficiência do MEC

Da mesma forma que os concursos públicos, a prova de seleção do “Exame da OAB” não corresponde aos postulados constitucionais de uma formação integral (cultural e científica). Soma-se a isso que o Ministério da Educação é deficiente na análise de condições por seu Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), uma vez que, após realizá-lo (para estudantes da área ingressantes no ano de avaliação, bem como para estudantes concluintes), o processo torna-se insipiente em termos de ação pedagógica nos centros universitários.

É certo que a dimensão econômica da educação – criticada há tempo e considerada em todos os documentos que proclamam uma reforma – tem profunda relação com a manutenção de uma educação de baixa qualidade (isso agora é agravado com o projeto de simplificação da linguagem capitaneada pelo CNJ – ver aqui).

Sendo assim, não há dúvidas de que, à medida que os alunos estão acessando a educação superior cada vez mais despreparados, à medida que a formação dos bacharéis em Direito está cada vez mais profissionalizante e à medida que o “Exame da OAB” e os concursos públicos estão reprovando cada mais candidatos com conteúdos memorizáveis, o mercado editorial de manuais, resumos, resuminhos e truques mnemônicos (aliás, existem livros que ensinam isso), cresce e se aperfeiçoa a cada dia mais, reforçando a fragilização epistemológica da educação.

7. O império do simples e da cultura mnemônica

Os compêndios simplificadores, nesse contexto, reforçam o hábito dogmático e uni disciplinar, em contraposição à dimensão que a sociedade contemporânea exige da metodologia jurídica. A dogmática jurídica, nesse claro-escuro, contenta-se com menos.

Na ausência de reflexão, não exerce o papel de constrangimento epistemológico, servindo apenas, salvo exceções, para sedimentar incoerências e equívocos criterialistas. A simbiose ensino-doutrina-concursos tem sido um entrave para o desenvolvimento de um ensino emancipatório e de um novo modelo de concursos, a partir da proliferação de concepções jusfilosóficas anacrônicas e antidemocráticas.

É inegável, assim, que, historicamente, os cursos jurídicos e os modelos de concursos públicos guardam relação. O fato é que o modo “senso comum-empirista” de apropriação da realidade empobrece o Direito, que é transformado em instrumento de teorias políticas de poder. E se é instrumento, já não é Direito. Não é por acaso que mais da metade da comunidade jurídica estava contra a presunção da inocência, segundo pesquisas da época em que ingressamos com a ADC 44.

Por final, essa ênfase na seleção de candidatos a partir de uma dogmática jurídica desprovida de crítica, completamente alienada da filosofia e de formação humanística, seleciona os candidatos que reproduzem exatamente esse perfil para ocupar os cargos públicos. Afinal, a dogmática independe de viés político para a sua sobrevivência.

Veja-se. A dogmática atravessa governos da ditadura, da democracia, de governos de direita, de centro e de esquerda. E segue sobranceira. A dogmática sobrevive assim porque ancorada em algo como a Generalthesis husserliana bem trabalhada por G. Bornheim (há uma tríplice dimensão: gnosiológica, ontológica e axiológica – o resultado é um comportamento dogmático em um “mundo dado”; uma espécie de mito do dado). Não surpreende, portanto, que a mesma juíza que decreta a preventiva de um furtador de desodorante rejeite a prisão de um detentor de um Porsche que acabara de matar uma pessoa. Os fundamentos são semelhantes ao que se usava há 30-40 anos. Não surpreende que livros críticos sobre concursos não enfrentem o problema central dos concursos: a dogmática jurídica. Não surpreende também que a concepção de verdade dominante no processo é a adequatio intellectum et rei (verdade por correspondência). Eis o simbólico que “diz” a realidade e reafirma o que vaticinou o “filósofo” personagem de Primo Basílio: as consequências vêm sempre depois. Aliás, basta ver o concurso público quiz show e tik tok do MP de Santa Catarina: um bom (ou mau) exemplo de como nada mudou.

A profissionalização dos estudos, reduzido não mais ao aprendizado, mas ao mero treino para a execução na próxima prova, limitou drasticamente a possibilidade daqueles que estão em condições de concorrer em igualdade com os demais candidatos, algo muito distante da ideia de democratização do acesso aos cargos públicos que fora pensada pelo constituinte. Hoje vige a máxima: sem cursinho, não passa.

Portanto, o perfil econômico se tornou determinante para selecionar aqueles que podem se dedicar exclusivamente ao preparo para participação em concursos públicos, primeiramente acessando aos cursos preparatórios específicos.

8. E chegamos aos coachs e mentorias

Veja-se que essa lógica foi se reproduzindo de maneira sucessiva. Depois dos cursinhos vieram os “coaches”, depois dos “coaches”, a mentoria individualizada – forma nutella de elitização dos concursos. Todos esses prometendo a tão sonhada aprovação no concurso público que acabou virando fetiche: “concursocracia da prosperidade”. Bancas de concursos que possuem ligações com cursinhos preparatórios. Questões que o candidato só sabe se estiver frequentando determinado curso. Uma série de fatores que se retroalimenta e fomenta uma indústria que movimenta milhões de reais ao ano. De outro lado, a insegurança e precarização do trabalho no Brasil só aumentaram desde então. Nota: tudo agravado, agora, com a proliferação de robôs e quejandices tipo produção em série. Há um vídeo nas redes – causador de vergonha alheia -, um comercial de venda de petições que mostra os fictícios “doutores” Joalison e Cristiano; isso mostra o tamanho do buraco em que estamos metidos. Isso sem falar nos tiktokers que ensinam truques nas redes…

O tempo passa e o modelo de prova nos concursos públicos continua exatamente o mesmo que dos anos 80. A verdade é que ninguém ousa mexer neste vespeiro. Muda governo e nada muda. Por qual razão? Eis o que tento responder há tantos anos.

A título exemplificativo de tudo que foi dito até agora: recentemente o CNJ resolveu implementar um “Exame Nacional da Magistratura” para que candidatos realizem o concurso para acesso aos cargos da magistratura, sob a justificativa de que as provas realizadas pelos tribunais não eram adequadas. Uma espécie de Jus-Enem.

A solução encontrada pelo CNJ? Uma nova prova de múltipla-escolha — focada em questões dogmáticas — para que o candidato possa realizar outra prova depois. Rapidamente surgiram “cursos especializados para o Enam (Exame Nacional da Magistratura)”. E esse processo vai ser cada vez mais “aperfeiçoado”. Ex-juízes “coaches” oferecendo preparações caríssimas para Enam. E o resto os leitores e leitoras conhecem. A lógica preestabelecida logo se reproduz como um vírus, mesmo diante da “inovação”. Não é por mero acaso… Veja-se como os novos cursinhos são ministrados por membros das carreiras jurídicas. Forma-se o mesmo círculo vicioso de antes.

Mudando-se para não mudar. Warat chamava a isso de “gatopardismo”, homenageando Lampedusa e seu Il Gatopardo: há que se mudar para que tudo continue como está. Mesmo ensino, mesma dogmática, mesmos concursos, mesmas práticas = mesmo Direito.

Ainda somos os mesmos…

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