Opinião

Licitação, irregularidade fiscal e a reserva do possível

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

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10 de abril de 2024, 6h36

Existiriam hipóteses em que a administração pública poderia contratar com licitante(s) que não têm as certidões negativas de débito (FGTS, INSS, trabalhistas, etc.)?

A princípio não, já que há expressa vedação seja na Constituição (artigo 195, §3º), e na Lei de Licitações (artigo 91,§4º da Lei 14.133/2021).

Mas se o próprio serviço público, a vida e a segurança estiverem em risco com a ausência de contratação de empresas com irregularidade fiscal?

Nesta hipótese pensamos que a contratação deverá ser feita.

Nossa interpretação tem como fundamento uma interpretação elastecida da denominada “reserva do possível”.

Pedimos licença para abeberarmo-nos da síntese brilhante sobre o tema da lavra da eminente procuradora do estado de São Paulo, doutora Christine Falsarella [1] de onde retiramos a síntese aqui descrita.

A reserva do possível tem origem alemã e tem relação com o exercício de direitos sociais e suas limitações.

No STF a discussão também girou nesse sentido relacionando-se, majoritariamente, aos limites orçamentários.

Nossa proposta é a aplicação da reserva do possível relacionando-o aos direitos fundamentais e, ainda, sob a ótica da própria existência do Estado. O tema orçamentário está englobado nesse conceito como mais um elemento ( não o único) para a existência do Estado.

Spacca

Propomos uma utilização do termo “reserva do possível” como princípio norteador de interpretações que preservem a própria existência do Estado e a preservação de preceitos fundamentais tendo ou não pertinência financeira/orçamentária.

Nosso foco, neste texto, é a “reserva do possível” e a regularidade fiscal dos licitantes.

Pensemos em algumas hipóteses da vida real.

Casos reais

Uma ordem judicial para realização de cirurgia com risco de vida para o paciente e com um único local (ou pouquíssimos locais) a serem contratados e o único estabelecimento prestador do serviço não tem regularidade fiscal.

A primeira hipótese (de escassa inteligência) seria deixar o paciente morrer à mingua e descumprir a ordem judicial. A segunda hipótese (mais adequada) seria dar supremacia ao direito à vida e ao Estado Democrático de Direito cumprindo a ordem judicial ainda que o fornecedor não tenha regularidade fiscal.

Para ficar claro: havendo risco de vida e/ou risco de descumprimento de ordem judicial a irregularidade fiscal não é obstáculo à contratação, salvo se for possível contratar licitante adequado à regularidade fiscal.

A reserva do possível albergada pelo STF deve ser aplicada ao caso (ainda que num viés não financeiro no sentido de que o interesse público primário do Estado é, dentre outras coisas, preservar a saúde de seus cidadãos ainda que em detrimento de formalidades importantes como as exigências de regularidade fiscal.

Assim, a existência do Estado como garantidor dos direitos fundamentais (a vida) deverá ser o elemento de interpretação a ser seguido.

Um segundo exemplo colhido no campo da vida real ilustrará melhor nossa interpretação de reserva do possível em detrimento do formalismo da regularidade fiscal.

Em acanhadas urbes persistiu (e persiste) o hábito quase medieval de realizar pagamento de tributos em espécie na tesouraria da prefeitura.

Os Tribunais de Contas, evidentemente, apontam tal anacrônico costume como irregular seja porque facilita a atividade criminosa, seja porque dificulta a efetiva fiscalização mais eficaz nos meios eletrônicos. Não podemos perder de vista que as prefeituras de acanhadas urbes não costumam ter sequer o AVCB (auto de vistoria do Corpo de Bombeiros) como elemento básico de segurança. A existência de estrutura de segurança com câmeras de vigilância e instrumento semelhantes está tão distante destes locais quanto as viagens intergalácticas.

As Cortes de Contas não dispõem de outra opção senão exigir a inserção bancária ao ente público afastado dos instrumentos tecnológicos mais elementares.

Diante da imposição civilizatória por parte das Cortes de Contas só resta ao poder público dos grotões promover o credenciamento (artigo 79 da Lei Federal 14.133/2.021) para que todos os bancos interessados efetivem o pagamento dos tributos municipais.

O detalhe que passa despercebido ao público em geral é o de que os bancos são verdadeiros “fariseus” corporativos.

Fariseus são as figuras bíblicas do “faça o que eu falo, mas não o que eu faço”.

Quem precisa de dinheiro emprestado sabe da necessidade de “score” positivo, inexistência de protestos ou apontamentos no SCPC e Serasa e etc.

Será que os bancos conseguiriam fazer o mesmo quando são contratados? Ou seriam “fariseus corporativos”?

Afirmamos que não nos  causará muita surpresa caso tenham débitos junto ao Estado, município, União, FGTS, etc.

O motivo é simples, seja qual for a taxa de juros e a correção dos tributos nenhuma delas supera o que se cobra no cheque especial ou do cartão de crédito. O tempo está sempre a favor dos bancos. Não há muito interesse num banco em manter a higidez financeira que exige de seus clientes.

Mas se o ente público credencia bancos e todos estão irregulares do ponto de vista fiscal deverá deixar de cobrar tributos comprometendo saúde, educação, segurança e salários?

Deveria abrir mão da própria existência do Estado? A exigência de regularidade fiscal seria relevante a ponto de autorizar a ausência de arrecadação pelos entes públicos?

Evidentemente a nenhum administrador é lícito optar pela extinção do próprio aparato estatal , razão de ser da própria existência da Constituição e das leis.

Nesse caso, pensamos que a contratação deverá ser feita em consonância com a “reserva do possível” que obriga o administrador público a manter em pleno funcionamento o Estado democrático de Direito, ainda que precise abrir mão de formalidades relevantíssimas.

Não se trata de Direito Alternativo ou interpretação contra a lei. Trata-se de interpretação para que a própria produção de Leis e do aparato estatal sobrevivam.

Existência do ente político como cláusula pétrea

O artigo 60,§4º, I da Carta Federal prevê como cláusula pétrea a emenda tendente a abolir o Estado Democrático de Direito.

É evidente que a vedação às emendas inclui normas de menor estatura normativa, inclusive os atos corriqueiros da administração pública que criem “tendência” à abolição da forma federativa de Estado, o que inclui a sua absoluta inviabilidade financeira.

Em síntese: propomos o elastecimento da interpretação da reserva do possível sob a ótica da própria existência do Estado democrático de Direito que inclui a exclusão da necessidade de regularidade fiscal da empresa contratada caso isso ameace a própria razão de ser do Estado: seja pela não preservação de uma vida ou outro preceito fundamental, seja por atitudes que tendam a inviabilizar a existência do próprio ente político.

 


[1] chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://apesp.org.br/comunicados/images/tese_christiane_mina_out2012.pdf

 

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (Ed. Dialética) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia, (coordenador: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm).

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